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“Anistia ampla, geral e irrestrita” – um estudo sobre a relação entre futebol, luta pela anistia e torcidas organizadas

Isabela Lisboa Berté 15 de janeiro de 2016

Em fevereiro de 1979, em um jogo entre Corinthians e Santos realizado no estádio Morumbi, o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) de São Paulo em parceria com a torcida organizada Gaviões da Fiel abriu uma faixa com os dizeres “Anistia ampla, geral e irrestrita.” Para compreender o significado dessa manifestação em plena ditadura militar é preciso analisar o contexto histórico em que parte da sociedade civil se organizou para lutar pela anistia e pensar no impacto do surgimento das torcidas organizadas e o seu papel político.

As fontes para essa pesquisa são os depoimentos de Antônio Carlos Fon e Carlos MacDowell, membros do CBA(SP), que planejaram o ato realizado no Estádio Morumbi. As narrativas fazem parte de um vasto material organizado pela Fundação Perseu Abramo[1], em 1999, em uma campanha de comemoração dos 20 anos da promulgação da Lei da Anistia. Nela são celebrados os valores que a luta defendia no período ditatorial dialogando com as diferentes apropriações da lei na retomada da democracia brasileira:

“Em primeiro lugar, porque é impossível esquecer os episódios da grande luta em que, em plena ditadura, se engajaram centenas de milhares de brasileiras e brasileiros, exigindo justiça para as vítimas do autoritarismo e do terror do Estado.” (Fundação Perseu Abramo, 2010)

Conforme o discurso da publicação, a luta desencadeada na década de 1970 nunca foi pautada pela lógica do perdão ou do esquecimento. Pelo contrário, os panfletos e pronunciamentos sempre denunciaram os crimes cometidos pela ditadura e exigiram a devida responsabilização dos culpados.

Nessa perspectiva, a Fundação Perseu Abramo se posiciona em seu contexto histórico através da colocação: “Anistia não é esquecimento!” Conforme Rodeghero, a anistia de 1979 passa por uma série de ressignificações com o passar do tempo, que colocam em disputa, entre diferentes grupos sociais, as categorias da memória e do esquecimento. Nas palavras da autora:

“A forma como a realidade é contraditoriamente construída a partir de trabalhos de classificação e de recortes realizados por diferentes grupos sociais. Permite também analisar práticas que visam ‘exibir uma maneira própria de estar no mundo’ expondo assim, uma identidade social.”  (RODEGUERO, 2009)

Dessa forma, a Fundação Perseu Abramo se posiciona de forma contrária aos discursos que associam a anistia ao esquecimento dos crimes ocorridos no período ditatorial, o que tem funcionado como um impedimento para que processos sejam abertos contra agentes da ditadura. Deve-se levar em consideração que no contexto da década de 1990, o posicionamento do estado brasileiro em relação ao passado ditatorial, com base na Lei dos Mortos e Desaparecidos de 1995, dava prioridade a uma política de indenização através da compensação financeira, em detrimento a busca da verdade e da responsabilização dos agentes da ditadura (SARTI, 2014).

Neste contexto, as publicações organizadas pela Fundação Perseu Abramo trazem a ótica do dever da memória como um posicionamento político no sentido de não esquecer os crimes cometidos pela ditadura e “contar a história” da resistência desencadeada por personagens da luta anistia. O material organizado conta com documentos da época, como manifestos, panfletos, fotografias, cartas de presos políticos, exilados e familiares de mortos e desaparecidos e por fim, depoimentos de cerca de cinquenta protagonistas da luta pela anistia que relembram a memória do movimento e avaliam, vinte anos depois, a experiência da luta pela democracia.

Dentro deste vasto material, Antônio Carlos Fon e Carlos MacDowell, escrevem um depoimento centrado no ato realizado em parceria com a torcida Gaviões da Fiel. Os sujeitos da pesquisa foram convidados a significar sua memória acerca da luta pela Anistia no Brasil, através de uma narrativa que transforma o vivido em linguagem, organizado de acordo com um sentido. Dessa forma, o texto nos conta menos sobre o evento em si e mais sobre os significados atribuídos a experiência histórica (PORTELLI, 1997). Nessa mesma linha, Janaína Amado diferencia a vivência da memória:

“O vivido remete a ação, a concretude, às experiências de um indivíduo ou grupo social. A prática constitui o substrato da memória, esta por meio de mecanismos variados, seleciona e reelabora componentes da experiência.” (AMADO, 1995)

Nesse sentido, a narrativa dos sujeitos, para além de trazer o elemento da concretude da experiência histórica, aborda os significados que lhe são atribuídos com o passar do tempo e como esse passado é utilizado para a construção de uma identidade no presente e para a elaboração de um futuro.

Em ambos os depoimentos, os autores desenvolvem uma narrativa que atribui sentidos ao ato realizado, articulando o planejamento, as estratégias e a avaliação dos resultados a um mesmo eixo: a ideia de levar a bandeira da anistia à população em geral. Antônio Carlos Fon, jornalista, familiar de um preso político e participante do CBA (SP) começa o seu depoimento a partir dessa perspectiva:

“- ‘Eles estavam falando da nossa faixa’ – rádio de pilha colado no ouvido, boné e camiseta do Corinthians e um sorriso nos lábios, o torcedor ao meu lado informava a reação do estádio. Eu jamais o vira antes e nem o encontrei depois, mas nunca o pronome possessivo na primeira pessoa do plural me pareceu tão saboroso” (FON, 2006).

No excerto, Antônio Carlos Fon avalia como positiva a intervenção, uma vez que o torcedor comum do estádio, que aparentemente não estava ligado diretamente à luta pela anistia, via naquela faixa uma bandeira de luta comum da torcida do Corinthians e, nesse sentido, da população brasileira.

Gaviões da Fiel.
Torcida Gaviões da Fiel, Pacaembu, 2009. Foto: Rodrigo Gianesi – Wikimedia.

Nessa mesma direção, Carlos MacDowell também inicia seu relato abordando a reação de pessoas desconhecidas ao ato realizado no jogo entre Santos e Corinthians, um casal lhe encontra rua e pergunta se não era ele que havia participado da abertura faixa: “Anistia Ampla Geral e Irrestrita”. Em suas palavras, o encontro segue com: “[…] comentários de aprovação, apoio e um forte abraço a três. Sinto-me fortalecido. Nunca mais os vi, não sei os seus nomes, mas guardo a emoção. Apenas sei que não fazemos uma luta isolada.” (MACDOWELL, 2006). Novamente o resultado da manifestação planejada está ligado à ampliação da luta para um público mais amplo: “[…] sinto que milhares de anônimos dão um impulso para a luta pela anistia.” (MACDOWELL, 2006).

Verena Alberti (2005), ao abordar aspectos das fontes orais, afirma que estas são ricas no sentido de contar uma história da experiência, através do estudo das “[…] formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências, incluindo situações de aprendizado e decisões estratégicas.” Podemos estender a análise da autora às narrativas biográficas, uma vez que nas fontes estudadas, temos uma série elementos que evidenciam as estratégias elaboradas pelos CBA´s para atuar nos limites do contexto ditatorial, tal como a avaliação do ato no jogo de futebol em relação aos objetivos que foram traçados.

Para entender o significado da manifestação é importante compreendermos o contexto ditatorial e os movimentos desencadeados pela sociedade civil em prol da anistia na década de 1970. Conforme Rodeghero (2014), o período de maior repressão entre 1968 e 1974 formou uma nova leva de atingidos pela ditadura militar, em especial aqueles militantes que se envolveram com a luta armada. Em 1974, quando o general Ernesto Geisel chega ao poder propõe uma distensão lenta e gradual do regime, o que foi encarado como um momento propício, por algumas mulheres, para começar uma campanha em favor da anistia. O Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), criado em 1975, se baseia na tradição brasileira de anistias e têm na volta dos exilados a sua principal bandeira, de modo a unir novamente a “família brasileira”. No exterior, a luta pela anistia funcionou como uma bandeira agregadora dos exilados, que a viram como um meio de lutar contra a ditadura, pelo reestabelecimento da democracia e como uma forma de denunciar as violações dos direitos humanos realizadas pelo Estado brasileiro.

Em 1978, começam a surgir os Comitês Brasileiros pela Anistia com bandeiras mais amplas e combativas em comparação com o MFPA. Os CBA´s são contemporâneos à retomada de movimentos sociais como o estudantil e sindical, representando um conjunto de articulações da sociedade civil na luta contra a ditadura militar, que tem na anistia uma bandeira bastante agregadora. Os CBA´s foram organizados em âmbitos nacionais, com representantes do movimento estudantil, sindical, setores dos direitos humanos, familiares de mortos e desaparecidos, funcionando como “uma espécie de fórum de entidades da sociedade civil.” (RODEGUERO, 2009) Entre suas principais bandeiras, estavam a libertação dos presos políticos, o reconhecimento dos mortos e desaparecidos, a punição dos torturadores e a volta dos exilados.

Posse do presidente João Batista Figueiredo, 1979.
Posse do presidente João Batista Figueiredo, 1979. Foto: Arquivo/Agência Senado.

O depoimento de Antônio Carlos Fon dá alguns indícios do contexto político da época e do papel desempenhado pelo Comitê Brasileiro pela Anistia. Conforme o depoimento, no segundo semestre de 1978, a bandeira da anistia começava a crescer em entidades da sociedade civil, além do meio artístico e político, mas não chegava a maior parte da população. Em suas palavras, havia ainda na opinião pública “[…] a imagem dos opositores do regime militar como ‘terroristas, assassinos de pais de família.’” (FON, 2006) Procurando desfazer essa visão, foram elaborados materiais que utilizavam a mesma fórmula da ditadura para os cartazes de “procurados”, porém mostrando os desaparecidos políticos. O CBA havia recebido um retorno de setores já comprometidos com a luta pela ditadura, porém não tinha como avaliar como o povo recebia a campanha, esse foi um dos objetivos do ato realizado no Estádio do Morumbi. A aliança entre o futebol, as torcidas organizadas e a luta política obteve resultados bastante significativos, uma vez que a bandeira da anistia foi transmitida ao vivo pelas emissoras que cobriam o clássico e, no dia seguinte, o fato apareceu na capa dos principais jornais do país.

A escolha da abertura da faixa em um estádio de futebol é estratégica uma vez que dificulta a chegadas da repressão, tal como a identificação dos militantes que levantavam a bandeira. No entanto, é significativo pensar o papel histórico das torcidas organizadas e a sua atuação em assuntos políticos neste contexto. Conforme Alvito, as primeiras torcidas surgiram no final da década de 1960, em um período de ebulição política da juventude brasileira e mundial. Grande parte dessas organizações tinha em seu nome o termo “jovem” e eram: “[…] bastante contestatórias do status quo clubístico e político” (ALVITO, 2012). Alguns destes elementos vão de encontro à associação entre futebol e alienação, uma vez que estas torcidas organizadas participavam ativamente das negociações que envolviam seus clubes, como reivindicações em torno do preço dos ingressos e melhores condições nos estádios. Além de se envolverem em eventos políticos mais amplos, como é o caso emblemático da abertura da faixa pela anistia e o movimento que ficou conhecido com Democracia Corinthiana, organizado na década de 1980.

Outro elemento bastante significativo que permeia os depoimentos de Antônio Carlos Fon e Carlos MacDowell diz respeito aos limites impostos pela Ditadura Militar às ações do CBA. A política de distensão iniciada com o governo do General Geisel e o início de um certo diálogo com setores da oposição contribuiu para um contexto mais favorável para o surgimento de novos movimentos sociais (RODEGHERO, 2009). A luta pela anistia, como vimos, é contemporânea desse período de retomada das ruas, no entanto, nos relatos analisados neste texto está bem presente a violência policial e a prisão de militantes, o que evidencia os limites dessa postura mais “liberal” da ditadura militar.  MacDowel cita alguns exemplos de atos bastante repressores, como a proibição do “Show pela Anistia” que seria realizado no Teatro da Universidade Católica de São Paulo e a violência policial nas manifestações realizadas em prol da anistia. Ao encontrar o casal que lhe pergunta se ele havia participado do ato realizado no Estádio do Morumbi, o personagem deixa claro o clima de tensão que ainda se vive no Brasil: “Ainda tenho cuidados e (in)seguranças, afinal ainda estamos em plena ditadura militar mas, sentindo cumplicidade, confirmo.” No momento da manifestação, quando é aberta a faixa “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”, segundo o relato de Fon, os soldados da polícia militar tentam forçar a passagem entre a torcida para chegar até os manifestantes, no entanto, os corintianos de braços dados evitaram o avanço do policiamento, ainda assim, após o ato, MacDowell chegou a ser preso. Estes elementos demonstram alguns limites para manifestações contrárias à ditadura nos fins da década de 1970.

O presente trabalho teve por objetivo problematizar um acontecimento histórico bastante significativo da luta pela anistia na década de 1970, através do relato de dois personagens desta história, vinte anos após a promulgação da lei. O ato realizado no estádio Morumbi é fruto de uma articulação entre o Comitê Brasileiro pela Anistia e a torcida organizada Gaviões da Fiel e tinha como estratégia levar a bandeira da anistia a um público mais amplo. As narrativas organizadas pela Fundação Perseu Abramo funcionam como fontes significativas para estudar a forma como os personagens elaboram sua experiência histórica com o passar dos anos e como atribuem sentido ao seu passado através de articulações entre objetivos, estratégias e avaliação do ato político. Também se coloca como relevante observar a manifestação como uma aproximação entre a luta política pela democracia e o futebol, uma paixão popular que já havia sido bastante explorada pelo regime militar e que goza de uma popularidade muito grande em nosso país.

[1] A Fundação Perseu Abramo foi criada em 1996 pelo partido dos trabalhadores com o objetivo de construir um espaço para o desenvolvimento de pesquisas, estudos e debates no âmbito da política.

Referências

ALBERTI, Verena. Histórias dentro da história. In: PINSKY, Carla B. (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

ALVITO, Marcos. Maracaduba neles! Torcidas organizadas e policiamento no Brasil. Revista Tempo. Vol. 19, n. 34. 2012.

Amado, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. Projeto História, São Paulo, 1995, n. 14.

FON, Antônio Carlos. Antônio Carlos Fon – Depoimento. 23 de abril de 2006. Disponível em: <http://novo.fpabramo.org.br/content/antonio-carlos-fon-depoimento> Acesso em: 10 de dez. de 2015.

Fundação Perseu Abramo. 20 anos: anistia não é esquecimento. 13 de fevereiro de 2010. Disponível em <https://fpabramo.org.br/2008/08/28/29-anos-da-lei-da-anistia-esquecimento-nao-e-opcao/> Acesso em: 10 de dez. de 2015.

MACDOWELL, Carlos. Anistia: 20 anos. 23 de abril de 2006. Disponível em:< https://fpabramo.org.br/2006/04/23/carlos-macdowell-anistia-20-anos/> Acesso em: 10 de dez. de 2015.

PORTELLI, Alessandro. “O que faz a história oral diferente”. Projeto História, São Paulo, n. 14, p. 25-39, fev. 1997.

RODEGHERO, Carla Simone. A anistia de 1979 e seus significados ontem e hoje. In: MOTA, Rodrigo Patto Sá & REIS FILHO, Daniel Aarão (Orgs.). 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

RODEGHERO, Carla Simone. Para uma história da luta pela anistia. O caso do Rio Grande do Sul (1974-1979). Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 99- 122, jan./jun. 2009.

SARTI, Cíntia. A construção de figuras da violência: a vítima, a testemunha. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 77-105, jul./dez. 2014.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Isabela Berte

Mestranda em Ciências do Movimento Humano (UFRGS), Graduada em História (UFRGS). Integrante do Grupo de Estudos sobre Esporte, Cultura e História (GRECCO) e do Centro de Memória do Esporte (CEME).

Como citar

BERTé, Isabela Lisboa. “Anistia ampla, geral e irrestrita” – um estudo sobre a relação entre futebol, luta pela anistia e torcidas organizadas. Ludopédio, São Paulo, v. 79, n. 7, 2016.
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