A queda de Muammar Gaddafi colocou a Líbia sob os holofotes do mundo em 2011. O homem que governava o país do norte da África com mão de ferro desde a década de 1960 foi deposto, capturado e morto durante a chamada “Primavera Árabe”.
Um grande país que ocupa um território maior que o Egito, mas não tem a mesma fama dos vizinhos, nem a mesma tradição futebolística, a Líbia passou anos e anos escondida do mundo. Porém, é claro que há muitas ligações de Gaddafi com esse esporte tão popular. Seu filho protagonizou histórias que parecem anedóticas, mas são pura realidade.
Esse texto é um complemento ao episódio de julho de 2020 do Podcast Copa Além da Copa, feito por Carlos Massari e Aurélio Araújo, sobre o papel do futebol nos processos de independência do Norte da África. Clique aqui para ouvi-lo!
A queda da monarquia e a ascensão de Gaddafi
A Líbia conseguiu a sua independência da Itália em 1947. O período de colonização foi terrível, levando à morte de muitos indígenas locais e a uma grande opressão do povo nativo. Quatro anos mais tarde, veio a liberação do controle dividido por França e Reino Unido que fora implementado após a Segunda Guerra. Uma monarquia, com o Rei Idris I à frente, foi formada.
Então um país pobre e cheio de sequelas do colonialismo europeu violento, a Líbia rapidamente viu sua história mudar com a descoberta de grandes campos de petróleo. A coroa se enriqueceu, o povo não. As revoltas se tornaram mais ferozes até que um golpe militar, com Gaddafi à frente, aconteceu em 1969.
Gaddafi, que tinha o socialismo árabe como ideologia, denominou-se “O líder irmão e guia da revolução”. Em uma área de influência capitalista em tempos de Guerra Fria, rapidamente o país foi fechado para olhos ocidentais. A imprensa não podia entrar e tudo o que acontecia era um mistério.

Há relatos de muitos expurgos e de grande eliminação de opositores. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que Gaddafi realmente prezava pela igualdade. Até mesmo no que diz respeito a questões de gênero, a Líbia esteve muito à frente de seu tempo: O governante proibiu diferenças salariais, casamentos de meninas menores de 16 anos, criou comitês revolucionários femininos e obrigou que as duas partes demonstrassem consentimento antes de qualquer casamento.
Com Gaddafi, a Líbia se tornou o país de maior IDH e maior renda per capita da África na década de 1970. Uma rede de tubulações foi construída para levar água limpa e potável para todo o território, mesmo nas regiões desérticas. A educação superior se tornou gratuita. Ao mesmo tempo, houve um envolvimento em diversas guerras por todo o continente africano, especialmente na Tanzânia e no Chade, e qualquer forma de oposição ao governo se tornou ilegal.
Por mais que a figura de Muammar Gaddafi seja controversa e desperte grandes reações de amor e de ódio em qualquer análise, seu filho foi quem realmente teve um perfil anedótico, quase que caricato em relação a ditadores e futebol.
O “rei” do futebol da Líbia
Nascido em 1973, Al-Saadi Gaddafi deu a si mesmo o título de “Rei do Futebol da Líbia”. Para que se tenha uma ideia de a que ponto esse delírio chegou, uma lei apontava que o filho do “líder irmão e guia da revolução” era o único jogador de futebol do país que podia ter o seu nome mencionado pela imprensa.
Al-Saadi era, ao mesmo tempo, presidente da Federação de Futebol da Líbia, capitão da seleção nacional e jogador do Al-Ittihad de Tripoli. Com seu dinheiro, ele chegou a comprar vagas em alguns clubes europeus, como Perugia e Udinese, da Itália, e Birkirkara, de Malta. Mais: contratou ninguém menos do que Diego Maradona para ser seu “consultor técnico pessoal”.
Em nenhum desses times estrangeiros, porém, Al-Saadi teve o controle que tinha na Líbia. Se, na Itália, ele não chegou a somar nem 30 minutos jogados em partidas oficiais, em seu próprio país as coisas eram diferentes: relatos dão conta de que ele agredia jogadores que passavam a bola para ele de uma forma que não o agradasse. Outras punições incluíam raspar o cabelo do jogador contra sua vontade, ou até mesmo soltar seus cães em cima dele.
Podendo recorrer ao seu próprio poder familiar, Al-Saadi Gaddafi chegou a ponto de combater uma suposta “insurreição” contra o regime por causa de um time adversário.
A briga por causa do nome
Você já deve ter ouvido falar em algum clube chamado Al-Ahly. O mais famoso, claro, é o egípcio, considerado o segundo time com mais títulos internacionais no mundo, atrás apenas do Real Madrid.
O nome Al-Ahly significa “nacional” e é bastante popular em países árabes: além do clube no Egito, há homônimos na Arábia Saudita, no Sudão, no Bahrein, no Líbano, no Catar, nos Emirados Árabes Unidos e é claro, na Líbia. O Al-Ahly de Tripoli, capital do país, contava com a simpatia do filho de Gaddafi.
No entanto, o Al-Ahly mais antigo do país era de Benghazi, a segunda maior cidade da Líbia, um clube tradicional. Sempre houve uma disputa sobre qual deles seria detentor de fato do direito de utilizar esse nome. E Al-Saadi queria fazer a balança pender a favor do clube da capital.
Então, no ano 2000, ele passou dos limites. Comprou os melhores jogadores do Al-Ahly de Benghazi, desfalcando o time como podia, além de subornar árbitros para garantirem que o time perdesse suas partidas. Estava dando certo e o clube estava prestes a ser rebaixado pela primeira vez, até o dia de um jogo entre os dois Al-Ahly virar o estopim de algo maior.
Uma revolta futebolística
Naquele dia, o Al-Ahly de Benghazi, desesperado pela vitória e jogando em casa, saiu na frente. No segundo tempo, porém, o Al-Ahly de Tripoli virou graças a dois pênaltis para lá de duvidosos e um terceiro gol em flagrante impedimento. Em protesto, os jogadores tentaram deixar o campo, mas foram forçados a voltar e validar aquele resultado. A torcida do time de Benghazi decidiu que aquilo já era demais.
Al-Saadi Gaddafi, presente nas arquibancadas, começou a ser vaiado por todo o estádio. A multidão então invadiu o campo e, em seguida, as ruas, numa revolta popular motivada por um resultado injusto no futebol. Num dos gestos mais simbólicos, algum torcedor colocou a camisa de Al-Saadi num burro e soltou o animal no meio do protesto.
As forças do regime agiram para conter os manifestantes. Cerca de 80 pessoas, entre torcedores e funcionários do Al-Ahly de Benghazi, foram presas. Mas só aquilo não seria suficiente para aplacar a raiva do filho de Gaddafi. Ele queria a destruição do clube.
No dia 1º de setembro de 2000, aniversário da revolução liderada por Muammar Gaddafi 31 anos antes, soldados invadiram a sede do Al-Ahly e destruíram tudo que podiam encontrar pela frente, incluindo a sala de troféus. E, como se isso não fosse o bastante, a equipe foi banida de disputar competições esportivas até 2005, quando a pressão internacional fez com que ela tivesse permissão de retomar suas atividades.

Uma torcida que não esquece
Passados alguns anos, a família Gaddafi percebeu que não era uma boa ideia se colocar contra o clube mais popular de sua segunda cidade mais habitada. Portanto, no retorno do Al-Ahly de Benghazi ao futebol, o regime doou um terreno ao time para que pudesse reconstruir sua sede, além de prometer financiamento para erguer um centro de treinamento – o que nunca foi cumprido.
Mas, ainda assim, exigia-se que o Al-Ahly jogasse suas partidas mais importantes sem torcida, já que eles haviam se comportado daquela forma em 2000.
Portanto, a popularidade dos Gaddafi permaneceu em baixa na cidade mesmo com a “devolução” do time de futebol. Não é coincidência que foi em Benghazi que aconteceram as principais manifestações contra o regime em 2011, que levariam à Guerra Civil Líbia e que terminariam com a deposição de Muammar Gaddafi.
No início da revolta, Al-Saadi tentou pela última vez utilizar o Al-Ahly de Benghazi como ferramenta política: enviado pelo pai, foi à cidade dizer para a população que corrigiria os erros do passado, transformando o clube na maior potência do futebol líbio.
Ninguém acreditou nele.