Andrade, deus metalúrgico e ourives: o Hefesto da Gávea
Hefesto é o deus grego do fogo e dos metais, um dos filhos de Hera – a deusa maior do Olimpo grego. Um deus operário que tinha o dom da técnica de trabalhar metais pesados (como o ferro), bem como era artífice de metais preciosos (como o ouro). Hefesto vivia nos subterrâneos de onde controlava o fogo dos vulcões, do qual utilizava o calor para moldar os metais. Por sua relação com os vulcões, no sincretismo romano, Hefesto é conhecido como “Vulcano”.
José Luís Andrade da Silva é um deus do panteão da Gávea, um dos filhos do Flamengo – o deus maior do futebol brasileiro. Um volante operário que, quando jogador, vivia à frente da zaga (protegendo-a dos adversários) e atrás do ataque (fazendo ligações magistrais com ele). Andrade tinha o dom de desarmar jogadas com um misto de técnica e força (o ferreiro que torce o ferro com o martelo no atrito com a bigorna). Andrade tinha a habilidade de criar contra-ataques geniais com seus lançamentos precisos à longa distância (o ourives que dá finesse e faz reluzir o ouro).
Hefesto se destacou pela capacidade técnica de dar vida aos metais (via fogo), moldando-os em forma de esculturas e objetos. Quando lemos sobre Hefesto (nos poemas épicos da Ilíada de Homero), observamos que ele é um deus que aparece sempre vinculado à bigorna, à marreta, ao suor, à fuligem, ao metal incandescente na forja. Mas ele não é um simples metalúrgico; ele é o deus artesão dos metais dos demais deuses do Olimpo grego. O deus que manipula os vulcões e o fogo.
Como jogador metalúrgico, Andrade era duro e resistente, e, ao mesmo tempo, maleável e dúctil: a exemplo do ferro. Como jogador ourives, Andrade foi o volante do título mais importante do Flamengo: o Mundial de Clubes de 1981. Vale registrar que Andrade jogou pelo Flamengo de 1976 a 1988.[1] Os 570 jogos com a camisa do Fla fazem dele o quinto jogador com maior número de partidas pelo clube. No Flamengo, na condição de jogador, conquistou quatro Campeonatos Cariocas (1979, 1979 – especial, 1981 e 1986); quatro Campeonatos Brasileiros (1980, 1982, 1983 e 1987); além, é claro, da Copa Libertadores da América e do Mundial de Clubes de 1981. Andrade também atuou como técnico, que, pelo Flamengo, conquistou o Campeonato Brasileiro de 2009. Por tal motivo é o atleta com maior número de conquistas de Campeonatos Brasileiro por tal clube: cinco vezes campeão[2].
Hefesto, na função de artesão do metal, foi quem confeccionou as armas de Atena, Aquiles e Hércules. Foi a ele que Zeus encomendou seu cetro, e Diomedes, a sua couraça. O arco e as flechas de Eros e as sandálias aladas de Hermes foram obras de Hefesto. Como ourives dava forma as joias das deusas; foi ele ainda quem moldou o belíssimo colar de Harmonia e o cinto de Afrodite. A carruagem com que Hélio (o deus sol) cruzava o céu durante o dia levando o fogo também é alvitre deste deus. Como hábil metalúrgico e refinado ourives, Hefesto fez todos os tronos do Olimpo.
Para além dos títulos, Andrade ficou marcado na história do Flamengo por fazer o sexto gol no emblemático “Flamengo 6 x 0 Botafogo”, no Campeonato Carioca de 1981. Esse jogo foi mais comemorado que um título, uma vez que nove anos antes (em 15 de novembro de 1972), o Botafogo cravou “6 x 0” no Flamengo. Tal placar passou a ser a chacota de todos os clássicos subsequentes contra o “Fogão”, até a geração de Zico devolver o placar. Naquele fatídico dia, então, o Flamengo abriu 4 x 0 no primeiro tempo, e depois do Galinho anotar de pênalti o quinto gol do jogo, a torcida do Mengão em coro suplicava “queremos seis”. Foi quando Andrade, aos 42 minutos do segundo tempo, acertou um chute de fora da área para fazer explodir a Nação. Nesse dia o Flamengo devolveu a faixa que o time da “estrela solitária” sempre trazia ao Maracanã: “BOTAFOGO, NÓS GOSTAMOS DE VO6”.
Hefesto era o mais engenhoso construtor do Olimpo; era também conhecido por por construir autômatos de metal que trabalhavam para ele. Um autômato caracteriza-se por ser um mecanismo que opera de modo espontâneo, pois age a partir de uma estrutura que lhe imprime determinados movimentos. Aqui podemos pensar os autômatos como metáfora da manifestação de nosso desejo fundamental, apontado por Jean Baudrillard (1988), de que “tudo caminhe de forma autômata”, que cada objeto, na função que lhe foi dada, cumpra o milagre da perfeição sem o menor esforço.
No Brasileiro de 2009, após o Flamengo empatar em casa com o Barueri por “1 x 1”, o técnico Cuca foi demitido do clube, pois mesmo ocupando a décima primeira posição, o Flamengo estava muito próximo da zona de rebaixamento. Para o lugar dele foi conclamado Andrade Hefesto, o criador de autômatos. Foi com ele que o time arrancou para o título até então improvável. Faltando 10 rodadas para o fim do campeonato e há 10 pontos do líder Palmeiras, o Flamengo avança colossalmente para assumir a liderança a uma rodada do fim. No dia 6 de dezembro daquele ano, num Maracanã pintado de vermelho e preto, se cumpriu o milagre da perfeição e Andrade mostra quão “grande deus operário” ele é: FLAMENGO HEXACAMPEÃO BRASILEIRO. Um time que Andrade, o metalúrgico, moldou a cada rodada e que ao final, como ourives, banhou em ouro. Andrade fez o time de 2009 jogar como “autômatos” movidos pelo fogo de sua “alma rubro-negra”.
No dia 6 de março de 2020, Andrade foi homenageado com um busto de bronze na Gávea. Nada mal para um “deus Andrade metalúrgico”. Um torso que “deus Andrade Hefesto” fez por si só, pelo tanto de “metal precioso” moldado em forma de taças que deixou na galeria do clube. Uma efeméride que eterniza um “deus Andrade Vulcano” que, por infinitas vezes, fez a torcida do Mengão “entrar em erupção”.
Andrade, para além do valoroso busto, você já era eterno!!!
Notas
[1] Após estrear pelo Flamengo em 1976, Andrade passa um tempo na Venezuela de onde volta para então se firmar como grande ídolo da Gávea.
[2] Andrade também foi campeão brasileiro em 1989 defendendo a camisa do arquirrival Vasco da Gama.
Referências
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Buenos Aires: Século XXI Editores. 1988.