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Ainda sobre as Arenas da Copa: um outro olhar

O tema já foi visto e revisto. Mas tive de voltar a ele nesse texto. Não apenas pelas novas polêmicas que cercam o Consórcio administrador do Maracanã e os duelos entre os clubes, notadamente Vasco e Fluminense, para definir seus espaços no estádio. A despeito dessas novas notícias, meu texto é menos factual. Explico o porquê. Normalmente escrevo além da conta em meus trabalhos acadêmicos e sempre sobram muitas páginas não aproveitadas. No caso específico desse texto, trata-se de uma breve reflexão sobre os estádios, que se inseria em um artigo onde discutia a questão do corpo no futebol do Rio de Janeiro. Justificativas prestadas, posso começar o meu texto.

A torcida no futebol encontra-se em uma dimensão do estádio previamente designada. Obviamente em conquistas importantes de seu clube era comum os torcedores invadirem o gramado. Essa era uma cena emblemática do antigo Maracanã, por exemplo. Assim como os jogadores, os torcedores sujeitam seus corpos à disciplina e à hierarquização de um estádio. Organização, aliás, que se aumenta e se complexifica ano após ano. Os espaços dentro do estádio são cada vez mais setorizados, compartimentados e divididos por classes socioeconômicas.

De um lugar que congregava as diferenças, os estádios de futebol tendem a mimetizar muito mais os novos arranjos da sociedade. Vemos isso de maneira bem clara na atual reforma do Maracanã1. Estádio este que já vinha sofrendo intervenções no sentido de torna-lo moderno desde o início do século XXI. A modernização trouxe a extinção da geral e de uma peculiar parcela de torcedores conhecidos como “geraldinos” (assistiam aos jogos de pé, sem nenhum conforto e com uma visão muitas vezes apenas parcial da partida).

Iluminação na cobertura do Maracanã. Foto: Érica Ramalho – Governo do Rio de Janeiro.

O discurso que acompanha essas transformações fala em melhor qualidade do espetáculo, agora tanto esporte quanto entretenimento, para os espectadores, maior segurança e melhor qualidade de imagem para as TVs que cobrem as partidas (além de outras facilidades de acesso ao estádio). Na prática, normalmente tem-se a redução do tamanho de público nos estádios e um consequente aumento de preços. O Maracanã, que já recebeu públicos superiores a 100 mil pessoas, possui agora lotação máxima definida em 76 mil pessoas (anteriormente, o limite estava em 86 mil)2.

Gostaria de evidenciar um outro aspecto menos lembrado. Há nessa “evolução” dos estádios de futebol um componente que diz respeito ao “corpo” das torcidas e que é bastante premente. Ora, se pensarmos nos jogos do início do século XX (vide figura abaixo), observaremos públicos ainda não tão massificados e um certo código de etiqueta na vestimenta trajada durante esse verdadeiro evento social das elites. Com a popularização do esporte, impulsionada pela profissionalização dos atletas, e a entrada de um público formada por integrantes das classes mais populares havia a necessidade de construção de maiores estádios que pudessem abrigar essas novas massas apreciadoras do esporte bretão. No Rio, primeiramente São Januário, com capacidade oficial para 24.584 pessoas em sua inauguração (em 1927), e o próprio Maracanã, construído para a Copa de 1950, eram palcos para a presença de plateias volumosas e de múltiplas origens.

Laranjeiras no início do século XX. Fonte: Acervo FluMemória (reprodução)3

Agora, parece-me que essa tendência plural tende a se reduzir. Por mais utópico e romântico que soe, o desenho clássico dos estádios que citei favorecia uma integração entre os corpos tanto de ricos quanto de pobres nos mesmos espaços. O novo Maracanã com seus inúmeros camarotes e ingressos a preços provavelmente elevados tende a, como já disse, limitar a mistura e levantar fronteiras. O interessante disso é que esse processo de delimitar os espaços é algo bastante presente na própria arquitetura das cidades, com bairros que designam status social (o Rio de Janeiro no início do século XX desenvolveu-se nesse sentido). Por outro lado, nas ruas, o usual é predominar o contato entre os diferentes. Os estádios, assim, por diretrizes da autoridade maior do futebol, a FIFA, optam por reproduzir uma divisão mais próxima dos bairros que da realidade das ruas.

Essa segregação encontra eco em uma interpretação da atual condição humana, tida como dotada de “passividade corporal em demasia”: “Hoje em dia, ordem significa justamente falta de contato” (SENNET, 2010, p. 18). Justamente esse afastamento entre os corpos humanos é buscada nos novos estádios entregues para a Copa das Confederações e que será também o padrão na Copa do Mundo. Cada vez mais, o “individualismo moderno sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade” (Ibid., p. 360).


Referências

SENNET, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 1999.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fausto Amaro

Doutorando em Comunicação da Uerj e bolsista da Capes. Mestre e graduado em Comunicação Social, com habilitação em Relações Públicas, ambos pela Uerj. Atua no projeto de pesquisa "Meios de Comunicaçao, Idolatria, Identidade e Cultura Popular" sob orientação do Professor Ronaldo Helal. É um dos admistradores do blog "Comunicação, Esporte e Cultura".

Como citar

MONTANHA, Fausto Amaro Ribeiro Picoreli. Ainda sobre as Arenas da Copa: um outro olhar. Ludopédio, São Paulo, v. 50, n. 4, 2013.
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