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Althea Gibson e a questão racial no esporte

Wagner Xavier de Camargo 10 de dezembro de 2017

Em fins de novembro passado celebramos, embora não nacionalmente, o “Dia da Consciência Negra”. A data reveste-se de importância mais por sua significação do que por ser considerada “mais um feriado” por parte de algumas pessoas. Feriados deveriam servir para que revisássemos nossas vidas, nossas ações sociais e os significados de nossas existências. O “Dia da Consciência Negra”, mais do que qualquer outra data, serve para nos lembrar da escravidão (simbólica e real) que nos cerca, da degradação das condições de vida de pessoas pretas e pardas em nosso país, do racismo nosso de cada dia. Para mim, este dia significa que o mundo não gravita em torno de nosso umbigo egocêntrico e nem se restringe aos nossos iguais (pessoas brancas, escolarizadas e de classe média).

Faz-me lembrar, igualmente, que a questão racial no esporte é algo muito importante e que nos afeta enquanto sociedade. Para além da condição de bem-sucedidos de determinados atletas afrodescendentes e pardos no futebol, há uma gigantesca quantidade de jogadoras de futebol afrodescendentes e pardas sem salários ou sobrevivendo com baixas rendas, outro tanto de suas congêneres no atletismo, no judô e mesmo no voleibol sem sequer receberem para treinar. Como bem sabemos, não se trata apenas da especificidade dessa ou daquela modalidade, nem de “consciência de classe”, mas sim de uma questão racial – diga-se, de passagem, que afeta não apenas o esporte.

Pois bem, pensando nessa problematização, na semana do feriado redescobri uma história há certo tempo conhecida e sobre a qual, inclusive, há um documentário de longa duração disponibilizado pelo Netflix. Trata-se de Althea Gibson, uma atleta afrodescendente norte-americana, que foi uma talentosa jogadora de tênis durante os anos 1950-60 e, mais tarde, uma profissional do Golfe.

Nascida numa pequena cidade na Carolina do Sul, numa família pobre sobrevivente da colheita do algodão, Althea mudou-se para Nova Iorque quando tinha três anos. Com a crise dos anos 1930 e os pais necessitando trabalhar para sustentar a família, a pequena Althea cresceu como “criança de rua” (uma figura quase naturalizada pela sociedade brasileira, mas que sempre causou estranheza na sociedade estadunidense). Viveu no Harlem, norte de Manhattan, se acostumou a brigar pelo que queria e a não ter horários, nem para refeições, muito menos para a escola. Com o pai teve uma relação difícil, pois ele a tratava como se fosse o filho que nunca teve.

Na adolescência Althea tinha amigos músicos do Harlem’s Cosmopolitan Tennis Club e foi lá que conheceu, nos espaços internos, as quadras de tênis que despertaram sua paixão pela modalidade. Nos anos 1940 esse local era o equivalente para o afro-americano médio ao de um clube branco de tênis, dentro de uma lógica segregadora de espaços. Althea era uma jogadora agressiva, incomum se comparada a outras jogadoras brancas da época. Nos relatos sobre sua trajetória como atleta fica claro que Althea adotou o tênis, não os valores burgueses da classe média/alta americana (particularmente branca) que o envolvia. Em pouco tempo ficou patente que não se identificava com a cultura esportiva propagandeada pelo Cosmopolitan, qual seja, portar-se como “bom atleta” para mostrar aos brancos que afrodescendentes também podiam jogar tênis.

Dado esse contexto de segregação de espaços, Althea ficou surpresa quando, em 1946, foi convidada a participar do Campeonato de Forest Hill, um local luxuoso em Nova York considerado a meca do tênis norte-americano e dos campeonatos estadunidenses da época. Ela teve alguns anos de preparação num centro de treinamento no sul do país, antes de sua participação efetiva em 1950. Fred Johnson, que era também coach mental de alguns jogadores de elite desse período (como John Luca e Arthur Ashe), foi o responsável por Althea, cujos custos eram pagos pela “elite negra” da sociedade estadunidense. O mais irônico relatado por ela em sua biografia (I always wanted to be somebody) é que além de treinador, Johnson também ensinava “boas maneiras” ao grupo de atletas afrodescendentes de tênis, com os/as quais trabalhava naquele centro.

Althea Gibson (Acervo de Gordon Park, 1949). Photo by eric.delcroix on Visualhunt.com / CC BY-NC-SA
Althea Gibson (Acervo de Gordon Park, 1949). Foto: Gordon Parks—The LIFE Picture Collection/Get) (CC BY-NC-SA 2.0).

Naquela época o mundo do tênis era diferente do que é hoje: ainda assentado na nobreza e na família, sem grandes prêmios em dinheiro. Os clubes estadunidenses eram muito restritivos e seletivos, sendo que em 95% deles não havia jogadores afrodescendentes. Toda essa questão era um grande engodo dentro do cenário esportivo nacional (dos EUA). Tenistas brancos/as ouviam especulações em reuniões da Associação Nacional de Tênis (USTA) sobre se Althea ia ou não ser autorizada a jogar com a elite (branca) da modalidade. Anos mais tarde e depois de muito preconceito, Althea foi a primeira jogadora afrodescendente a ser aceita nos campeonatos nacionais. Em pouco tempo passou a ser conhecida como a “primeira jogadora negra” de tênis de todos os tempos (inclusive na Europa, devido ao período em que viveu entre França e Inglaterra, sendo parceira de Angela Buxton).

Em 1956 Althea ganhou inúmeros campeonatos nos EUA e no exterior. Particularmente em 1957 conquistou o torneio feminino de Wimbledon e repetiu a façanha em 1958, sagrando-se bicampeã mundial no individual e em dupla. No plano nacional, bateu no individual Shirley Fry (em 1956), Louise Brough em 1957 (com quem havia jogado em 1950 em Forest Hill e perdido por dois sets a um) e Darlene Hard (em 1958) tornando-se tricampeã estadunidense.

Sua fama meteórica, no entanto, não a ajudou financeiramente. Continuava a jogar tênis amador, porém sem patrocínio ou mesmo sem técnico próprio. As conexões no tênis sempre ajudaram atletas homens, mas não acontecia o mesmo com as jogadoras mulheres (menos ainda com as consideradas coloured). O estigma permaneceu sobre Althea: aos 30 anos não tinha casa própria ou ainda não sabia o que aconteceria em sua vida. Virou profissional do tênis em 1959 e jogou algumas partidas promocionais junto aos Globetrotters em quadras de basquete, e com sua parceira Karol Fageros. Para tentar melhorar sua vida financeira, tornou-se jogadora de golfe no início da década de 1960.

Mesmo como ex-grande jogadora de tênis e já nos anos 1960 (para lembrar um momento da história em que os movimentos de minorias sexuais se organizavam nos EUA) ela não podia se trocar de roupa nos vestiários femininos por ser afrodescendente. Em 1964, Althea foi a primeira afro-americana mulher da Associação Profissional Feminina de Golfe. Passou o tênis, passou o golfe e a atleta foi esquecida e negligenciada pelo mundo esportivo. Nos anos 1990 a depressão a fez pensar em suicídio e a amiga Angela Buxton (jogadora britânica) foi quem a ajudou.

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Cartaz do filme.

Muito antes de o tenista afro-americano estadunidense Arthur Ashe ganhar Wimbledon tivemos Althea Gibson, uma atleta fenomenal, que a história oficial do esporte tende a esquecer: por ser mulher e ser não-branca. Se o feriado deste ano serviu de alguma coisa foi para me trazer à lembrança sua história, cuja trajetória me inspira e me comove.

O que acho trágico (para não dizer estranho) é a acusação que pesa sobre ela de “falta de consciência racial”. Em várias entrevistas da época e mesmo no documentário citado anteriormente, a tônica é a de que seu silêncio e suas esquivas em relação à condição de afrodescendentes no esporte são tomados como indícios de alienação, principalmente se comparados com os pronunciamentos incisivos e militantes de dois outros atletas de sua época, Arthur Ashe (acima citado) e Billie Jean King (tenista lésbica), ambos encampando discursos em voga sobre “movimentos sociais excluídos” e suas importâncias para o esporte.

Althea pode não ter se pronunciado assertivamente, mas sentiu na pele preconceitos contra si. Inúmeras vezes não pôde trocar de roupas em vestiários de clubes, não frequentou lugares da elite branca da época, foi preterida em relação a outras jogadoras menos talentosas (porém brancas) e terminou a vida esquecida num canto qualquer. Se isso não é ter consciência do lugar que ocupa, então não sei o que é.

Obviamente não preciso (ou precisamos) olhar para esses exemplos fora do país para nos comovermos ou buscarmos inspiração. Trarei, muito em breve, outros casos de mulheres brasileiras afrodescendentes e pardas no esporte brasileiro, tão menosprezadas e esquecidas pela história do esporte como Althea Gibson, essa fantástica jogadora de tênis!

Referências:

“Althea” (USA, 2015, 1h24’). Direção e execução Rex Miller. Disponível no Netflix.

GIBSON, Althea. I always wanted to be somebody. New York: Harper, 1958.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Althea Gibson e a questão racial no esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 10, 2017.
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