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Arábia Saudita: o novo el dorado para os tentáculos da Futebolização?

Rodrigo Koch 20 de fevereiro de 2023

A – ainda – recente transferência de Cristiano Ronaldo para o futebol saudita desperta uma série de questionamentos sobre quais serão os desdobramentos destas novas produtividades da Futebolização no cenário mundial do esporte e, especialmente, no Oriente Médio.

A Arábia Saudita estaria entrando de uma forma mais agressiva no mercado mundial do Futebol? Cristiano Ronaldo e outros astros, que porventura escolherem se transferir nos próximos meses, terão visibilidade no futebol saudita a ponto de concorrem aos prêmios de melhores do mundo? A venda de produtos vinculados ao Al Nassr FC, e talvez outros clubes, atingirá as pretensões dos seus dirigentes, ou melhor, donos? A atuação de CR7 em solo saudita, nos próximos anos, vai alterar a identidade futebolística de crianças e jovens tanto nos aspectos locais como nos globalizados? Esta seria a melhor estratégia para a Arábia Saudita conquistar o direito de sediar uma Copa do Mundo FIFA nos próximos anos? São ainda perguntas que somente poderão ser respondidas com o tempo …

Neste texto faço breves análises, ainda, iniciais sobre a transferência de Cristiano Ronaldo para o futebol árabe e, suas possíveis produtividades a partir do fenômeno da Futebolização.

Cristiano Ronaldo
Fonte: divulgação

Defendo que a Futebolização – fruto da globalização a partir do futebol espetacularizado e mercantilizado, com seus maiores efeitos desde os anos 1990 – está imersa em um campo fluído que apresenta variações de tempos em tempos (sem que haja uma norma para cada período temporal) e, por isso, se transforma e se transfigura em cada espaço que penetra e a cada instante, adquirindo também contornos locais (KOCH 2020). O fenômeno da Futebolização também pode ser considerado uma pedagogia cultural, pois desde a emergência dos Estudos Culturais a pedagogia passou a ser entendida como um mecanismo de ensinamento ou difusão de modos de ser e pensar, ou seja, a pedagogia não se limita a práticas escolares explícitas ou institucionalizadas: ela está na TV, em filmes, jornais, revistas, anúncios, videogames, aplicativos, brinquedos, e também nos esportes (STEINBERG 1997). A Futebolização está na cultura e sem dúvida alguma produz seus ensinamentos. Vale lembrar que Giulianotti (2010 e 2012) salienta que o futebol é uma das grandes instituições culturais, como a educação e a mídia, que formam e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro.

Depois das movimentações dos últimos anos na China para incrementar sua Superliga com a contratação de jovens promessas e jogadores com certo destaque em solos sul-americano, africano e também europeu; e, dos Estados Unidos em atrair jogadores veteranos renomados em seus países de origem para alavancar o marketing da Major League Soccer (MLS); chegou a vez da Arábia Saudita tentar o sucesso e, expandir o mercado do futebol para além da Europa e, em menor medida, da América do Sul. Será a Arábia Saudita o novo el dorado para os tentáculos da Futebolização?

Comparativos são difíceis e muitas vezes equivocados, pois cada país apresenta suas culturas e identidade nos vínculos que estabelece com o futebol – temática que venho pesquisando e expandindo na última década (KOCH 2022). Em princípio e à distância, nos parece que a Arábia Saudita nutre uma relação com o esporte muito maior que a China ou os Estados Unidos e, este seria um motivo inicial no qual poderíamos ‘apostar um pouco mais de fichas’ nas futuras produtividades da Futebolização. Também é ponto fundamental, a contratação de Cristiano Ronaldo pelo Al Nassr FC, um dos maiores craques da história do futebol mundial e ainda na ativa, algo que nem chineses ou norte-americanos tentaram ou conseguiram em anos anteriores.

Na China, a criação da Superliga em 2004 pareceu ter sido uma condição natural com o crescimento e importância que o país ganhou nas últimas décadas no cenário geopolítico mundial. Com objetivo de se tornar o novo mercado do futebol mundial e transformar sua seleção nacional em uma equipe competitiva, os altíssimos salários chineses atraíram jogadores e técnicos para o novo el dorado do futebol naquele recente momento. As políticas do futebol chinês, estabelecem que cada equipe da Superliga da China pode ter até cinco jogadores estrangeiros, mas apenas quatro podem estar em campo ao mesmo tempo. O quinto jogador poderá iniciar do banco de reservas e até entrar durante a partida, desde que substitua outro atleta estrangeiro. Jogadores nascidos em Taiwan, Hong Kong e Macau não são contabilizados como atletas estrangeiros. A partir da temporada 2017 também entrou em vigor uma regra que passou a tornar obrigatória a utilização de ao menos um jogador Sub-23 em cada time titular. Além disso, é proibida a utilização de goleiros estrangeiros na elite do futebol chinês. No entanto, após o boom dos primeiros anos, gradativamente – e especialmente durante e após a pandemia da Covid-19 – jogadores e técnicos começaram a retornar aos principais mercados futebolísticos mundiais, ou seja, Europa e América do Sul. Portanto, o plano dos chineses – pelo menos momentaneamente – não teve o êxito esperado. O selecionado do país nem mesmo conseguiu melhorar sua qualidade técnica e se configurar como uma presença constante nas últimas edições da Copa do Mundo FIFA. No caso da China, ainda reside um grande ponto de interrogação sobre os investimentos feitos e o futuro do futebol no país.

Já os Estados Unidos apresentaram no passado outras tentativas de montagem de ligas para o futebol – como a North American Soccer League –, que fomentaram a modalidade no território norte-americano em décadas anteriores, mas que acabaram naufragando e, basicamente utilizavam da mesma metodologia atual, ou seja, contratar jogadores veteranos renomados para venderem seu produto. A MLS foi anunciada oficialmente no final do ano de 1993 – impulsionada pela Copa do Mundo FIFA 1994 –, mas teve sua primeira temporada oficial somente três anos depois, em 1996. Somos sabedores que as dinâmicas que envolvem o esporte nos Estados Unidos diferem da maioria dos países – especialmente no futebol –, sendo baseada no sistema de franquias que colocam tudo (inclusive clubes e jogadores) em prateleiras para serem consumidos. Portanto, sem qualquer melindre ou hipocrisia, tanto as equipes como os atletas são mercadorias passíveis de consumo e suas eventuais transferências ao final dos contratos são fatores naturais do processo nos Estados Unidos. Ou seja, o esporte de alto rendimento e de entretenimento – para a grande massa populacional – é algo, desde sempre, pensado para vender produtos e gerar lucros. A paixão habitual de sul-americanos e europeus pelo futebol se manifesta de forma diferenciada em solo norte-americano.

Sobre o futebol na Arábia Saudita ainda estamos aprendendo e conhecendo suas nuances … Sabemos que a Liga Profissional Saudita, é a divisão principal do futebol nacional da Arábia Saudita e, a primeira competição foi realizada na temporada de 1975–76, sendo vencida pelo Al Nassr FC, que agora se pressupõe pretende retomar esta hegemonia. De 2013 a 2019, a competição ficou conhecida como a Liga Abdul Latif Jameel, ou Dawry Jameel, por ter sido patrocinada por Abdul Latif Jameel por seis anos. Atualmente é disputada por 16 equipes, e tem como maior vencedor o Al Hilal SFC com 18 títulos. Nesta temporada, Al Nassr FC, Al Hilal SFC, Al Shabab FC e Al Ittihad FC disputam ponto a ponto o título da competição que dá direito ao campeão disputar a Liga dos Campeões da Confederação Asiática de Futebol e, que por sua vez aponta o(s) representante(s) no Mundial de Clubes FIFA. Inclusive, para nós brasileiros, o Al Hilal SFC teve participação surpreendente nesta última edição, eliminando o CR Flamengo da esperada decisão contra o Real Madrid CF. E também sabemos que um investimento milionário foi feito pelos mandatários do Al Nassr FC para contar com Cristiano Ronaldo em seu plantel nos próximos anos. Atualmente, além dele, os demais jogadores que chamam atenção no futebol saudita são: os brasileiros Anderson Talisca, Luiz Gustavo (Al Nassr), Marcelo Grohe, Bruno Henrique, Romarinho (Al Ittihad), e Michael (Al Hilal); os argentinos Rossi, Pity Martinez (Al Nassr), Vietto (Al Hilal) e Banega (Al Shabab); o espanhol Santi Mina (Al Shabab); os colombianos Ospina (Al Nassr), e Cuéllar (Al Hilal); e o peruano Carrillo (Al Hilal), entre outros estrangeiros.

As primeiras semanas do astro português e mundial, que há poucos dias completou 38 anos, deram sinais positivos ao seu novo clube. Com a chegada de Cristiano Ronaldo, o Al Nassr FC que tinha 800 mil seguidores no Instagram passou a ser acompanhado por mais de 9 milhões de usuários da rede e, segue subindo. Os últimos dados apontam para cerca de 12,5 milhões de seguidores. O até então pouco conhecido Al Nassr FC, por exemplo, passou a ser mais seguido no Instagram do que todos os clubes brasileiros, exceto o CR Flamengo; e ainda ultrapassou clubes importantes do futebol europeu, como os italianos FC Internazionale Milano e AS Roma e o inglês Everton FC. A publicação do anúncio da chegada de Cristiano ao Al Nassr FC no Instagram, feita em conjunto com o perfil do atleta, ultrapassou a marca de 35 milhões de curtidas. Somado a isto, houve uma enorme onda de consumidores à procura da camiseta do novo clube de CR7, vendida para o mercado brasileiro por cerca de R$ 430,00. As vendas deste artefato não param. Os jogos do Al Nassar FC transmitidos para pouquíssimos países até a chegada da celebridade, passaram a ser acompanhados no mundo todo, gerando dividendos ao clube saudita. Paralelamente houve um interesse, nunca antes registrado, pelo campeonato local. São alguns aspectos importantes que já demonstram o quanto valeu a pena para o Al Nassr FC investir em Cristiano Ronaldo, mesmo em final de carreira, mais ainda com fantástico potencial de atrair as atenções no cenário mundial do futebol. A ida de CR7 para o futebol da Arábia Saudita, despertou também uma série de rumores de outros astros que poderiam se transferir para o mesmo clube ou para os rivais diretos, como o croata Luka Modric, o francês Kanté e, até mesmo o argentino Lionel Messi, entre outros. Vale lembrar que o país do Oriente Médio já manifestou interesse em sediar uma Copa do Mundo FIFA no futuro breve e, portanto, a presença de grandes nomes da modalidade para alavancar a candidatura seria uma das estratégias de marketing e prova que os árabes desejam valorizar seu produto futebol, mesmo diante de uma série de questionamentos e violações aos Direitos Humanos que ainda ocorrem em países do Oriente Médio.

Por enquanto, estes são apenas indícios e análises preliminares e, ainda, um tanto superficiais, sobre as possíveis produtividades da Futebolização na Arábia Saudita a partir da transferência de Cristiano Ronaldo. O que se seguirá desperta, em grande medida, no mínimo curiosidade tanto de aficionados como de pesquisadores e investigadores de temáticas relacionadas ao futebol. Aguardemos os desdobramentos deste novo espaço que nos parece que também foi fisgado pelos tentáculos da Futebolização.

Referências

GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

GIULIANOTTI, Richard. Fanáticos, seguidores, fãs e flâneurs: uma taxonomia de identidades do torcedor no futebolRecorde: Revista de História do Esporte. Volume 5 (1), p.1-35, 2012.

KOCH, Rodrigo. Futebolização: identidades torcedoras da juventude pós-moderna. Brasília, DF: Trampolim Editora/Ministério da Cidadania, 2020.

KOCH, Rodrigo. Cultura, Identidade e Futebolização: Na Europa Contemporânea. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2022.

STEINBERG, Shirley. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José Clóvis de; SANTOS, Edmilson Santos dos (Orgs.). Identidade Social e a Construção do Conhecimento. Porto Alegre: SMED, 1997.

Wikipédia. 2022-23 Saudi Professional League. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/2022%E2%80%9323_Saudi_Professional_League Consultado em fevereiro de 2023.

Wikipédia. Campeonato Saudita de Futebol. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Campeonato_Saudita_de_Futebol Consultado em fevereiro de 2023.

Wikipédia. Cristiano Ronaldo. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cristiano_Ronaldo Consultado em fevereiro de 2023.

Wikipédia. Major League Soccer. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Major_League_Soccer Consultado em fevereiro de 2023.

Wikipédia. Superliga Chinesa. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Superliga_Chinesa Consultado em fevereiro de 2023.

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Como citar

KOCH, Rodrigo. Arábia Saudita: o novo el dorado para os tentáculos da Futebolização?. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 22, 2023.
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