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Aquiles ou Baco? Romário, um semideus do futebol carioca

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 12 de abril de 2021

As deusas e os deuses gregos e romanos tinham o hábito de se relacionar com os humanos, terem filhos com eles. Destes relacionamentos nasciam os semideuses que, por sua concepção híbrida, acabavam sendo mortais. Somente aos deuses era conferida a casta da imortalidade, condição essa concedida a eles pelas mãos de Zeus quando ele próprio mata Cronos, o deus do tempo. A partir desse episódio, o tempo não existe mais para os Deuses; logo, também a morte deixa de existir.

Um dos personagens da nossa crônica de hoje é Aquiles, filho do humano Peleu com a deusa Tétis. Por seu pai pertencer a condição humana, Aquiles é um mortal e, portanto, um semideus. Porém, sua mãe, a ninfa Tétis, na ânsia de tornar seu filho imortal, mergulhou-o no rio “Estige”: o rio da imortalidade. Entretanto, no momento em que Tétis submerge Aquiles nas águas, ela o segura pelo calcanhar, e por tal motivo essa parte de seu corpo permanece seca. Fato este que torna Aquiles um mortal, se atingido nos calcanhares.

Outro personagem mítico de nossa arenga é Romário, ícone da conquista do Mundial da FIFA de 1994, e por tal título, eleito o “melhor jogador do mundo” pela entidade naquele ano. No Flamengo Romário foi sinônimo de badalação no centenário do clube em 1995. Contratado a peso de ouro no auge de sua fama – pelas conquistas supracitadas no ano anterior – Romário não reverteu em títulos, o carinho dado a ele pelos rubro-negros. Porém, isso não apagou o seu brilhantismo com a camisa do clube, recheado de lances mágicos dignos de um jogador que conseguiu ser ídolo de quatro clubes cariocas: Flamengo, Vasco, Fluminense e América.[1] Por sua maestria com a bola nos pés, Romário causou admiração nos clubes por onde passou ao redor do mundo.

América  Romário
América campeão do Campeonato Carioca da Série B de 2009, capitaneado por Romário. Foto: Wikipédia

Pelo rubro-negro carioca, tornou-se o quinto maior artilheiro da história do clube com 204 gols, em 240 jogos. De 1995 até 1999, Romário teve três passagens pelo Flamengo. Títulos? Dois canecos de Campeão Carioca (1996 invicto, além de 1999) e ainda o título internacional da Copa Mercosul, de 1999. Contudo, nessa última Romário é afastado do elenco, depois da segunda partida das semifinais contra o Peñarol (do Uruguai), por ter sido encontrado numa boate em Caxias do Sul após a derrota do Flamengo para o time do Juventude, válida pelo campeonato brasileiro daquele ano. No final de 1999, a ‘tragédia”: Romário sai do Flamengo e retorna ao Vasco, clube que o projetou para o futebol.

Exato, a divinação mítica é trágica e certeira: Aquiles morreu lutando na Guerra de Troia, atingido no calcanhar por uma flecha envenenada. O arqueiro que disparou esse fatídico golpe foi Páris, o filho de Príamo. A conhecida expressão “calcanhar de Aquiles” é herança dessa narrativa mítica e é costumeiramente utilizada para designar a debilidade de alguém, seu ponto fraco.

Com toda a certeza, Romário foi o “calcanhar de Aquiles” de muitos times e zagueiros que enfrentou; afinal, para ganhar do time do “baixinho” tinha que fazer logo dois gols, pois ele sempre guardava o dele. No entanto, Romário também é protagonista de “flechadas” que machucavam suas torcidas. É, igualmente, uma “cicatriz” nos calcanhares cruz-maltinos, rubro-negros e tricolores. Ver Romário marcando pelo “outro lado” sempre doía demais, e assim, o “herói mítico da bola” foi o Aquiles do futebol carioca por anos.

Romário
Fonte: Wikipédia

Talvez seria mais promissor escrever sobre Romário a partir de outra divindade: o Deus Baco, terceiro semideus de nossa crônica.  Baco é uma personagem mitológica do panteão romano, que corresponde a Dionísio na mitologia grega. Baco, a exemplo de Aquiles, é fruto de um relacionamento híbrido, isto é, ele é filho da jovem mortal Sêmele, com a divindade maior, Zeus. Após engravidar de Zeus, Sêmele exigiu ter o pai de seu filho por inteiro, já que o mesmo era casado com a Deusa Hera. A situação enfureceu Zeus que, ao aparecer para Sêmele, atingiu-a com um de seus raios que a queimou. Zeus recolhe, em meio as cinzas, o coração de seu filho e o costura na barriga de sua perna (escondido aos olhos de sua esposa ciumenta) para que ali se completasse a gestação.  Meses depois nasce da panturrilha de Zeus o deus Baco, que é entregue a um cultivador de uvas, que o cria e o ensina a arte de fazer vinho.

Baco/Dionísio é considerado o deus do vinho e das orgias sexuais, daí deriva o termo “bacanal” para fazer menção a festas devassas regadas a orgia e álcool. Deste deus também deriva o termo “bacana”, que faz alusão ao sujeito que organiza os bacanais. Qualquer semelhança com Romário é mera coincidência. A representação mais icônica de Baco está ligada ao vinho, onde muitas vezes ele aparece segurando numa mão um cálice, e noutra, um cacho de uvas. Novamente a analogia com Romário é sensata: numa mão sempre um troféu de campeão, noutra uma “taça” de vinho em alguma festa ou bacanal.

Baco é ainda considerado o deus da libido, da fecundidade, da alegria e do teatro. Além dos seus dotes com o preparo do vinho, Baco também tinha a capacidade de criar narcóticos poderosos. Quem viu o elástico de Romário em cima de Amaral, naquele Corinthians e Flamengo pelo torneiro Rio/São Paulo de 1999, entende o que é copular com a bola (Corinthians 0 x 3 Flamengo). Que narcótico voador foi aquela bola que beijou o barbante das redes do coxa no brasileiro de 1998, num chute magistral de Romário (Coritiba 1 x 3 Flamengo)? Quem assistiu o primeiro gol de Romário contra o Gama, no Distrito Federal pela Copa do Brasil de 1998, sabe o que significa fazer teatro com um pedaço de couro (Gama 2 x 4 Flamengo). E o que dizer do gol de falta contra o Goiás, pelo brasileiro de 1997? Uma bola que sai embriagada dos pés do baixinho para, cambaleando, cair na rede do esmeraldino (Goiás 1 x 4 Flamengo).

Os bacanais eram cerimoniais religiosos onde a embriaguez via ingestão de vinho fundia o bebedor com a deidade, ou seja, acreditava-se que a embriaguez ligava o humano aos ânimos divinos – a deidade é a fonte de tudo aquilo que é divinal. Assim também era Romário, seu coração parecia mesmo ter sido parido de uma perna, pelo amor apaixonado com que sempre tratou a bola e pelo modo com que sempre libidinou sua torcida: Romário + bola = orgia.

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ao contrapor a “racionalidade/mente” dos “sentidos/corpo”, fez alusão ao dualismo Apolo x Dionísio/Baco. Apolo representando a razão e Dionísio os sentidos do corpo. Isso nos permite reportar Baco a tudo o que é caótico, perigoso e inesperado, tudo que escapa da razão humana. Marcado pelo exagero, Dionísio/Baco se expressa a partir de um excedente de forças, enquanto Apolo por um comedimento. Disso decorre a necessidade dionisíaca do devir, encarando a realidade como um infindável vir a ser, um contínuo e indomável (e, por vezes, até contraditório) processo de diferenciação. Já Apolo expressa uma harmonia e ordem necessárias para a manutenção das formas, com seus contornos bem definidos – não por acaso o apolíneo está ligado à noção de representação.

Romário
Romário durante treino do PSV em 27 de fevereiro de 1989. Foto: Wikipédia

Se Nietzsche contrastou Dionísio/Baco e Apolo, podemos invocar aqui mais um ser mítico para servir de contraponto a Romário: Zico. O contraste entre Romário e Zico é digno do par Dionísio x Apolo. Mesmo tendo havido uma desavença[2] entre os ex-jogadores, a maior diferença se passa no modo como ambos conduziram suas carreiras. Romário expressava a força dionisíaca na medida em que suas atitudes, muitas das vezes irresponsáveis, fugiam a racionalidade de um jogador profissional que necessita de disciplina para manter sua forma física e, por conseguinte, melhorar sua performance. Isso significa, em grande parte, não perder noites em “bacanais” rodeado de mulheres e álcool. Além disso, Romário mostrava sua indomável necessidade por mudanças ao não deixar sua imagem fixada a apenas um clube, jogando em times rivais, uma verdadeira contradição dionisíaca. Em contrapartida, Zico praticamente cedeu seu corpo para dar a reconhecida forma flamenguista, de modo que é impossível pensar em um e não lembrar do outro. Zico é o signo, representação perfeita do Flamengo. Em termos de profissionalismo, Zico foi um exemplo, um modelo, uma representação perfeita do ser atleta, com sua aplicação nos treinamentos e sua busca infindável pelo requinte técnico, sobretudo nas reconhecidas e primorosas cobranças de falta. Romário x Zico, modos de existência futebolística tão antagonistas quanto os personagens míticos Dionísio/Baco x Apolo.

Aquiles e Baco são semideuses por terem sido concebidos de forma híbrida. Assim é também o semideus Romário no Rio de Janeiro: é filho do Vasco – um simples mortal – com o Flamengo – um Deus poderoso do futebol brasileiro. E o Fluminense? O Flu é um semideus, logo, mortal pela própria natureza. Quando morre (cai para série B ou C) sua mãe, a “deusa CBF”, o puxa de volta para a primeira divisão: isso sim é “trágico”.

 

Notas

[1] O pai de Romário era torcedor fanático do América-RJ. Romário prometeu ao pai que jogaria pelo clube e, aos 43 anos, ele entra em campo para cumprir a sua promessa. Romário joga alguns minutos na final da série B do carioca de 2009 e dá a volta olímpica com o time da Grande Tijuca, que venceu na final do torneio o time do Artsul, por 2 x 0. Edevair, o pai do “baixinho” – como o jogador era conhecido –, não presenciou tal feito, pois faleceu um ano antes, aos 76 anos de idade, vítima de um ataque cardíaco no hospital onde se tratava de uma infecção generalizada dos órgãos.

[2] A desavença entre ambos teve início em 1998, quando ao não ser convocado para a Copa do Mundo, Romário insinuou que Zico, auxiliar do técnico da seleção brasileira, Zagallo, foi o responsável pelo seu corte. Após a seleção brasileira perder a Copa daquele ano, Romário põe nas portas do banheiro de seu bar caricaturas de Zico e Zagallo. Tal desavença se estendeu por outros capítulos, chegando até a uma disputa judicial. Mais recentemente, parece que os ex-jogadores fizeram as pazes ao disputarem o Jogo das Estrelas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Aquiles ou Baco? Romário, um semideus do futebol carioca. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 23, 2021.
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