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As embaixadas da discórdia

José Paulo Florenzano 10 de março de 2022

O resultado do jogo parecia definido. O Botafogo chegava ao terceiro gol e ninguém no Maracanã, nem mesmo a torcida do Vasco, acreditava àquela altura – 10 minutos do segundo tempo – numa reviravolta no placar. Mas um lance aparentemente banal, ocorrido em um canto do gramado, mudaria por completo o cenário do clássico, não apenas restituindo novo ânimo ao time da Cruz de Malta, como, sobretudo, transformando o principal destaque do jogo no pivô de uma trama surpreendente, cujos desdobramentos acabariam por condicionar-lhe a trajetória profissional, marcando-a de forma indelével aos olhos do público torcedor, da crônica esportiva e da categoria dos atletas. Eis a descrição sucinta do episódio protagonizado por Paulo César Lima, logo após Jairzinho assinalar o terceiro gol da Estrela Solitária:

Num lance isolado na ponta esquerda, o jogador começou a fazer uma série de embaixadas, humilhando os adversários.[1]

As embaixadas de Paulo César, no clássico contra o Vasco pelo primeiro turno do Campeonato Carioca de 1971, remetem-nos às de Edílson, do Corinthians, na final contra o Palmeiras pelo Campeonato Paulista de 1999.[2] Entre aquelas e estas passaram-se quase trinta anos, mas, ao que tudo indica, a cultura do futebol aparentemente se manteve inalterada no que diz respeito às embaixadas, pois, nos dois casos, deparamo-nos com os mesmos veredictos emitidos pelos agentes do campo esportivo: “palhaçada”. Classificadas de atos circenses, elas desencadearam apaixonados debates acerca das regras do jogo e dos códigos de honra.[3] Permitidas pelas primeiras, viam-se, em contrapartida, veementemente condenadas pelas segundas. Elas se revelavam, ao mesmo tempo, como um gesto técnico e um ato simbólico, deixando-se apreender tanto como um recurso válido dentro das regras do futebol, quanto como um ritual de humilhação condenado pela ética dos atletas. A depender do ponto de vista no qual se situava o observador da cena carioca, podia-se concluir por uma ou outra interpretação. Além disso, convém distinguir e avaliar as perspectivas delineadas pelas diversas categorias do campo esportivo: a dos jogadores, a dos torcedores e a dos jornalistas. Elas não se mostravam convergentes, longo disso, e mesmo dentro de cada uma delas verificavam-se posições conflitantes.

Torcida Botafogo
Fonte: Wikipédia

Especificamente no caso dos atletas do Vasco, porém, o repúdio foi unânime. Ato contínuo às embaixadas de Paulo César, os cruzmaltinos cercaram-no dentro de campo, recriminando-lhe a atitude. Com o brio ferido, a equipe foi para cima do Botafogo, diminuindo a vantagem de 3 a 0 para 3 a 2. As arquibancadas do Maracanã achavam-se incendiadas. As jogadas no gramado tornaram-se mais ríspidas. A reação dos vascaínos, liderados por Silva, Alcir e Bougleux, os mais experientes do time, não deixa nenhuma dúvida quanto à significação do lance para os rivais, de resto, reiterada com destaque pela imprensa carioca: “Paulo César quis humilhar os adversários”.[4]      

Estava montado o Tribunal da Norma. Um dos primeiros a se pronunciar sobre o caso foi o jornalista Armando Nogueira. De sua coluna intitulada “Na Grande Área”, ele denunciava as “firulas” de Paulo César como ofensivas aos companheiros de profissão, sugerindo ao Botafogo “adverti-lo sem perda de tempo” sob o risco de se instaurar o “diabo” no Campeonato Carioca.[5] O jornalista Luís Lara Rezende, no Jornal do Brasil, corroborava o argumento esgrimido pelo colega, chamando atenção, no decorrer do processo, para a conduta reincidente do acusado, o qual, no clássico contra o Fluminense voltara a cometer “gracinhas dentro de campo, pulando sobre a bola e provocando o adversário como se futebol fosse circo e deboche”.[6] Já Nélson Rodrigues, em sua concorrida coluna em O Globo, sem citar o nome do réu, preferia criticar o comportamento coletivo da equipe alvinegra. O polêmico dramaturgo aludia à “lição” de seriedade ministrada pela Seleção na Copa do México, cujo “comportamento exemplar” ele alçava à condição de paradigma.[7]

E, contudo, o público que acompanhava o julgamento certamente se recordava do gol de empate da Itália contra o Brasil na final do Mundial, aos 36 minutos do primeiro tempo, fruto de um passe de calcanhar de Clodoaldo interceptado pelo adversário no campo de defesa brasileiro. Sem muito esforço de memória, ele talvez se lembrasse, ainda, da série de dribles estonteantes empreendidos pelo mesmo Clodoaldo no início da construção do quarto e apoteótico gol do selecionado nacional, quando as cortinas do espetáculo estavam prestes a se fechar. As contradições irrompiam a todo instante no Tribunal da Norma, a começar pela linha de defesa desenvolvida por Paulo César durante o julgamento:

Driblar é crime? Não. Passar a bola entre as pernas de um camaradinha é crime? Claro que não. Atrasar a bola para o goleiro e curtir com a cara do inimigo? De maneira alguma.[8]

Paulo Cézar Caju
Foto: reprodução

Ao mesmo tempo em que rechaçava as acusações de tripudiar sobre a honra dos adversários, ele reivindicava abertamente o direito ao olé. Os atletas cariocas ouvidos pela crônica esportiva, no entanto, enxergavam a questão sob um prisma muito diverso. Oliveira, lateral direito do Fluminense, por exemplo, não hesitava em classificar o gesto de Paulo César de “palhaçada”. Bougleux, testemunha ocular do crime, era igualmente taxativo: “Embaixada é molecagem”.[9] Até mesmo Afonsinho, indagado pela jornalista Marilene Dabus, do Jornal dos Sports, a respeito da polêmica que tomava conta das redações, dos botecos e das arquibancadas, foi contundente na crítica:

Embora ele seja meu amigo, acho que agiu com maldade. Ainda mais que o garoto do Vaso não deu motivos para que Paulo César o fizesse de palhaço [10]

As embaixadas da discórdia situavam em campos opostos os dois principais expoentes da rebeldia no futebol brasileiro. Isto dava a medida do quanto a questão era contravertida. As análises de Afonsinho, porém, ajudam-nos a elucidar aspectos importantes do código de honra dos atletas: o “olé” – explicava – praticado no momento em que o placar se encontra dilatado ou quando o adversário se vê inferiorizado numericamente, transforma-se em “zombaria e humilhação”.[11]  Encarada por esse ângulo, não resta dúvida, a atitude de Paulo César se revelava moralmente condenável.

Por certo, pode-se objetar que as opiniões selecionadas e publicadas pela imprensa refletiam precisamente a visão do episódio da própria imprensa. Nesse sentido, sem dúvida, convém matizar o quadro de uma reprovação unânime. Todavia, sem perder de vista o filtro aplicado às matérias e reportagens, parece-nos digno de nota  que os próprios jogadores do Botafogo, embora manifestassem, de um lado,  suporte ao colega de time;  nas entrelinhas, de outro lado, expressavam desacordo em relação às embaixadas.[12]  Levado  ao banco dos réus, condenado pela opinião pública, criticado pela categoria dos atletas, advertido pelos expoentes do jornalismo esportivo,  Paulo César procurava se defender, invocando a tradição do futebol  brasileiro:

 Olha aqui, o Garrincha sempre driblou três adversários e voltou para botar a bola embaixo das pernas de outro. Todo mundo aplaudia e vibrava. Por que eu não posso fazer também? [13]

A referência às jogadas míticas de Garrincha tinha por objetivo legitimar a prática dos “olés dionisíacos” que Paulo César começava a distribuir pelos gramados do país, compondo com eles um estilo de jogo assumidamente debochado. Todavia, no quadro histórico da militarização, a identificação com a linhagem de Garrincha talvez não se constituísse na melhor estratégia de defesa. Desde a campanha “vexatória” em Liverpool, em 1966, o discurso de poder tinha convertido o célebre jogador no símbolo do atraso -, personagem maldita que reunia todos os traços de comportamento que deviam ser superados pelo atleta moderno: despreparo físico, indisciplina tática, individualismo excessivo e, fora das quatro linhas, vida boêmia. Todavia, apesar dos esforços empreendidos para esconjurá-lo, o espectro do “diabo” de pernas tortas continuava a assombrar o espetáculo, alimentando o desejo recôndito de submetê-lo ao princípio do prazer.[14]   

Com efeito, no processo movido contra Paulo César não se achava em julgamento apenas o direito ao olé, a criminalização do drible ou o código de honra dos atletas. Estavam em jogo, também, questões cruciais para as práticas de liberdade, conforme veremos no próximo artigo.

Notas

 

[1] Cf. “Botafogo vence por 4 a 2 após reação do Vasco`”, Jornal do Brasil, 7 de abril de 1971. Cf. De acordo com o verbete “Embaixada”, do “Dicionário de Futebol” publicado pela revista Placar, nº 96, 14 de janeiro de 1972, trata-se de: “Série de chutes curtos que se dá na bola sem que ela e o pé toquem o chão.”

[2] Cf. “Botafogo escora reação do Vasco”, Jornal dos Sports, 7 de abril de 1971. “No minuto seguinte, Paulo César fez embaixada e quase provocou uma briga, pois os jogadores do Vasco ficaram irritados.” No caso de Edílson, porém, houve de fato uma briga entre os atletas de Corinthians e Palmeiras.

[3] Cf. “Vasco reagiu mas Botafogo era o dono do jogo: 4 x 2”, O Globo, 7 de abril de 1971. A cobertura do jogo definia o lance de Paulo César como uma “jogada circense”.

[4] Cf. “Botafogo vence por 4 a 2 após reação do Vasco`”, Jornal do Brasil, 7 de abril de 1971.

[5] Coluna: “Na Grande Área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil, 8 de abril de 1971.

[6] Cf. “Botafogo vence jogo que perdia na tática”, Luís Lara Resende, Jornal do Brasil, 20 de abril de 1971.

[7] Coluna: “À Sombra das Chuteiras Imortais”, Nélson Rodrigues, O Globo, 10 de abril de 1971.

[8] Cf. “Paulo César vai continuar bagunçando dentro e fora de campo”, revista  Placar, nº 59, 30 de abril de 1971.

[9] Cf. “Flu luta por todos”, Jornal dos Sports, 18 de abril de 1971.

[10] Cf. “Olé: a sede da forra”, Marilene Dabus, Jornal dos Sports, 18 de abril de 1971.

[11] De acordo com a reportagem, Afonsinho empregava ainda a expressão “ato criminoso” para caracterizar o “olé” praticado nas circunstâncias que ele havia identificado.

[12] Cf. “Flu luta por todos”, Jornal dos Sports, 18 de abril de 1971. Era o caso do goleiro do Botafogo, Ubirajara.

[13] Cf. “Botafogo vence por 4 a 2 após reação do Vasco`”, Jornal do Brasil, 7 de abril de 1971.

[14] Sobre as referências à Garrincha na imprensa esportiva como “diabo”, ver, por exemplo, “Zezé, ao embarcar: mais calmo vencerá o ‘super`”, Jornal do Brasil, 8 de janeiro de 1959. Quanto à expressão “olés dionisíacos”, citada mais acima, ver a Coluna: “À Sombra das Chuteiras Imortais”, Nélson Rodrigues, O Globo, 10 de abril de 1971. Sobre Garrincha, ver Wisnik, José Miguel. “Veneno remédio – O futebol e o Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. As embaixadas da discórdia. Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 12, 2022.
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