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Apostando na regulamentação

Alice Lichotti 25 de abril de 2023

Imagine arrecadar R$150 mil por um único movimento: derrubar seu adversário dentro da área no primeiro tempo do jogo. Essa foi a promessa que apostadores fizeram a três jogadores de três clubes da Série B do Campeonato Brasileiro. A proposta era simples, os jogadores deveriam cometer um pênalti no primeiro tempo de seus respectivos jogos, todos válidos pela última rodada da Série B do Brasileirão 2022. Se os jogadores cumprissem o combinado, cada um levaria para casa R$150 mil – R$10 mil pagos como sinal antes dos jogos e R$140 mil depois que a aposta [de que aconteceriam três pênaltis nesses três jogos] fosse vencedora. Já os apostadores esperavam faturar aproximadamente R$2 milhões com o “palpite”.

Apesar de toda a trama, o esquema não foi bem-sucedido. Duas marcações de pênalti chegaram a ocorrer no dia 5 de novembro: no jogo entre Sampaio Corrêa e Londrina, o lateral-direito Mateusinho, do Sampaio, sacramentou sua parte do combinado e derrubou um jogador do Londrina dentro da área aos 19 minutos do primeiro tempo; enquanto Joseph, zagueiro do Tombense, demorou um pouco mais, foi apenas aos 30 do primeiro tempo que o jogador empurrou Lohan e garantiu um pênalti para o Criciúma. Foi a partida entre Vila Nova e Sport, no dia 6 de novembro, que estragou o plano dos apostadores. Romário, volante do Vila Nova envolvido no esquema, sequer foi relacionado para o jogo e não houve qualquer penalidade máxima na partida.

Toda a trama foi descoberta justamente por ter dado errado. A denúncia ao Ministério Público de Goiás foi feita pelo presidente do Vila Nova, Hugo Jorge Bravo, que foi avisado por pessoas de fora do clube sobre o envolvimento do volante Romário em apostas esportivas. O clube investigou o caso e conseguiu contato com um empresário de São Paulo, que seria o articulador de todo o esquema. O homem até mesmo pediu ao presidente para cobrar do jogador o sinal de R$10 mil dado antes da partida ocorrer. Os suspeitos podem ser enquadrados em três crimes diferentes: associação criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção em âmbito esportivo. Até o momento apenas o empresário suspeito de entrar em contato com os jogadores e articular o esquema foi preso preventivamente, os clubes foram isentos de qualquer participação no esquema.

O objetivo deste texto não é falar especificamente sobre esse caso, mas sim propor uma reflexão a respeito de algo que poderia evitar esse tipo de crime: a regulamentação das apostas esportivas. Desde 2018, quando, o então presidente da República, Michel Temer, sancionou a lei 13.756/18, a indústria de apostas esportivas online passou a ser legalizada no Brasil. Além de legalizar a prática, a referida lei determinava uma série de medidas: as casas só poderiam operar online (sem pontos de venda fixo), os sites deveriam estar hospedados fora do Brasil e uma regulamentação do setor deveria ser feita em até quatro anos. O prazo final para essa regulamentação estava previsto para dezembro de 2022, entretanto, o ex-presidente Jair Bolsonaro, por influência de bancadas conservadoras da Câmara, não assinou o decreto de regulamentação elaborado pela Casa Civil e Ministério da Economia. Agora, o processo fica a cargo do governo recém-eleito, que analisa a questão de maneira positiva e, de acordo com declarações dadas ao UOL Entrevista pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, um projeto para o setor já está em andamento.

Apostas futebol
Uma pessoa manipula um celular em um site de apostas esportivas. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Um dos maiores receios em relação às apostas esportivas online é a manipulação de resultados. Entretanto, esse tipo de esquema não é algo recente no futebol, vide um dos casos mais emblemáticos no Brasil, a Máfia do Apito[1], que ocorreu em 2005, quando os sites estavam longe de fazerem o sucesso de hoje – de acordo com o site Mktesportivo, o setor movimentou R$7 bilhões em 2020. Ao contrário do que muitos pensam, a regulamentação das atividades de casas de apostas pode oferecer meios para impedir fraudes esportivas. Isso porque, como afirma Andreas Bardun, CEO global do site de apostas KTO, as plataformas possuem uma extensa base de dados sobre seus clientes e seus hábitos de apostas. Sendo assim, o monitoramento de suas atividades financeiras por órgãos governamentais seria crucial para rastrear atividades suspeitas. As próprias casas trabalham com inteligência artificial para identificar possíveis fraudes, uma vez que elas são as maiores prejudicadas com manipulações, pois pagam altos valores em apostas com chances improváveis. 

É claro que os problemas não irão se resolver automaticamente apenas com esse monitoramento e troca de informações, uma vez que há a possibilidade de apostadores usarem laranjas para despistar as autoridades. Nesse caso, a fiscalização fica obviamente mais difícil, mas algumas medidas podem ser impostas, como a obrigatoriedade de que qualquer movimentação relativa à aposta seja feita em conta bancária vinculada ao apostador cadastrado. De acordo com Rafael Marcondes, diretor da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte, dessa forma, a Receita Federal conseguiria rastrear se essas movimentações são compatíveis ou não com a renda do apostador.

Outro ponto positivo é a alta arrecadação de impostos que essa indústria permite, o que vem sendo a principal motivação para o atual governo regulamentar as apostas esportivas. Hoje, as mais de 500 casas de apostas ativas no país operam com seus sites hospedados no exterior, o que dificulta até mesmo a estimativa de quanto dinheiro está envolvido nesse setor, os números podem estar entre R$8 bilhões e R$12 bilhões, quem sabe mais. Com a regulamentação, esses sites deverão operar 100% no Brasil, mantendo o dinheiro aqui, o que também deve gerar mais empregos. Empresas como a Esporte da Sorte acreditam que uma vez sediadas no país, as movimentações financeiras serão menos custosas e mais práticas, pois, mesmo operando em paraísos fiscais – países com baixa ou nenhuma taxação de imposto – a repatriação do lucro líquido fica cara.

Betano patrocina o Fluminense.
Betano patrocina o Fluminense. Foto: Marcelo Gonçalves/Fluminense FC.
 

O governo prevê uma arrecadação anual que beira a casa dos R$6 milhões oriunda da tributação dessas empresas. Nesse sentido, há uma preocupação com a incidência das cobranças. O modelo considerado ideal vem do Reino Unido, onde a taxação é feita em cima dos lucros dos operadores (as casas de apostas). Há a possibilidade de a taxação brasileira seguir o mesmo padrão da Loteria Federal, uma cobrança de 30% do valor do prêmio, nesse caso, a cobrança sairia do lucro do apostador. Para Andreas Bardun, da KTO, essa não é uma boa opção, uma vez que os apostadores poderiam recorrer ao mercado clandestino para conseguirem um ganho maior com seus palpites.

O marketing é um dos grandes trunfos dos sites de apostas esportivas. Atualmente, 11 marcas estampam as camisas de 19 dos 20 clubes da Séria A do Brasileirão 2023. Além disso, alguns sites chegam a patrocinar os campeonatos em si, como é o caso da Betnacional com o Campeonato Carioca, da Galera.bet com o Brasileirão e de outras quatro casas que patrocinam o Campeonato Paulista. Publicidades dessas casas estão presentes em todos os meios possíveis, desde outdoors nas ruas, passando por anúncios nas redes sociais e chegando aos comerciais de TV. Seus embaixadores são grandes estrelas do esporte mundial: Vinícius Júnior (Betnacional), Marcelo (Sportingbet), Denilson (Sportsbet.io), Zico (Pixbet), Edmundo (Pixbet), entre muitos outros; Aliás, essa questão é algo que gera muito debate, pois, de acordo com o regulamento da Fifa, atletas são proibidos de participarem de apostas, demonstrarem interesse em ações de casas de apostas esportivas ou se tornarem sócios de alguma plataforma. Em teoria, a legislação esportiva brasileira está sujeita às determinações da Fifa, mas sem a regulamentação algumas barreiras não são delimitadas.

Empresas apostas
Fonte: Gráfico produzido pela autora, tendo como base a matéria “Dos 20 times da Série A, 19 são patrocinados por casas de apostas”[2]. A Pixbet patrocina a maior quantidade de clubes: Flamengo, Vasco, Corinthians e Santos.

Apesar de ter um mercado gigantesco no Brasil, as empresas ainda precisam lidar com a insegurança que a falta de diretrizes legais traz. Sem a devida regulamentação, as operações em território nacional se tornam um tanto quanto perigosas, pois não é possível saber onde está a linha entre o lícito e o ilícito, nem há qualquer garantia para os investimentos tanto das empresas quanto dos próprios apostadores. A falta de legislação impede o crescimento do setor, uma vez que empresas ficam receosas de atuar no Brasil “às cegas”. A regulamentação, então, permitiria o fortalecimento das marcas e abriria caminho para uma relação mais transparente entre as casas e seus clientes, que teriam a quem recorrer quando um dos lados agir de má fé.

De todos os benefícios, talvez o combate à ludopatia (vício em apostas) seja o maior deles. Hoje é impossível que as entidades de saúde tenham acesso aos hábitos de apostas das pessoas cadastradas nos diversos sites atuantes no Brasil. Com a regulamentação, esses dados estariam à disposição das organizações governamentais e seria possível criar não apenas mecanismos de limite dessas apostas, como também políticas públicas eficazes para o controle da condição. A regulamentação, obviamente, não fará milagres nesse ou em qualquer outro sentido, mas é uma possibilidade a ser considerada como uma aliada para combater os vícios oriundos das apostas.

Por maior que sejam as desconfianças com esse “novo” mercado e exista, com certeza, o medo de que as fraudes destruam o futebol, é preciso compreender que esses sites continuarão em expansão, pois, no Brasil especialmente, as apostas são tão antigas quanto o próprio esporte. Agora, para resguardar essa grande paixão do brasileiro, diretrizes rígidas e fiscalização constante se fazem necessárias. Tanto empresas quanto apostadores precisam estar dentro das quatros linhas da lei, só assim, o futebol continuará seguindo seu curso natural e encantando seus aficionados com suas loucuras e imprevisibilidades.


[1] A Máfia do Apito foi um esquema de manipulação de resultados do Campeonato Brasileiro de 2005 que beneficiava apostadores. No centro do caso estavam os árbitros Paulo José Danelon e Edilson Pereira de Carvalho, que chegaram a faturar R$10 mil por partidas fraudadas. 11 jogos apitados por Edilson foram anulados e disputados novamente, o que alterou a classificação e sagrou o Corinthians campeão.

[2] https://www.metropoles.com/colunas/futebol_etc/dos-20-times-da-serie-a-19-sao-patrocinados-por-casas-de-apostas

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

 
 
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Como citar

LICHOTTI, Alice. Apostando na regulamentação. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 25, 2023.
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