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Apropriações da verde e amarela

José Paulo Florenzano 26 de janeiro de 2023

A camisa verde e amarela já foi apropriada pelos mais diversos agentes históricos desde o momento em que foi criada, no ano de 1954, para substituir a camisa branca até então utilizada pelo time nacional.  Ela foi instrumentalizada pelo regime civil-militar para promover, no contexto do tricampeonato, o nacionalismo expresso pelo slogan: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. A partir de meados dos anos noventa, logo após a conquista do tetracampeonato, ela foi adquirida pela corporação global de material esportivo, a Nike, mediante um acordo milionário de patrocínio que comercializava a falsa ideia de que o Brasil se constituía no “Dream Team” do esporte mais popular do planeta. Mais adiante, no quadro do pentacampeonato, ela foi utilizada pelo movimento dos Atletas de Cristo para divulgar mensagens evangélicas, contribuindo, dessa maneira, para consagrar uma nova hegemonia no campo religioso brasileiro.

Cada uma das apropriações acima mencionadas, no entanto, encerra um paradoxo e cada paradoxo, por sua vez, desvela uma face contraditória do País do Futebol. Sendo assim, convém relembrar, ainda que de modo esquemático, as três formas de que se revestem estas operações simbólicas, econômicas e políticas, a fim de colocar em relevo aquela que se constitui na mais recente, e perturbadora, de todas.

A primeira forma de apropriação, com efeito, acontece no contexto dos Anos de Chumbo, quando o Brasil vence em 1970 a Copa do México. As cenas da exploração política do título encontram-se sedimentadas no imaginário social e são por demais conhecidas: a chegada do time nacional em Brasília, o desfile em carro aberto do corpo de bombeiros, a recepção oficial no Palácio do Planalto, o almoço com as autoridades civis e militares, acompanhado do gesto de Garrastazu Médici, erguendo no Parlatório a Taça Jules Rimet, diante da multidão e ao lado de Pelé.

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Carlos Alberto levanta a taça de campeão com o ditador Emílio Médici. Fonte: Arquivo Nacional/ Creative Commons.

O paradoxo, neste caso, reside no fato de que em plena militarização do selecionado nacional prevalecia entre as lideranças dos atletas a exigência de participação no exercício do poder interno ao elenco. Ou seja: enquanto a propaganda oficial se empenhava em projetar no tricampeonato o regime de mando e obediência, o princípio da subordinação hierárquica e a adoção da disciplina militar, desenvolvia-se de forma concomitante uma narrativa dissidente encarregada de afirmar a experiência de autonomia, baseada no governo da equipe pelos próprios atletas.    

A segunda forma de apropriação ocorre mais de vinte anos depois, no quadro do título na Copa dos Estados Unidos, em 1994, quando a Seleção Brasileira voltava a desfrutar a condição de potência hegemônica, embalada por uma nova geração de atletas cujo valor futebolístico despertava o interesse de uma indústria que não cessava de crescer e se expandir pelo planeta. Mas enquanto a indústria do entretenimento elevava a audiência com uma ampla oferta de atrações – do basquete de Michael Jordan ao futebol de Ronaldo Fenômeno -, nos bastidores do espetáculo ela explorava uma força de trabalho mantida em condição análoga à escravidão, reunida em fábricas terceirizadas no continente asiático.

O paradoxo, neste caso, consiste na exploração brutal e desumana por trás da confecção comercial de uma camisa de futebol cujo valor simbólico fora construído no decorrer da história por atletas pretos e pobres de uma nação situada na periferia do mundo, formada em grande parte pelo tráfico de pessoas escravizadas no continente africano, cujos descendentes – afro-brasileiros – foram excluídos da cidadania, marginalizados no mercado de trabalho, estigmatizados pelo aparato repressivo do Estado.   

A terceira forma de apropriação remonta a um longo processo deslanchado no último quartel do século XX pelo movimento dos Atletas de Cristo. A partir, sobretudo, da conquista da Copa do Japão e da Coréia do Sul, em 2002, o público torcedor passaria a se familiarizar com as ações de propaganda religiosa empreendidas com base em um amplo repertório de gestos cênicos. Os Atletas de Cristo surgiam em destaque reunindo-se ajoelhados em círculo no meio do gramado após a conquista de um título; erguendo os dedos indicadores para o céu a cada gol assinalado; ou, ainda, vestindo camisetas com mensagens evangélicas, como, por exemplo, “I Belong to Jesus”, exibida à época por Kaká.

O paradoxo, neste caso, jaz no fato de que a arte associada ao futebol brasileiro possui laços estreitos com as práticas sociais do samba de morro, da capoeira angola, do futebol de várzea e do terreiro de candomblé -, pontos cardeais de uma cartografia cultural hoje em grande parte submetida a um processo crescente de demonização, perseguição e intimidação, levado a cabo por agentes estatais, grupos paramilitares e vertentes fundamentalistas do campo evangélico.

Todavia, depois de ser apropriada por um regime político, por uma corporação econômica e por um movimento religioso , a verde e amarela serve agora de uniforme de combate para a extrema direita. O marco histórico que assinala a usurpação do símbolo nacional pelo extremismo político ocorre na cerimônia realizada na Casa Branca, em 2019, quando uma camisa número dez, personalizada, foi entregue por Jair Bolsonaro à Donald Trump. Desde então, e cada vez mais, ela se vê instrumentalizada por um projeto de poder que consiste em instaurar a ditadura militar, propagar o fanatismo religioso e assegurar o máximo de liberdade ao banditismo capitalista, seja para a devastação do meio ambiente, seja para a exploração da mão de obra precarizada, ou, ainda, para o incremento do comércio legal e ilegal de armas.

Trump camisa seleção
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, dá uma camiseta da Seleção Brasileira de futebol para o presidente dos EUA, Donald Trump, durante reunião no Salão Oval da Casa Branca, em Washington (EUA), em 2019. Foto: Isac Nóbrega/PR.

O paradoxo, neste caso, salta aos olhos. A camisa verde e amarela foi historicamente associada à alegria do povo, não ao ódio da elite; à utopia lúdica da república do futebol, não à distopia bélica da tirania das milícias. Além disso, longe de se converter no manto exclusivo da intolerância religiosa de um Brasil para Jesus, ela vestia todos os santos, expressava todos os cultos, coloria todos os rituais reunidos no altar da diversidade cultural.

Mas existe ainda um último paradoxo a ser considerado nos eventos do 8 de janeiro em Brasília. De fato, ao investirem uniformizados contra o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Superior Tribunal Federal, os extremistas de direita, além da depredação dos bens materiais do patrimônio histórico e cultural do país, também causaram graves danos simbólicos à verde e amarela, associando-a de maneira espúria à barbárie antidemocrática. Difícil avaliar agora os estragos provocados na imagem da camisa que o mundo reconhece e admira graças à arte de Garrincha, Didi e Pelé. É como se ela tivesse sido perfurada a golpes de faca, de modo semelhante ao quadro de Di Cavalcanti;  arrancada do pedestal e lançada ao chão, de maneira similar à escultura de Victor Brecheret; recortada em mil pedaços, como as inúmeras obras de arte estilhaçadas durante a invasão das sedes dos três Poderes.

Camsisa da seleção terroristas
Terroristas invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto com a camisa da seleção. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
Di Cavalcanti
Obras de artes danificadas no Palácio do Planalto após atos terroristas. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Decerto, constitui um imenso desafio restaurar a teia de significados com os quais a camisa da seleção brasileira foi costurada ao longo do tempo. E, no entanto, expurgá-la das nódoas bolsonaristas se impõe como uma necessidade imperativa na batalha de ideias travada em defesa da democracia. Até porque, convém lembrar sempre, a contribuição inestimável da geração de Reinaldo, Sócrates e Casagrande foi justamente a de ter ampliado a simbologia da verde e amarela, bordando em alto relevo, do lado esquerdo do peito, os valores da democracia.  

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Apropriações da verde e amarela. Ludopédio, São Paulo, v. 163, n. 25, 2023.
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