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Ainda há tempo

Felipe Pereira de Queiroz 18 de maio de 2018

O problema que compartilho com minha geração foi expressivamente apontado por um belíssimo trecho do livro a “Era dos Extremos” do historiador Eric Hobsbawm.

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo o ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importante que nunca no fim do segundo milênio.

Por algum motivo – que talvez possa ser explicado por teorias sociológicas da modernidade líquida ou da sociedade pós-moderna da informação – a geração pós anos 1990 perdeu algo de essencial na percepção das conexões da história e do tempo. Posso aqui me incorrer em análises precipitadas ou mesmo tendenciosas de alguém que como dizia Hobsbawm faz história do seu próprio tempo. Pedindo licença logo de início ao leitor, esse texto fala de momentos e temas que atravessam outros viventes do mundo do futebol, mas com impressões muito particulares e com um notório caráter nostálgico. E é com esse termo que começo dialogando com Hobsbawm.

O discurso e os relatos sobre um dado tempo são permeados de memórias afetivas, as quais sofrem muitas vezes com sua legitimação como narrativa válida para se debater o presente. De alguma forma muito característica da nossa sociedade fundada na razão, importantes emoções são descartadas quando estamos falando de “coisa séria”. O riso e o choro parecem habitar outra dimensão que não a humana quando pensamos formas e soluções para o mundo. Digo isso associando ao futebol e todo o diálogo estabelecido com o meio material. Apesar de sua construção emotiva ser bastante explorada economicamente, a parcialidade no que se escolhe utilizar é muitas vezes cruel. Quando resgatamos narrativas para dizer o quanto o futebol do passado era bom e que nos reconhecemos cada vez menos nesse “novo futebol” muitos dirão que isso é uma heresia a modernidade. Alguns setores progressistas dirão que o futebol hoje é mais inclusivo, que acolheu outros segmentos sociais e isso é notável e extremamente importante. O machismo, a homofobia são pautas importantes que a cultura do futebol demorou e ainda em alguns contextos engatinha para superar. Mas o que deixamos pra trás nessa história? Que ruptura é essa que para alguns é uma nostalgia cada vez mais desesperançosa e para outros parece caminho “natural” e inevitável dos nossos tempos? Essas e outras perguntas são algumas que me acompanham e que ainda tenho poucas respostas. Entretanto duas situações no meu passado recente talvez nos ajudem a pensar sobre essas e outras questões.

Resgatei em minhas publicações pessoais um texto escrito no dia 21 de Abril de 2013, ocasião em que voltava do meu primeiro jogo após a reinauguração do estádio Mineirão para a Copa do Mundo de 2014. Peço licença pra reproduzi-la na íntegra:

DECEPÇÃO, REVOLTA E TRISTEZA são os únicos sentimentos existentes quando vemos o lugar de tantas emoções e paixões, chamado Mineirão, reduzido a essa vitrine ridícula. Hoje sai de casa para assistir o meu primeiro jogo no Mineirão. Desde a chegada até o final do jogo o que pude ver foi um espaço ridiculamente mal administrado, com um despreparo, um amadorismo inconcebível. É difícil expressar com palavras a revolta que sinto ao ver R$ 771.739.248,13 de dinheiro público, fruto de impostos de milhões de brasileiros, sendo gastos de forma obscura e resultando nessa porcaria que nada tem haver com história do futebol brasileiro. Eu sinceramente não entendo o mundo que queremos e estamos criando. Temo que essa elitização se agrave e o futebol aos poucos perca de vez toda a sua magia. ADEUS MINEIRÃO!

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Atlético x Vila Nova – no Mineirão – Campeonato Mineiro 2013. Foto: Bruno Cantini.

Apenas contextualizando foi uma partida realizada entre Atlético-MG e Vila Nova pelo campeonato estadual, em que marca a primeira vitória do Atlético no novo Mineirão. Detalhe que em pesquisa recente vi que no mesmo 21 de abril aconteceram as comemorações da eleição do Presidente Horácio Cartes – que realinha os interesses políticos do nosso vizinho Paraguai às lógicas de uma política neoliberal conservadora. Além de ser comemorado no Brasil o controverso dia de Tiradentes. Para além das digressões importantes que se conectam a um certo modelo de mundo que o futebol está inserido e compartilha dele. A experiência com a reinauguração do Mineirão foi um choque. O estádio ficou quase três anos fechado para reforma depois de um show memorável do Skank que despede do antigo Mineirão enaltecendo a cultura mineira e do futebol. Antes disso, pelo menos pra mim, foram quase 15 anos como torcedor assíduo de quarta e domingo. Parte dessas memórias permeou a minha infância e adolescência, assim como de outras gerações. Ir ao estádio para muitos é ritual que se renova toda semana e com ele tradições e narrativas que formaram o que podemos chamar de uma identidade coletiva do torcedor belorizontino. Por isso mesmo quando a memória “material” falha ou mesmo é inexistente os torcedores sentem, escutam e enxergam gols de partidas que nunca estiveram presentes. Esse ritual quase sagrado foi estranhamente colocado à prova naquele no 21 de Abril de 2013.

Os cheiros, sentido no qual conseguimos acessar memórias quase inatingíveis, não me remeteram a qualquer lembrança daquele estádio. A alquimia dos churrasquinhos; tropeiro; ovo frito; cerveja deram lugar a incipientes invólucros de alumínio e vidro no qual podíamos observar algo em seu interior que se parecia com comida. Contudo não a comida que meu paladar foi historicamente formado a se despertar nas manhãs de domingo. Algo naquela atmosfera visual pouco inteligível para meu senso de torcedor simplesmente se expressava mais como uma reprodução de um espaço pasteurizado – por uma lógica colonizada e pseudo moderna – do que o reduto de grandes emoções e paixões.

A imagem que me marcou ao entrar pela primeira vez no Mineirão, aquele lance sequencial de escadas que – por algum motivo que não se explica se vive – tinha que ser percorrido correndo aos saltos. Ao final os bares eram o convite à degustação do pré-jogo e quando a fome passava ou mesmo a empolgação era demais se entrava naquilo que para mim era um portal. A memória da primeira vez que entrei no estádio e olhei ao meu redor pouco tinha haver com o que vi no dia 21 de Abril de 2013. A organização do espaço, o modo de se comportar, o “show do intervalo”, estavam querendo recontar a história sem perguntar ao protagonista, narrador personagem – o torcedor – se ele compartilha dessa nova forma de se viver o futebol.

Usina Solar do Mineirao - Parceria entre Secopa e Cemig. Credito: Renato Cobucci/Imprensa MG Data: 16-05-2013 Local: Estadio Mineirao
Mineirão. Foto: Renato Cobucci/Imprensa MG.

Quatros anos se passaram entre essa experiência traumática e o fatídico Santa Cruz e Goiás assistido no dia 19 de setembro de 2017 no Recife. Muitas coisas aconteceram nesse meio tempo: copa das confederações; manifestações de junho; “não vai ter copa”; “vai ter copa”; 7×1; golpe; impechament; fora temer. Seria difícil elencar tantos acontecimentos, antidemocráticos, diga-se de passagem, em tão pouco tempo, mas o fato é que estava eu me dirigindo ao histórico e consagrado estádio José do Rego Maciel, o famoso Arruda. Estádio que merece abrir aspas para sua história contada no trecho escrito pelo Jornalista Breno Costa ao Jornal Superesportes de Pernambuco:

Essa é uma história que precisa ser lembrada para o mais jovens. Eles precisam ter noção ainda maior da capacidade de mobilização dos tricolores. É a prova cabal e gigante do amor de uma nação por um time de futebol centenário. É a história do Arruda. Símbolo maior da união entre o clube e seus seguidores. O ano era 1965. A torcida decidiu aceitar a convocação. Era preciso doações para tirar o sonho do papel. Construir um colosso. De imediato, o espaço em que hoje está o parque aquático ficou cheio. De tijolos, cimento, areia, ferro. E amor. Estava fincada a base da nova casa coral. Lembram os tricolores da velha guarda que o local onde hoje está o parque aquático ficou tomado de materiais de construção em 15 dias. Diziam ter o suficiente para dar cara a primeira versão do estádio. E foi assim. O clube precisava de doações para ter a sua casa. O coração tricolor começou a pulsar (…).

A atmosfera do jogo pouco tinha a ver com a memória coletiva recente das épicas e apaixonadas campanhas que fizeram o Santa Cruz ter uma das maiores médias de público do Brasil jogando a Série C e acessar sequencialmente a elite do futebol brasileiro. Na verdade se tratava de um confronto direto da degola da série B de 2017, com a vitória o Santa Cruz sai da zona de rebaixamento e colocava o Goiás. Apesar do apelo dramático a chegada ao estádio parecia dizer um pouco sobre o momento do time. Entretanto alguma coisa aconteceu na caminhada até a bilheteria, comprei o ingresso horas antes do jogo na bilheteria por 5 reais, que me fizeram visitar memórias que pareciam adormecidas no meu inconsciente. Daí em diante apesar de não ter vivido aquele espaço específico na minha infância e adolescência algo naquele contexto simplesmente me conectou novamente com todas as lembranças que pareciam longínquas. A forma de entrar no estádio; a arquibancada de concreto; o cheiro das barracas de churrasquinho; a torcida; o copo de cerveja lançado para alto em comemoração ao terceiro gol do tricolor; e antes que eu me esqueça, ainda teve espaço para ovo de codorna no saquinho, um tom regional e inusitado para o paladar de estádio mineiro. Para não dizer que o romantismo personalista tenha afetado minha descrição dos fatos, as experiências sensoriais e dessa memória afetiva foram compartilhadas com um torcedor que tem muito mais credibilidade que eu, meu pai. Acho que essa emoção compartilhada de tempos vividos se resume numa frase nostálgica, com tom contraditório de pesar e esperança, dita por ele ao final da partida: “isso é futebol”.

Existe algo de metafísico – para além da óbvia imanência da dignidade da pessoa humana – em compartilhar um mundo de fato mais inclusivo. A experiência do futebol é mais uma dessas microesferas sociais que podemos usar para pensar a realidade. E o torcer pode ser sim uma experiência transformadora em um mundo cada vez mais segregado. O problema é quando essas experiências vão diminuindo seu alcance social e selecionando a convivência em um dos espaços historicamente mais populares. Peguemos as importantes pautas progressistas pós-modernas do machismo e da homofobia e fazemos andar lado a lado a um futebol verdadeiramente da diversidade.

E que me perdoe Platão, mas o melhor do futebol, o mais essencial desse jogo entre quatro linhas, não habita o mundo das ideias e sim o dos sentidos e dos sabores. E é através dessa epifania sinestésica que acredito que o futebol, assim como a vida, é um grande banquete a ser degustado e compartilhado com o maior número de pessoas possível. Termino dizendo: obrigado Santa Cruz e obrigado Nordeste por nos dar esperança em tempos tão difíceis, o futebol respira e o Brasil… também.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felipe

Mestrando em Estudos do Lazer pela UFMG e membro do GEFuT.

Como citar

QUEIROZ, Felipe Pereira de. Ainda há tempo. Ludopédio, São Paulo, v. 107, n. 18, 2018.
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