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Agora é que são elas

Karla Burgoa 25 de junho de 2022

Terra de Bartolina Sisa, Juana Azurduy e Manuela Gandarillas, a Bolívia sempre teve o protagonismo feminino em evidência e, mesmo que a passos lentos, isso também acontece no futebol

 

“O que uma mulher sabe sobre futebol?” perguntavam a Danitza Soliz, uma empresária que desde muito jovem acompanhava as equipes bolivianas. Ela assumiu a presidência do Real Tomayapo e, sob sua liderança, o clube alcançou a Divisão Profissional do futebol local.

Soliz, que agora se divide entre as responsabilidades de ser mãe e liderar um time, disse que em um meio como este, predominantemente machista, sua conquista quebrou uma enorme barreira.

“No início foi um pouco difícil aceitarem uma mulher na presidência, mas de uma forma ou de outra, acabaram se acostumando. Sempre mostrei capacidade e muito trabalho. Fui ganhando respeito e aceitação no ambiente. O foco é sempre mostrar disciplina e empenho, pois o que todos queremos é o melhor para a nossa equipe, que vem de um departamento {Tarija} que não existia mais no cenário futebolístico. E agora estamos em ascensão.”

Danitza Soliz

Aos 38 anos, Soliz resistiu às críticas e tem como meta levar a equipe à disputa de uma competição internacional.

Apesar de espaços esportivos serem majoritariamente reservados para os homens, na Bolívia a mulher sempre foi uma peça fundamental nas lutas pela independência: desde as rebeliões até mudanças nas próprias vidas.

Em 2020, houve um momento em que quatro delas estiveram à frente de clubes no país. Além de Danitza Soliz, também Inés Quispe, Jenny Montaño e Patricia Flores se tornaram presidentas dos clubes The Strongest (Quispe)Independiente Petrolero (Montaño) San José (Flores).

Agora é que são elas
A presidente do Real Tomayapo, Danitza Soliz, e o novo reforço para a temporada: o volante Nilton (ex-Vasco, Cruzeiro, Inter, Bahia, Corinthians e Bragantino).

A primeira em alcançar o comando de um time de futebol profissional foi Inés Quispe, em 2019, acompanhada da vice-presidente, Veronica Palenque. Elas se tornaram a primeira mulher e a primeira vice-presidente num clube de futebol boliviano. E justamente o clube mais antigo deles, o Strongest.

A partir de então, teve início uma nova fase no futebol boliviano. E logo em um momento dos mais difíceis, com as finanças dos clubes comprometidas por conta da pandemia.

“É um pouco difícil assumir essa posição principalmente em uma sociedade tomada pela hegemonia masculina. Não é difícil abrir o campo em alguns casos, mas é necessário romper muitas barreiras na questão de gênero e obviamente quebrar esquemas mentais machistas. É importante que mais mulheres ocupem esses espaços, e que se torne algo normal, que ocupemos, pois o futebol é um reflexo do que há na sociedade, um cenário importante a ser mudado.”

Danitza Soliz

Porém, com a grave crise financeira, a pressão dos sócios e também do ex-presidente do San José, David Rivero, a empresária Patricia Flores renunciou ao cargo dezessete dias após ter assumido a presidência. A situação do clube de Oruro é grave. Enfrenta demandas por parte de jogadores na Fifa e tem eleições marcadas para maio.

A pioneira, Inés Quispe, também renunciou em fevereiro passado. Viúva do ex-presidente da Federação Boliviana de Futebol, César Salinas, morto por COVID-19, ela alegou problemas pessoais e de saúde ao entregar o cargo: “Como é de conhecimento público, a perda do meu marido significou um golpe duro para mim e minha família. Lamentavelmente, sua ausência deteriorou a minha saúde e me vejo obrigada a me submeter a um exame médico, motivo pelo qual apresento minha renúncia irrevogável ao cargo de presidente do Club The Strongest“, escreveu no comunicado oficial.

Quem assumiu o cargo foi o segundo vice-presidente, Ronald Crespo, e não a primeira vice, Veronica Palenque, como era de se imaginar.

Jenny, a presidente do Independiente Petrolero, de Sucre, recentemente surpreendeu ao cobrar, dentro de campo, os jogadores do clube que aderiram à greve que abalou o futebol na Bolívia no início da temporada.

Ela inclusive chegou a demitir o capitão do time ao vivo, enquanto as câmeras da televisão transmitiam toda a confusão: “Você não pode me processar porque não tem contrato”, disse uma enfurecida Montaño.

Na Bolívia, as mulheres não se intimidam em assumir sua responsabilidade no futebol.

Las Super Poderosas

Carmen Pozo, jornalista esportiva, e Zdenscka Bacarreza, treinadora, fundaram a primeira e única instituição dedicada exclusivamente ao futebol feminino na Bolívia.

Há algum tempo, essa dupla já vinha fazendo história. Carmem e Zdenscka, são apaixonadas pelo esporte desde crianças e cresceram sem referências femininas no meio. Foram acostumadas a assistir jogos protagonizados por homens e narrados por vozes masculinas. Sentiram a ausência e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para fazer a diferença.

E foi no altiplano boliviano, a mais de 3 mil metros acima do nível do mar, que entrou em campo o projeto Las Super Poderosas. Começou com apenas 14 garotas, em La Paz.

Hoje em dia são mais de 90.

Agora é que são elas
O projeto Las Super Poderosas é a única instituição dedicada exclusivamente ao futebol feminino.

“Imagino que o panorama futebolístico boliviano terá mais mulheres líderes nos próximos anos, e espero poder ter contribuído com o cenário. Espero que elas busquem inspirações, referências e nos encontrem, sigam nossos passos. Estou segura de que as mulheres possuem um outro olhar sobre o futebol, o que só contribui para a modalidade.”

Zdenscka Bacarrez

O objetivo do projeto não se concentra apenas em ensinar a jogar futebol, mas também repassar alguns valores. “É importante que as mulheres sejam encorajadas a ocupar mais espaços, desde que tenham uma decisão e não apenas uma tela para atender a um mandato. Mesmo na Bolívia é complicado, pois apesar de vivermos em um país com forte presença feminina, muitos não reconhecem isso e classificam como um ‘pecado’ ser mulher. Acreditam que nós não temos capacidade para ocupar esses lugares e somos alvos de críticas, discriminação e falta de incentivo” conta Bacarrez.

O projeto desenvolvido pela dupla recebeu o prêmio internacional Futebol pela Amizade, da Gazprom Football, em que competiam mais de 100 escolas de futebol espalhadas por todo o mundo.

Novos rostos, novas vozes

Nos momentos decisivos da partida, nos últimos minutos dos acréscimos, naquele gol decisivo, a voz é de Carla Saucedo, jornalista de Santa Cruz de La Sierra.

Carla era comentarista esportiva para programas de rádio desde 2011, mas foi apenas em 2019 quando a televisão boliviana decidiu dar espaço para que uma mulher fizesse sua estreia. A primeira comentarista mulher trabalhou, por exemplo, na transmissão da última Copa América.

“Foi sem dúvida a experiência mais importante da minha carreira. Sinto que tenho um longo caminho a percorrer, mas tenho orgulho do que fiz até agora. E espero que mais mulheres se destaquem em grandes eventos esportivos, sempre existirá motivo para as críticas. O passo que eu dei, abre espaço para outras mulheres comentarem na televisão, para jogarem futebol, ou para liderarem uma equipe. O mundo está em transformação.”

Carla Saucedo

Agora é que são elas
Carla Saucedo, a primeira comentarista de futebol da Bolívia estreou na função em 2019.

Antes da pandemia, Carla era repórter de campo e muitas vezes ficava na porta dos vestiários aguardando pelos jogadores. Apesar de ser a única mulher, ela contou que nunca houve falta de respeito ou intimidação: “Eu sempre fui tratada com muito respeito, com cuidado. Nunca me fizeram sentir menos por ser mulher. A mulheres estão buscando e conseguindo espaços nesse meio. Homens que antes desacreditavam da opinião de mulheres, agora me pedem opinião sobre os jogos” disse.

Por lá, são elas as verdadeiras donas do jogo.


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Como citar

BURGOA, Karla. Agora é que são elas. Ludopédio, São Paulo, v. 156, n. 28, 2022.
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