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Antivacina e alto rendimento esportivo, uma falácia sem sustentação

A polêmica sobre a aplicação da vacina contra COVID-19 tem gerado no mundo e, especialmente no Brasil, um debate escandaloso. A cultura da imunização vacinal em nosso país foi conquistada com muito empenho e organização. Nas primeiras horas de vida o infante é apresentado às picadas de agulhas, as quais se seguirão por meses e anos, conforme o calendário de vacinação, protegendo o organismo de vários vírus e bactérias.

Muitas crianças são protegidas e salvas das enfermidades que poderiam deixar sequelas graves, inclusive, eu, meus filhos e provavelmente você que lê este texto, também. Quando uma vacina foi esquecida ou no reaparecimento de uma doença, realizamos nova aplicação: foi assim que aprendemos e era assim que agíamos, sem nenhuma polêmica desnecessária. Ao organizarmos uma viagem dentro ou fora do país, é preciso se certificar que as vacinas estão em dia, procedimento comum como no exemplo da imunização contra febre-amarela (a depender do nosso país de destino, geralmente países tropicais).

O desenvolvimento das vacinas é um avanço da ciência e das tecnologias à ela relacionadas. O paradoxo do cientificismo é ser encarado como outra fé, mas que enfrentou sempre ceticismo que nega crer no que vê. Dúvidas e questionamentos estiveram presentes nas mais variadas descobertas, como na constatação da importância da lavagem das mãos para realização de procedimentos cirúrgicos. Resistências sempre existiram, e em sua grande maioria, em razão de desconhecimento e petulância.

Em um passado não muito distante o movimento antivacina procurava destacar a pertinência do tratamento terapêutico como alternativo, além de questionar a mercantilização da cura. Não se pode negar que o argumento possuía e possui fundamento, pois, no mundo capitalista, a cura é um negócio lucrativo. A guerra entre marcas e patentes é uma triste constatação dessa verdade. Algo do movimento antivacina ‘raiz’ diz respeito à intervenção científica como negócio e não à negação da existência de doenças, pregam uma alternativa à cura, no seu formato “mais natural”.

A ciência tem contribuído para transformação da sociedade e da humanidade, seus efeitos podem ser observados em muitas áreas e profissões, nossa maior longevidade atesta sua importância. No esporte não é diferente: podemos identificar que o desenvolvimento das muitas modalidades passa pela intervenção científica ou técnica, ações no corpo, sejam dentro ou fora dele. Poderíamos arriscar afirmar que o esporte moderno configura-se como manifestação da ciência, técnicas e tecnologias em seu formato corporal, quando o alto desempenho nos “enfeitiça” em relação às possibilidades que o corpo pode chegar.

Dentro do corpo o destaque está na nutrição, na medicina, fisiologia, nos aspectos biomecânicos e psicológicos etc., e fora dele, na educação física, ergonomia, mecânica, engenharia etc. O esporte, enquanto veículo ideológico da modernidade, representa a eficiência da técnica para superação da natureza interna ou externa, isto é, desenvolvimento científico que se manifesta explicitamente na dimensão corporal.

O corpo que serve de referência é um corpo atlético, dos atletas de alto rendimento. O professor e pesquisador Fernando Bitencourt (IFSC), no livro “O ciborgue e o futebol: corpo, biopoder e illusio no reino do quero-quero” (2020),[1] descreve como o corpo do jogador de futebol é atravessado pelas intervenções tecnocientíficas, tornando-se um ciborgue, a partir de sua experiência etnográfica acompanhando uma grande equipe da elite do futebol brasileiro.

Uma formação esportiva intensa, rotineira e metódica, direcionada ao alto rendimento. Durante todo o processo a ciência acompanha o atleta em formação e em sua carreira profissional, impactando dentro e fora do corpo. Tratamentos para crescimento e desenvolvimento físico, prevenção de doenças, analgésicos, anti-inflamatórios, controle hormonal, anticoncepcionais, entre outros, são citados com frequência nos relatos biográficos de muitos atletas que, não raro, sugerem desconhecer ao menos parte das intervenções a que foram submetidos, ‘naturalizando’ discursos técnico-científicos-biomédicos. Os atletas apenas confiam, exercem fé cega, no profissional médico, técnico ou preparador físico.

Novak Djokovic
Novak Djokovic em Wimbledon (2011). Fonte: Wikipédia

Nas últimas semanas um “outro lado da bola” pode ser especulado e debatido, pois, o atleta Novak Djokovic (um dos maiores tenistas da atualidade) não realizou sua imunização contra COVID-19, o que inviabilizou sua participação no Aberto da Austrália, tendo sido deportado por não cumprir as exigências sanitárias para permanência no país sede da competição.

Outros atletas em diversas modalidades também argumentaram sobre o direito à liberdade individual e recusam a vacina, independente da empresa fabricante do insumo. Entre os atletas brasileiros, o surfista Gabriel Medina e o futebolista Renan Lodi esquivaram-se até o momento em que o não cumprimento dessa exigência comprometeria suas carreiras. O primeiro não poderia participar do Circuito Mundial de Surfe e o segundo, ao não ser convocado para os jogos finais da Eliminatória Sul-Americana para Copa do Mundo de Futebol masculino. Alexandre Pato, outro futebolista famoso, comentou favorável a Djokovic, mas na última semana retratou-se retirando das redes sociais seus comentários antivacina.

No grupo dos atletas que recusam ferrenhamente e usam a mídia para expressar descontentamento quanto à exigência da vacina e argumentando pelo direito do seu livre-arbítrio, mas que apenas prestam um desserviço, estão: Kyrie Irving e Bradley Beal (basquete/NBA); Aaron Rodgers e Cole Beasley (futebol americano/NFL); e, Kelly Slater (surfista). Estatísticas também mostram que até o final de 2021, 15% dos futebolistas na Premier League, principal liga inglesa de futebol, ainda não haviam iniciado sua imunização. Pensando evitar transtorno e polêmica semelhante no Brasil, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) divulgou em seu Guia Médico para o ano de 2022, que será exigida a comprovação de vacinação completa dos jogadores, requisito para participação nas competições organizadas pela entidade.

Kyrie Irving
Kyrie Irving atuando pelo Brooklyn Nets em 2022. Fonte: Wikipédia

As alegações dos atletas não vacinados estão ancoradas na justificativa de um possível risco de doping, uma argumentação falha, pois, outros atletas imunizados estão participando de jogos e competições locais e globais sem qualquer consequência do tipo.

Questão semelhante envolve o medo quanto à queda de desempenho, outro argumento frágil e sem sentido. Na verdade, dentre os atletas que contraíram o vírus da COVID-19, muitos precisaram de um tempo para recuperar sua condição física e outros permanecem com sequelas decorrentes da doença.

As crenças religiosas ou tratamentos alternativos são um terceiro argumento e pode ser considerado. No entanto, a religiosidade parte do princípio de fazer o bem, logo, beneficiar ou contribuir com o coletivo deveria estar em primeiro plano. Os tratamentos alternativos seriam uma opção maravilhosa, porém, até o momento a natureza produziu o vírus e não uma forma natural de resistência.

A respeito da desinformação e da necessidade de uma educação que esclareça e conscientize o atleta, que em sua inocência e infantilidade desconhece a importância da vacinação, nesse caso específico não passa de falácia. Além das muitas informações produzidas sobre a imunização, o histórico dos atletas e seus corpos ciborgues não são condizentes com uma suposta preocupação sobre o que lhes é aplicado. O alto desempenho esportivo tem como fim as especificidades esportivas, e não uma proteção ou imortalidade para o vírus da covid-19!

Os atletas de final de semana e os de elite precisam aplicar medidas simples, como o uso de máscara, higienização das mãos e, principalmente, vacinação. Escusas pela não imunização estão pautadas em justificativas frágeis, apenas destacam valores ideológicos ou mau-caráter, um sentido de prepotência, arrogância e egoísmo em razão do “histórico de atleta”. Características associadas a um ideal de superioridade e contrárias ao olimpismo. Importante lembrar que tal argumento foi utilizado no começo da pandemia pelo presidente da república do Brasil, tanto ao minimizar o novo vírus, tratando-a como uma “gripezinha”, como ao referir-se aos atletas como imunes ao coronavírus.

No jogo da vida ou no jogo da sociedade moderna, os atletas antivacina representam uma parte considerável da população mundial que possui uma postura hipócrita e não solidária. Na illusio da vida, utilizando o referencial conceitual do sociólogo Pierre Bourdieu, para o qual o termo se refere às formas como cada um de nós mobiliza estratégias na sua vida para simplesmente viver e realizar suas ações em seus campos de atuação, estamos nessa disputa entre a verdade e a falácia, entre a vacina e a não vacina, entre a vida e a morte.

Um espetáculo vexatório, pois, ao questionarem a ciência (o que não seria um problema, porque a ciência se constrói com a falseabilidade, a dúvida, os questionamentos), negam não apenas o conhecimento científico, mas a si mesmos e a produção do seu próprio desempenho atlético, que é também resultado do cientificismo supostamente questionado na vacina. O esporte é um grande laboratório, técnicas e tecnologias aplicadas nas muitas modalidades são implantadas nesse grande “tubo de ensaio” e depois disseminadas em hospitais, consultórios médicos e sessões de tratamento. O último argumento sobre ser cobaia de teste, é ainda mais frágil, o atleta alienado demonstra desconhecer sua própria condição de ciborgue.

Restam apenas os valores ideológicos que enfeitam a face fascista que destaca a pureza e resistência de alguns corpos que, melhores que outros, seriam imunes às fraquezas da mortalidade. Dotados de superioridade, esperam ser os últimos sobreviventes, aqueles que irão permanecer em razão de sua linhagem especial. Exercer fé na ciência talvez seja pedir muito a algumas pessoas, mas questionar seus números e resultados deixaria satisfeito até mesmo Tomé.[2]

Notas

[1] BITENCOURT, Fernando Gonçalves. O ciborgue e o futebol: corpo, biopoder e illusio no reino do quero-quero. Curitiba: Appris, 2020.

[2] Disponível em: https://www.churchofjesuschrist.org/study/scriptures/gs/thomas?lang=por. Acesso em: 27 de jan. 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Cristiano Mezzaroba

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe (DEF/CCBS/UFS) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED/UFS). Coordenador do GEPESCEF - Grupo de Estudos e Pesquisas Sociedade, Cultura e Educação Física.

Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

MEZZAROBA, Cristiano; CONCEIçãO, Daniel Machado da. Antivacina e alto rendimento esportivo, uma falácia sem sustentação. Ludopédio, São Paulo, v. 152, n. 5, 2022.
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