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Argentina, 1977: Lembranças do futebol portenho e de La Bombonera!

Nas férias de inverno de 1977 eu estava na Argentina, como costumava acontecer nos anos de minha infância. Filho de mãe nascida naquele país, não foram poucas as vezes em que meus pais, meu irmão e eu cruzamos o Sul do Brasil de carro para alcançar a cidade uruguaia de Colônia do Sacramento. Lá tomávamos o ferry-boat e cruzávamos o Rio da Prata, chegando a Buenos Aires, onde ganhávamos as ruas em nosso próprio automóvel.

No primeiro semestre daquele ano eu começara a ler e colecionar a Placar. Na falta da conhecida revista em terras portenhas, meu pai me comprava El Gráfico, mais ou menos a correspondente local ao meu objeto semanal de desejo. Estranhei, de início. As páginas eram maiores, o papel acetinado e fino, as margens menores. Os títulos eram mais bombásticos. Aprendi os termos e uma maneira de falar de fútbol em castelhano com a leitura da revista ainda hoje presente nas bancas de praça argentinas, agora em versão mensal. Com eles entendi melhor o locutor (relator) que narrou os oito a zero que a seleção brasileira, treinada por Cláudio Coutinho, impôs ao selecionado da Bolívia, pelas eliminatórias do Mundial que seria jogado, precisamente, na Argentina no ano seguinte. Foi um show de Zico, falado em espanhol.

A leitura de El Gráfico – título nada casual que, como escreveu Hugo Lovisolo, mostra a proximidade na construção dos campos jornalístico e esportivo – me aproximou da cultura futebolística portenha, em especial do Boca Juniors. Naquele ano o Boca disputaria a final da Copa Libertadores da América com o Cruzeiro, então campeão do torneio. O time de camisetas azuis com a larga faixa ouro horizontal no peito, vinha com tudo e nele brilhava o excelente arqueiro Hugo Gatti. Cabelos longos, bandana, calções largos, ele parecia Miguel Angel Ortiz, goleiro do Atlético Mineiro, também argentino e que, cúmulo dos cúmulos na época, batia pênaltis para o Galo. Gatti era, no entanto, muito mais goleiro que Ortiz e não foram poucos na Argentina que se impressionariam com sua ausência no plantel do Mundial em 1978. Dizia-se que seria uma pressão muito grande para Ubaldo Matildo Fillol, do River Plate, ter como suplente o grande ídolo do Boca. Na equipe de Menotti, em 1978, outra ausência seria sempre lembrada, a do menino de dezessete anos oriundo de Villa Fiorito, jogador do Argentinos Juniors, Diego Maradona.

No final de 1976 eu me entristecera um pouco ao ver o Cruzeiro ser derrotado pelo poderoso Bayern München, base da seleção da Alemanha Ocidental, campeã mundial dois anos antes, na final do Mundial de Clubes – na verdade, duas partidas, naquela época, entre os campeões da América do Sul e da Europa. A primeira, em Munique, debaixo de muita neve e por isso jogando com uma bola cor laranja, os bávaros se impuseram em dois a zero. No jogo de volta, numa Belo Horizonte chuvosa, o empate sem gols deu o título aos alemães.

Boca campeão da Libertadores de 1977.

Boca e Cruzeiro se encontraram em três jogos para decidir a Libertadores, há quarenta anos. Na primeira partida, na mítica La Bombonera, o estádio do bairro portuário de La Boca, os argentinos venceram. Minha lembrança é a de uma festa tremenda da hinchada xeneize, de muito papel atirado ao campo, verdadeiras tiras longas na área cruzeirense, atrapalhando o goleiro Raul. Jogar na cancha do Boca sempre foi e segue sendo muito difícil. Pelé afirma que a contenda mais difícil de sua vida foi a vitória do Santos lá, por um a zero, em 1963; jogadores dizem que é difícil escutar um companheiro a poucos metros de distância, tal o vigor do barulho no hermético estádio. No segundo jogo da final, em Belo Horizonte, o Cruzeiro venceu com um golaço de Nelinho, o lateral-direito que chutava como poucos, uma pancada de tiro livre que, com tremendo efeito, não deixou chances para Gatti. Pouco antes, em mais de um de seus arroubos, o treinador cruzeirense, o ex-goleiro argentino Dorival Knippel, o Yustrich, invadira o campo e beijara o goleador brasileiro daquela tarde de domingo.

Na decisiva, no Estádio Centenário, em Montevidéu, o Boca venceu por pênaltis, depois do zero a zero, habilitando-se para a final do Mundial Interclubes, com outra equipe alemã, o Borussia Möchengladbach. Contra o time europeu, seria campeão na partida decisiva na Alemanha, em noite de glória de Salinas, que fora antes ídolo no arquirrival River. El Loco Salinas seria personagem de um relato de Martín Kohan, grande escritor e crítico argentino, torcedor fanático do Boca. Encontraram-se no bairro em que Kohan nascera, Salinas lhe disse que também era torcedor do time e que frequentava as tribunas populares de La Bombonera, ofereceu-se ainda para levá-lo em um táxi que dirigia, ao lugar que fosse. Kohan, estupefato, e não sem antes reverenciar o ídolo, recusou educadamente e foi-se embora com sua bandeira.

Daquele 1977 para cá tive momentos mais próximos e outros mais distantes da dinâmica do futebol argentino. Eventualmente, volto a El Gráfico, assisto a partidas na televisão, converso com amigos de lá. Todos têm sua equipe para torcer, tenho a impressão de que o fanatismo lá é maior do que aqui, especialmente em Buenos Aires, em especial, uma cidade com muitas equipes de primeira divisão, talvez com menos apenas que Londres e Montevidéu. Frequentemente vou à Argentina e, então, frequento os estádios. La Bombonera já não é mais o lugar precário que foi, las canchas argentinas também se gentrificaram, ainda que não como no Brasil. As populares lá parecem intocáveis. Torcida apaixonada, saltando e cantando sem parar, é um prazer assistir a um jogo com os hinchas locais.

Meu amigo Emiliano Gambarotta diz que a Argentina é uma sociedade plebeia, e penso que ele está correto, especialmente se a comparamos com a brasileira. Lá o tratamento formal é corriqueiramente dispensado. No futebol, não é diferente. Jogadores, imprensa e dirigentes, malgrado os problemas de estrutura e de corrupção – lá como cá – são mais diretos, sinceros, passionais, há muito menos controle no que se diz. Os futebolistas são tratados pelo prenome (“Diego” e não “Maradona”) e frequentemente por algum apelido carinhoso (“Muñeco Gallardo”, “Burrito Ortega”), mesmo quando se tornam treinadores. Eu já percebia isso quando lia El Gráfico em 1977. Naquela época não, mas agora vigem aqui com frequência prenome e sobrenome, porque se procura pompa e circunstância (“Willian José”, “Muricy Ramalho”). Nas ruas, cafés e bares de Buenos Aires parece que todos se sentem parte do universo do futebol em condição de igualdade. Talvez haja aí algo de democracia.

Ilha de Santa Catarina, setembro de 2017.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Argentina, 1977: Lembranças do futebol portenho e de La Bombonera!. Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 2, 2017.
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