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Apontamentos sobre o protagonismo do torcedor no espetáculo de futebol

Diana Mendes Machado da Silva 28 de janeiro de 2010

Uma das principais atrações do espetáculo de futebol é, sem dúvida, o torcedor. Embora nem sempre tenha tido o devido reconhecimento, essa importante figura é hoje bastante estudada pelas mais diversas áreas das ciências humanas, principalmente sob o aspecto da produção da violência nos estádios (É possível dizer, aliás, que a violência nos estádios, principalmente dos anos 90, é que atrai o olhar dessas ciências sobre o torcedor).

Também centrado no torcedor este artigo procurará, mesmo que sumariamente, discutir alguns fatos históricos relacionados ao seu surgimento e protagonismo no espetáculo futebolístico, a partir do começo do século XX, nas principais cidades do país. E ainda que o comportamento de massa, a uniformização ou a organização do torcedor de futebol em torcidas sejam aspectos fundamentais para a compreensão do fenômeno, eles não serão aqui abordados.

Comecemos pela ação de torcer. Encontramos em inúmeros dicionários o “contorcer-se”, “remoer-se”, “contrair-se” como algumas das principais ações relacionadas ao torcedor de futebol. Na visão do historiador Nicolau Sevcenko: “o torcedor não é um espectador passivo; ele incorpora os lances da disputa na sua própria estrutura física e vai reproduzindo em seu corpo, na vibração de seus sentidos, nas crispações de seus músculos e nervos, cada uma das tensões e reflexos desdobrados no embate, como se ele mesmo estivesse na arena” (2002, p.579).

E está! É por meio do investimento de seu corpo que o torcedor completa a “cena”, integra o espetáculo. Ele põe o corpo em ação, ou melhor, em reação ao que acontece no campo. E expressa felicidade, encantamento, sofrimento, desilusão. É o torcedor que promove, divulga e amplifica esta constelação afetiva tão cara ao espetáculo. Podemos dizer, portanto, que assistir a uma partida, ação própria do torcedor, contém, tal como a ambigüidade de sentido da palavra, duas ações fundamentais: ver/acompanhar a partida e “auxiliar” a partida.

Este protagonismo do torcedor pode ser remontado ao fim dos anos 20 e começo dos anos 30, quando tem início o que podemos chamar de espetacularização do futebol (e não só dele, outras esferas da vida social passam pelo mesmo processo). O sociólogo Luiz Henrique de Toledo (1999) e os historiadores Fábio Franzini (2000) e Leonardo Pereira (2000) nos dão algumas pistas sobre esse momento que acontece de modo quase simultâneo em São Paulo e Rio de Janeiro. Em seus trabalhos, tais pesquisadores apresentam discussões bastante interessantes acerca do papel da imprensa nesse processo. Para eles, o rádio e o jornal impresso foram veículos fundamentais na promoção (e posterior popularização) do esporte.

Em seu texto “A invenção do torcedor de futebol: disputas simbólicas pelos significados do torcer”, Toledo vincula a formação das torcidas em São Paulo aos apelos da imprensa dos anos 30 e 40, por força da ação do Estado Varguista. E aponta, tal como Leonardo Pereira, a disputa ideológica pelo futebol entre as elites e as classes populares como o pontapé inicial para o incentivo à assistência/participação das torcidas nos campos de futebol. Tal disputa foi iniciada no momento em que o futebol deixa de ser “privilégio” das classes abastadas e passa a ser praticado também por grupos de outras origens e atividades sociais.

Assim, a presença nos jogos de futebol por meio da assistência fazia parte da negociação para conter a participação dos elementos populares no esporte, favorecendo a manutenção do amadorismo. Por outro lado, como já citado acima, a imprensa fomentou largamente a participação nos eventos esportivos, como citado por Toledo:

“(…) estranhamos na tarde de ontem a ausência da ‘torcida’ uniformizada do Palmeiras no Parque Antártica. Procuraremos averiguar os motivos que deram margem a esse acontecimento (…)” (A Gazeta Esportiva, 12/07/1943).

Esse exemplo, tal como conclui Toledo, denota também a regularização e organização da participação da torcida nos eventos futebolísticos. Situação que nos reporta para o conceito de espetacularização que aqui podemos resumir como a ação organizada para ser vista pelos outros. A experiência do olhar e da compreensão a partir do olhar é fundamental no espetáculo. Assim, podemos dizer sucintamente que, mais do que jogar futebol, organizar campeonatos, associar-se a clubes, as classes populares foram incentivadas pelas elites e pela imprensa do período destacado a assistir e torcer. E assim, por meio da presença nos jogos, sendo vistas, tal como os jogadores em campo, elas caracterizariam sua participação.

Tal perspectiva de participação deixou marcas profundas em nossa história. Contudo, como também sabemos, nem só dos planos estatais e das elites se move a história e hoje há inúmeros trabalhos que revelam outras experiências das classes populares em relação ao futebol, no futebol de fábrica, de várzea ou mesmo no futebol profissional. E mesmo na torcida, à revelia dos projetos do começo do século passado, o torcedor é, sim, protagonista do espetáculo futebolístico, como inúmeros exemplos podem comprovar.

Por último, a título de nota, podemos dizer que muito embora fatores intrínsecos ao jogo de futebol sejam fundamentais na explicação de sua popularidade junto ao torcedor (tais como a essência coletiva do jogo que contém, quase paradoxalmente, a possibilidade do brilho individual; o tipo de pontuação que tem no binômio “sorte/azar” um forte elemento a ser considerado; a capacidade de expressar e veicular antagonismos por meio da extrema polarização em campo, tal como na disposição de nações em guerra, entre outros elementos), é preciso investigar também os aspectos extrínsecos. Em outras palavras: os aspectos do esporte construídos e mobilizados historicamente, por força das escolhas e ações humanas e em nosso caso, para atrair e manter torcedores (mais do que espectadores) para que uma partida de futebol seja mais do que um jogo, seja também um espetáculo.

Bibliografia
FRANZINI, Fábio. As Raízes do País do Futebol: Estudo sobre a relação entre o futebol e a nacionalidade brasileira (1919-1950). Mestrado em História Social, Universidade de São Paulo, 2000.

SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do rio. IN: História da Vida Privada no Brasil 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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Como citar

SILVA, Diana Mendes Machado da. Apontamentos sobre o protagonismo do torcedor no espetáculo de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 07, n. 7, 2010.
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