09.8

Armando Nogueira 83

Rodrigo Silva Viana 30 de março de 2010

E as palavras, eu que vivo delas, onde estão? Onde estão as palavras para contar a vocês e a mim mesmo que Armando Nogueira morreu? O Brasil está triste e toda a multidão de leitores está em transe. Parece uma comoção nacional: admiradores com os olhos deitados nos livros, revistas, jornais e arquivos. Cem olhos a lembrá-lo.

Levam-lhe os jornais, levam-lhe os livros. Sei que é total a alucinação nos quatro cantos do país, mas só tenho olhos para a cena insólita: há muito que arrancaram as crônicas esportivas dos jornais. Só faltava, agora, alguém tomar-lhe a vida, derradeiro poeta da bola. Uma pena lírica de um semideus dos escritos.

Mas, felizmente, a cautela e o sangue-frio vencem sempre: venceram, com o Brasil, o Mundial de 70, e venceram, também, na hora em que o desvario pretendia deixar Armando Nogueira completamente esquecido aos olhos de quase duzentos milhões de brasileiros.

E lá se vai Armando, correndo pelo céu afora, coberto de glórias, coberto de lágrimas, atropelado por uma pequena multidão. Essa gente, que está aqui por amor, vai acabar sufocando as crônicas de Armando Nogueira. Se os jornalistas não entram em campo para homenageá-lo, coitado dele.

Coitado, também, dos livros de Armando, pendurados em mil prateleiras – Drama e Glória dos Bicampeões, Na Grande Área, Bola na Rede, O Melhor da Crônica Brasileira, Bola de Cristal, O Homem e a Bola, A Copa que Ninguém Viu e a que Não Queremos Lembrar, O Canto dos Meus Amores, A Ginga e o Jogo e um sombreiro imenso de outros textos, entrelaçando ficção e realidade, carregando, por todos os lados, o sabor da paixão coletiva.

O jornalismo brasileiro, nesse momento, é um manicômio: botafoguenses e vascaínos, corintianos e palmeirenses, flamenguistas e fluminenses, com bandeiras enormes, engalfinham-se num estranho esbanjamento de alegria e saudosismo.

Agora, quase não posso ver o futebol lá embaixo: chove reportagem e emoção no texto de Nogueira. Esse acreano que nasceu jornalista foi feito para o futebol: sua arquitetura de palavras põe o povo dentro do campo, criando um clima de intimidade que o futebol, somente em Armando Nogueira, toma emprestado à literatura.

Cantemos, amigos, a fiesta brava, cantemos agora, mesmo em lágrimas, os derradeiros instantes do mais bonito texto que meus olhos jamais sonharam ver.

Pela correção dos parágrafos, escritos em oitenta e três anos de vida. Pelo respeito com que todos os profissionais da imprensa prestam a ele, imagem a imagem, reportagem a reportagem, trocando informações, trocando consolo, trocando destinos que hão de se encontrar, novamente, em alguma crônica de Armando Nogueira.

Choremos a alegria de uma vida admirável em que o Brasil fez futebol de fantasia, fazendo amigos. Fazendo irmãos em todos os continentes.

Orgulha-me ver que o futebol, nossa vida, é o mais vibrante universo de paz que o homem é capaz de iluminar com uma máquina de escrever, seu brinquedo fascinante. Oitenta e três anos, nenhuma baixa. Várias emissoras de tevê e jornais – hoje ele morreu. Mas não há bandeiras de luto no mastro dos heróis do futebol.

Por isso, recebam, logo mais, no velório, no Maracanã, o herói do Mundial de 70, de 1994, de 2002, com a ternura que acolhe em casa os meninos que voltam do pátio, onde brincavam.

Perdoem-me o arrebatamento que me faz sonegar-lhes a análise fria da obra de Armando Nogueira. Mas textos póstumos são assim mesmo: as análises cedem vez aos rasgos do coração.

Tenho uma vida profissional cheia de ídolos que já se foram e, em nenhum deles, falou-se de análises de vidas. Homenagem é sublimação, homenagem é pirâmide humana de olhos nas frases geniais de Armando Nogueira: “Heróis são reféns da glória. Vivem sufocados pela tirania da alta performance”; ou, ainda: “Deus é esférico”. Homenagem é antes do nascimento, depois do nascimento. Nunca durante a vida.

Que humanidade, senão a do esporte, seria capaz de construir, sobre a abstração de um texto, a cerimônia a que assisto, neste instante, querendo chorar, querendo gritar? Os campeões mundiais de futebol em volta do caixão, a beijar o corpo de Armando Nogueira, pai adotivo de todos nós, brasileiros?

Ternamente, o capitão Carlos Alberto cola o corpinho dele no seu rosto fatigado: escreveu para sempre, escreveu por ti, adorável peladeiro do Aterro do Flamengo. Armando, agora, é teu, amiguinho, que mataste tantas aulas de junho para ler seus textos. Ele é quem vai baixar, em espírito, no Jalisco de Guadalajara.

Sorve nos textos de Nogueira, amiguinho, a glória de Pelé e do nosso futebol, que têm a fragrância da nossa infância.

Armando Nogueira é eternamente teu, amiguinho.

Até que os deuses do futebol inventem outro.

Esse texto foi originalmente publicado no site Jornalirismo e cedido pelo autor para publicação nesse espaço. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Rodrigo Silva Viana

Jornalista, com mestrado em Literatura. Analisou crônicas de futebol. É também professor de jornalismo esportivo na pós-graduação da FMU – Faculdade Metropolitanas Unidas.

Como citar

VIANA, Rodrigo Silva. Armando Nogueira 83. Ludopédio, São Paulo, v. 09, n. 8, 2010.
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