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Ainda somos os mesmos: o futebol como justificativa para reprodução de preconceitos

Luciane de Castro 23 de abril de 2017

Passei por um relacionamento abusivo. Passei por violência doméstica. Passei. Sobrevivi e me fortaleci nesta experiência. Encontrei espaço para avaliar, com muito cuidado e empatia, as razões de quem praticou a violência contra mim. Não cabem generalizações sobre o assunto, mas o gatilho é quase sempre o mesmo: reprodução de um ambiente violento e desrespeitoso.

Faço esta introdução para relatar os ataques sofridos pelo perfil do Futebol para Meninas no Twitter, na ocasião do jogo entre Palmeiras x Peñarol em que o jogador Felipe Melo relatou ter sido vítima de injúria racial e respondeu com uma frase machista.

https://www.youtube.com/watch?v=wLZ01Ig8CTM

Após meu comentário a respeito da declaração do jogador, recebi uma tempestade de “ofensas”. As aspas são necessárias para mostrar que de alguma forma aquilo tudo também passou, mas não em silêncio.

Foram vários que passaram bem longe da compreensão dos 140 caracteres. Foram vários – e várias –  os que, muito naturalmente se utilizaram das redes sociais para reverberar os padrões de conduta que não admitimos mais.

Contei nos dedos, dois ou três perfis, que discordaram de modo educado. Ainda que não tenham compreendido o que eu dizia, debateram com maturidade e a estes fiz questão de responder. Os demais apenas expuseram o que ainda somos, o que ainda nos achamos no direito de ser: no mínimo mal orientados.

Me senti no século XIX. E gargalhei de algumas “ofensas” como “peluda”. Veio então aquela certeza, diante das observações cotidianas – nada acadêmicas, que fique claro – de que o senso crítico deve ser estimulado o tempo todo, caso contrário, as reproduções negativas de toda ordem, contaminarão todas as próximas gerações. E não só de homens, como de mulheres também.

No amplo campo do futebol essa liberdade para as reproduções preconceituosas são logo “justificadas” com:
A – “Mas no calor do jogo, o que você espera?”
B – “Mas com a cabeça quente o cara fala qualquer coisa mesmo”
C – “Mas isso fica dentro de campo”

No que respondo:
A – No calor do jogo eu espero que se fale APENAS do jogo
B – Com a cabeça quente qualquer um é capaz de matar. Isso se justifica?
C – Mas se relacionamos o futebol com tudo nessa vida, por que os preconceitos tem liberdade para se movimentar no campo, nas arquibancadas, nas discussões?

Me pego lembrando da hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas e da razão de não ter aderido a este movimento especificamente. É falacioso no que concerne a abraçar TODAS as mulheres. E digo isso porque foram poucas as manifestações em defesa do perfil do Futebol para Meninas. E duvido que não tenham visto o que aconteceu naquele dia. Aprendi a me defender de ataques machistas e violência e não dependo de ninguém para me defender, mas a sororidade na ocasião não se deu tanto quanto se deu com a funcionária da rede golpe.

Quer dizer, pura babação de ovo e seletividade. Mulheres morrem todos os dias vítimas do feminicídio. Negros morrem todos os dias de maneira perversa e racista. Mas sigamos, porque sobrevivi a um agressor e isso já é uma bela vitória. Todo o resto a gente tira de letra. No futebol mais ainda!

Voltando às justificativas mais esdrúxulas para reproduzir discursos racistas, machistas, xenófobos e homofóbicos no futebol, volto a minha história e as observações acerca de quem reproduziu tudo o que viveu dentro de casa: violência e alcoolismo. Se um micro ambiente repleto de desrespeito gera indivíduos com sérios problemas de auto estima e violentos, por qual razão as pessoas acreditam que o futebol não pode ser um agente pernicioso de condutas semelhantes?

Ora, é preciso que nos decidamos quanto à importância do futebol em nossas vidas. É preciso que definamos se ele é a representação dos nossos últimos cem anos de existência ou se ele é um universo paralelo, um joguinho de realidade virtual ou qualquer superficialidade que o valha.

O jogador Felipe Melo, da SE Palmeiras, em jogo contra a equipe do CA Peñarol, durante partida válida pela fase de grupos da Copa Libertadores, na Arena Allianz Parque.
O jogador Felipe Melo, do Palmeiras, em jogo contra a equipe do Peñarol, durante partida válida pela fase de grupos da Copa Libertadores, na Arena Allianz Parque. Foto: Cesar Greco/Ag Palmeiras/Divulgação.

Se exigimos respeito, devemos agir com respeito com o outro. É regra básica. Não desferimos contra o outro, as agressões que não queremos sofrer. Queremos ir ao estádio e ser respeitadas mas na hora de discordar nas redes sociais apelamos para ofensas machistas? Levantamos a bandeira do #MexeuComUmaMexeuComTodas mas não defendemos todas? ‘O futebol é minha vida’ mas age como se ele estivesse numa outra dimensão, alheia ao nosso cotidiano, práticas e pensamentos?

No final dessa conta, nós ainda somos os mesmos e vivemos como tudo o que queremos combater, mas carecemos de critérios pessoais – experiências ruins basicamente, infelizmente – para não reproduzirmos os mesmos comportamentos absurdos.

Neste quesito, o futebol representa de maneira eficiente nosso bruto cotidiano, lamentavelmente.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. Ainda somos os mesmos: o futebol como justificativa para reprodução de preconceitos. Ludopédio, São Paulo, v. 94, n. 26, 2017.
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