154.18

Alegrias do povo

José Costa Júnior 12 de abril de 2022

Numa das entrevistas da série documental Elza e Mané: Amor em Linhas Tortas, Jairzinho, o Furacão Copa, se emociona ao lembrar da primeira vez que chegou perto de Garrincha. Já famoso e consagrado no Botafogo, o homem que era a “Alegria do Povo” recebeu o olhar admirado do jovem jogador que chegava a General Severiano e observava o ídolo “de cima a baixo”, questionando como aquele corpo podia fazer o que fazia. Em outra cena, lamenta o fato de um dia ser chamado do banco de reservas para substituir Garrincha, que era simplesmente um dos motivos pelos quais jogava futebol. A série aborda a ascensão de Mané no Botafogo e na Seleção Brasileira e as várias quedas posteriores são apresentadas em paralelo com a história de Elza Soares, a então jovem cantora que fica famosa pelo talento e por responder à provocação jocosa do grande Ary Barroso num programa de rádio, afirmando que “vinha do Planeta Fome”. Os quatro episódios da série revelam as histórias em separado e conjunta desses dois ícones da cultura brasileira, suas lutas e resistências, contadas a partir daqueles que um dia estiveram próximos dos dois. Além disso, a produção aborda também aspectos e contextos sócio-históricos do Brasil que são relevantes para entender o que somos.

Elza Garrincha
Fonte: divulgação

No caso de Elza Soares, temos o retrato de uma jovem mulher brasileira, bisneta e neta de escravizados, que sobrevive às brutalidades da pobreza extrema, se casa e torna-se mãe muito cedo, mas que apresenta um grande e diferenciado talento para a música. O canto de Elza envolve traços inovadores da experiência artística e por isso se tornará famosa e obterá grande reconhecimento. Já no caso de Mané, o desafio seria maior: mesmo com talento considerável, seu corpo não possui as características que se espera de um atleta profissional de futebol: suas pernas são tortas, seu andar é irregular e desconfia-se de suas capacidades racionais. No entanto, o Botafogo aposta e Garrincha responde, tornando-se “O Gênio das Pernas Tortas”, herói do povo brasileiro que dribla os defensores e as dificuldades do destino.

A série acompanha o encontro entre essas duas potências, que será decisivo para a história de ambos. No auge dessa união, Mané dedicará uma Copa do Mundo para Elza Soares, sua musa e mulher, enquanto Elza dedicará boa parte de sua vida a valorizar e manter a existência de Mané. No entanto, nem tudo (ou quase nada) serão flores: Garrincha é um homem casado, pai de 7 filhas, situação que chama a atenção do moralismo brasileiro da década de 1960 e faz do casal uma “novela” a ser acompanhada pelo país. Além disso, as dificuldades de Garrincha para manter o alto nível esportivo, a bebida e até mesmo a perseguição política – que passa a incomodar os dois e que os leva para a Itália – fazem com que as coisas fiquem cada vez mais difíceis. Algumas tragédias irão ampliar o desafio das vidas de Elza e Mané, porém, sempre com tentativas posteriores de recomeço, seja na Europa (os dois), em Olaria (ele) ou nos Estados Unidos (ela). Situações de violência, o alcoolismo, frustrações e culpas, acabarão por separar o casal, mas o forte sentimento ficará (o que é reconhecido por ambos).

Além de Jairzinho, nomes importantes do panteão esportivo e cultural do país estiveram próximos das vidas de Elza e Mané e apresentam suas versões para a série, confirmando a distinção desse casal tão revelador sobre o Brasil: Rivellino, Carlos Alberto Torres, Afonsinho, Chico Buarque, Sandra de Sá, Caetano Veloso, Ruy Castro entre outros. Alguns familiares, diretamente impactados pelas decisões e acontecimentos das vidas de Elza e Mané, também são entrevistados, revelando aspectos afetivos da vida dos dois. Chama a atenção o caráter invasivo das entrevistas da época (um jornalista entrevista Garrincha bêbado e outra faz perguntas muito pessoais para Elza Soares). De modo geral, a série documental evita o sensacionalismo ou versões simplificadoras, afastando algumas visões de senso comum dessas histórias, como uma versão que apontava que Elza Soares havia atrapalhado a carreira de Mané Garrincha (trata-se do contrário: sem Elza, o Brasil perderia Mané ainda mais cedo). Mostra também as complexidades, fragilidades e sensibilidades dessas suas pessoas do século XX e seu entorno, humanizando-as. Oriundos de uma sociedade excludente e desumanizadora Elza e Mané vivenciaram os efeitos das estruturas nas quais existiam e foram alegrias do povo com seu talento e capacidade. No entanto, não há vítimas nem culpados, apenas a história.

Luiz Antônio Simas (historiador que também é um dos entrevistados da série) e Luiz Rufino apresentam no livro Encantamento: Sobre a política da vida (2020) uma reflexão sobre os modos de estruturação e realização da vida brasileira. Essa reflexão nos vem à mente após acompanharmos a série documental sobre Elza e Mané, pois pensa o modo como nos construímos como sociedade e como podemos escapar das determinações impostas por esse modo de organizar a vida:

“A colonização (pensamos a colonização como fenômeno de longa duração, que está até hoje aí lançando seus venenos), gera “sobras viventes”, seres descartáveis, que não se enquadram na lógica hipermercantilizada e normativa do sistema, onde o consumo e a escassez atuam como irmãos siameses; um depende do outro. Algumas “sobras viventes” conseguem virar sobreviventes. Outras, nem isso. Os sobreviventes podem virar “supraviventes”: aqueles capazes de driblar a condição de exclusão, deixar de ser apenas reativos ao outro e ir além, afirmando a vida como uma política de construção de conexões entre ser e mundo, humano e natureza, corporeidade e espiritualidade, ancestralidade e futuro, temporalidade e permanência. Uma disputa operada apenas no campo da política e da economia pode gerar ganhos efetivos, é claro. Mas o salto crucial entre a sobrevivência e a supravivência demanda um conjunto de estratégias e táticas para que saibamos atuar nas batalhas árduas e constantes da guerra pelo encantamento do mundo.”

Em tempos de desencantos, de crises e ressentimentos, quando nos afastamos uns dos outros e da vida por diversas razões, conhecer um pouco da história de Elza Soares e Garrincha na série documental Elza e Mané nos aproxima das experiências de pessoas que lutaram constantemente durante suas vidas para que pudessem ter sua humanidade e dignidade reconhecidas de algum modo. E mesmo para essas duas pessoas – seres quase mitológicos de nossa cultura e de talento raro e inquestionável – isso não foi fácil. Garrincha teve muitas e grandes dificuldades, mesmo sendo a Alegria do Povo. Elza Soares resistiu, vindo diretamente do Planeta Fome, numa terra onde sobreviventes e sobras-viventes pelejam para poderem ser considerados como “gente”. Elza e Mané, encantados que eram, nos encantaram e ainda encantam e provavelmente nunca precisamos tanto disso como agora.

Referências

Elza e Mané: Amor em Linhas Tortas (Série documental em 4 episódios), disponível no Globoplay.

CASTRO, Ruy. Estrela solitária: Um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Encantamento: Sobre política de vida. Mórula Editorial, 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

José Costa Júnior

Doutor (UFMG), mestre, licenciado e bacharel em filosofia (UFOP). Tenho interesse em estudos filosóficos, sociológicos, antropológicos e históricos sobre o futebol. Professor de Filosofia e Ciências Sociais do Instituto Federal de Minas Gerais - Campus Ponte Nova

Como citar

COSTA JúNIOR, José. Alegrias do povo. Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 18, 2022.
Leia também:
  • 174.15

    Garrincha, um craque em versos de cordel

    Elcio Loureiro Cornelsen
  • 167.24

    Garrincha: a construção do mito (1958-1962) [2a. e última parte]

    Denaldo Alchorne de Souza
  • 166.27

    Garrincha: a construção do mito (1958-1962) [1a. parte]

    Denaldo Alchorne de Souza