39.7

Arbitragem, a maior vítima da profissionalização do futebol?

Marcel Diego Tonini 26 de setembro de 2012

O profissionalismo torna inexeqüível o juiz ladrão. E é pena.
Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico,
um desfalque dramático para os jogos modernos.

Nelson Rodrigues, Manchete Esportiva, 31 dez. 1955.

No último domingo, 16 de setembro de 2012, realizou-se mais um dérbi paulista, entre Palmeiras e Corinthians. Como qualquer outro clássico mundial entre clubes de tradição, ainda mais de uma mesma cidade, sempre é uma partida de muita rivalidade, disputa e equilíbrio. A situação complicada do alviverde no Campeonato Brasileiro, por se encontrar na zona de rebaixamento, trouxe mais dramaticidade e tensão para o jogo. Se antes da partida o favoritismo já estava do lado corinthiano, com o desenrolar dos lances isto se mostrou mais claro, embora o Palmeiras tomasse a iniciativa para o desempate.

O gol e a comemoração do alvinegro Romarinho aos 21 minutos do primeiro tempo acirraram os ânimos. Provavelmente numa tentativa de “não deixar o jogo escapar do seu controle”, como roga a gíria futebolística, o árbitro principal, Marcelo Ribeiro de Souza, deu o segundo cartão amarelo e consequentemente o vermelho ao jogador palmeirense Luan poucos instantes depois em uma disputa aparentemente normal de bola. A partida que já estava quente pegou fogo e o que se viu daí em diante foi uma cobrança excessiva e desproporcional sobre o sexteto de arbitragem, vinda tanto dos jogadores quanto dos treinadores e membros de comissão técnica de lado a lado.

Árbitro e auxiliares. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Com o apito final do primeiro tempo, vários atletas alviverdes reclamaram da arbitragem ao serem entrevistados pelos repórteres esportivos, entre eles: Henrique, Marcos Assunção e Valdívia. No intervalo do jogo, a imprensa, por sua vez, utilizou as imagens de inúmeras câmeras para avaliar os lances polêmicos e sentenciar, avalizados pelos comentaristas de arbitragem, que o árbitro principal do jogo errou na aplicação dos cartões àquele atleta palmeirense expulso, “interferindo e prejudicando diretamente o espetáculo”, como se ouviu.

A partida reiniciou e o panorama não se alterou. Em poucos minutos o time do Corinthians criou algumas oportunidades de fazer o segundo gol, o qual não tardou a sair. O 2 a 0, aos 8 minutos, trazia segurança aos comandados do técnico alvinegro Tite, que se contentaram com o placar. Mesmo com um jogador a menos, o time do Palmeiras continuou com um domínio maior da posse de bola, porém sem resultar em grandes chances de gol.

Antes de a partida acabar, os atletas alviverdes ainda reclamaram de uma suposta mão na bola do lateral direito corinthiano, mas a segunda grande polêmica foi mesmo a anulação de um gol do Palmeiras nos minutos finais. No lance, o atacante Obina fez falta no zagueiro corinthiano Paulo André antes de cruzar a bola para Valdívia arrematar para a meta alvinegra. Quem marcou a infração, contudo, foi o bandeirinha enquanto o árbitro principal corria para o centro de campo. O árbitro-assistente comunicou-se com Marcelo Ribeiro de Souza, que invalidou o gol. Assim que trilou o apito final, policiais correram para protegê-lo que, entre reclamações e ofensas, ouviu várias vezes o zagueiro alviverde Henrique pronunciar: “Safado! Safado! Você é um safado!”.

Árbitro em jogo do Palmeiras. Foto: Sérgio Settani Giglio.

“Mal intencionado” é uma das expressões mais usadas por jogadores, treinadores, torcedores e até mesmo jornalistas esportivos para classificar árbitros que apitam partidas com lances polêmicos, tal como foi esta entre Palmeiras e Corinthians. O juiz de futebol é sempre o álibi perfeito para uma grande derrota, principalmente se o derrotado está em má fase no campeonato ou vivendo uma crise política, como é o caso do alviverde paulistano. É mais fácil achar um bode expiatório do que assumir os próprios erros. Dizer que os árbitros são “mal intencionados” é partir do suposto de que eles não são éticos, de que não possuem caráter, traço este de difícil reversão moral. Ou seja, tratá-los dessa forma é dizer que sua atuação, por vezes equivocada, é praticamente incorrigível.

“Falta de critério” é outra assertiva comum em referência à arbitragem brasileira. Dizem: “Tem hora que os árbitros dão mão na bola, tem outra que dão bola na mão. Em uma falta dão cartão amarelo, em outra semelhante não dão para não ter que expulsar. Em faltas duras, não mostram cartão, mas, em supostas simulações e comemorações de gol, mostram.”. Muitos jornalistas alegam também que o critério de um árbitro, que por si só já é “confuso”, não vale para outro. Ainda que alguns poucos da imprensa esportiva façam uma série de ponderações na avaliação da arbitragem, criticam com veemência e com duras palavras. De modo geral, há um desrespeito muito grande ao falarem dos árbitros. Exemplo disso é tratá-los como “assopradores”. É a mesma coisa que chamar jogadores de “pernas de pau”, treinadores de “professores Pardal” ou cronistas esportivos de “escritores frustrados” ou dizer que sua área de atuação “não tem importância”.

Não quero dizer com isso que não tenham árbitros, principais ou assistentes, mal intencionados ou sem critério. Existem maus profissionais em todas as áreas, não só no futebol. O erro, a meu ver, está em nivelá-los por baixo e não fazer algumas ponderações necessárias. A primeira delas, sem dúvida, é falta de profissionalização da arbitragem. Todos eles têm alguma outra atividade profissional, não se dedicando totalmente ao futebol. Não fazem isso por falta de vontade, mas por não terem garantias legais e contratuais que os possibilitem viver apenas da arbitragem. Se eles têm de trabalhar em outra profissão, como podem treinar diariamente a parte física e disciplinar? Ou rever suas atuações, onde erraram e acertaram? Ou dialogar com os outros árbitros e juntos fazer uma avaliação do trabalho feito? Ou se concentrar e estudar antes das partidas, uma vez que têm metas a cumprir, cada um em sua profissão? Pelo mesmo motivo, como podem descansar devidamente depois dos jogos?

Árbitro e auxiliares cumprem ritual. Foto: Sérgio Settani Giglio.

É preciso levar em consideração que os profissionais de um clube, sejam eles jogadores ou membros de comissão técnica, têm toda uma estrutura que os possibilita treinar, descansar, comer adequadamente. Sequer têm de se preocupar com a viagem e a hospedagem. Caso tenham uma contusão, há um corpo médico por trás que fará todos os exames necessários, diagnosticando o problema e indicando o tratamento adequado, inclusive com acompanhamento profissional. E os árbitros? Onde treinam, como se preparam e se deslocam? E se eles se contundirem? Continuarão recebendo salários e terão acompanhamento médico? Não, porque não são assalariados nem têm sua profissão regulamentada. Por receberem por jogo apitado, a arbitragem é, na verdade, um bico, não uma profissão.

Os jornalistas esportivos, pelo menos aqueles empregados nos grandes veículos de comunicação, estão também numa condição profissional muito melhor. A empresa já possui uma equipe de funcionários que dá o suporte técnico necessário na captação de imagens, notícias e informações gerais. Quando analisam ou comentam lances de jogo, os dados já estão em suas mãos segundos depois das jogadas. Há ainda dois recursos tecnológicos que praticamente determinam acertos e erros da arbitragem: primeiro, as inúmeras câmeras que captam imagens de distintos ângulos e, segundo, o “tira-teima” que, se bem aplicado, elimina dúvidas de impedimento.

A arbitragem, contudo, não tem nenhum desses recursos. Aliás, deve tomar decisões em segundos, confiando plenamente em seus sentidos e do seu ponto de vista, ainda que hoje tenhamos seis árbitros com comunicadores. Não podem pausar a partida nem utilizar qualquer daqueles recursos para avaliar se um jogador simulou ou não um pênalti, se a bola bateu na mão ou se foi mão na bola, se um jogador estava ou não em condição irregular, ou se ele recebeu uma falta de um adversário antes de cometer uma infração semelhante. Qualquer distração, piscar de olhos ou mau posicionamento pode comprometer a sua avaliação instantânea.

As câmeras e os microfones, no entanto, não conseguem captar tudo. Por mais que às vezes seja possível fazer uma leitura labial através de uma imagem, quem assiste à partida de fora não sabe o que se passa exatamente dentro do campo. Ao invés de isso contar a favor dos árbitros, na maioria das vezes pesa contra, ao menos aos olhos de tantos treinadores, jogadores reservas, jornalistas esportivos e torcedores, que ao contrário de fazerem tal ponderação, criticam de antemão uma decisão da arbitragem. Às vezes, um juiz aplica cartão amarelo a um atleta não porque este cometeu uma falta ou infração grave, mas por insultá-lo com frequência. Paciência tem limite, e os cartões são os instrumentos disciplinares que eles têm em mãos.

A minha impressão sobre a expulsão do jogador Luan, do Palmeiras, no dérbi paulista foi nesse sentido, principalmente pela discussão que o árbitro e ele tiveram após a comemoração do primeiro gol corinthiano. É evidente que Marcelo Ribeiro de Souza pode vir a publico e me desmentir, mas, levando em consideração o histórico do atleta palmeirense e a súmula do jogo (http://globoesporte.globo.com/futebol/brasileirao-serie-a/noticia/2012/09/arbitro-relata-ofensas-de-luan-e-objetos-atirados-em-sumula-do-derbi.html), minha impressão só se reforça.

Árbitro marca falta no jogo do Palmeiras contra o Sport. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Cabe, por fim, a pergunta: a arbitragem é a maior vítima da profissionalização do futebol? No meu entender, sim, pois enquanto os outros setores do universo do futebol já se profissionalizaram há muito tempo (só para se ter uma ideia, os jogadores o foram em 1933), a arbitragem continua a ser tratada de maneira amadora. O descompasso entre as áreas é cada vez maior, ainda mais se considerarmos a adoção de avanços tecnológicos no futebol, tais como na medicina esportiva, na preparação física, nos materiais esportivos, nos estádios e em centros de treinamento.

A FIFA sempre se colocou contra o uso de tecnologia para auxiliar a arbitragem, porém o progresso dos outros esportes nesse sentido está pressionando a entidade máxima do futebol. Ninguém quer alterar radicalmente o ludopédio, apenas que lances facilmente detectáveis não comprometam mais o esporte, tais como uma bola dentro ou fora do gol, um pênalti ou uma simulação escandalosa, um impedimento clamoroso ou uma jogada legal em que foi assinalado um impedimento inexistente. Talvez, se fosse adotado algo similar ao que o tênis implementou em grandes competições – nas quais os tenistas podem contestar a marcação dos árbitros e, caso tenham razão, continuam com a chance de duvidar dos seus julgamentos –, lances como esses, que alteram o placar de uma partida de futebol, poderiam ser revistos. Creio que uma contestação por tempo para cada time seria suficiente.

Não adianta, por outro lado, as federações de futebol e a CBF convocarem os árbitros para realizarem reciclagem e testes físicos e disciplinares apenas duas vezes por ano. É preciso que isso seja algo constante, mas, para tanto, essa atividade deve ser regulamentada, garantindo os mesmos direitos e deveres de outras profissões (férias, 13º salário, FGTS, aviso prévio etc.). Afinal, que assalariado irá largar a sua profissão para ser árbitro de futebol, correndo o risco de não ser sorteado para jogos, ser vetado por clubes, sofrer contusão e não receber qualquer respaldo, ser insultado por jogadores, treinadores, dirigentes e torcedores, ter suas decisões contestadas por câmeras e recursos tecnológicos sem que possam se valer disso, ser criticado por jornalistas esportivos publicamente e de maneira desrespeitosa sem ter direito de resposta e, se tudo isso não bastasse, ser interpelado por torcedores fanáticos no seu dia a dia? Sendo mais bem preparados e amparados, os árbitros certamente apitarão melhor e poderão ser mais cobrados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. Arbitragem, a maior vítima da profissionalização do futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 39, n. 7, 2012.
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