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As mulheres do futebol entre a esperança e a desconfiança

Luciane de Castro 21 de outubro de 2017

Começo o texto da quinzena confessando duas características que, de certo modo, me prejudicam: observação e desconfiança. Tenho por hábito ter os dois pés atrás quando se trata de determinadas atitudes.

Faço esta abertura do texto da quinzena para abordar a reunião realizada entre atletas, ex-atletas e a pesquisadora Silvana Goellner com o Marco Polo que não pode viajar, na sede da CBF nesta terça-feira, 17.

Após a publicação de uma carta assinada por Sissi, Marcia Tafarel, Juliana Cabral, Formiga, Cristiane, Fran e Andreia Rosa, que circulou dentro e fora do país – em jornais como New York Times, inclusive – o presidente da CBF convocou as assinantes da carta para uma conversa sobre a situação do futebol feminino brasileiro, mais especificamente após a demissão de Emily Lima e as lamentáveis declarações do coordenador de futebol feminino da entidade, Marco Aurélio Cunha.

Estaria tudo muito bom, tudo muito bem, não fosse uma das minhas características citadas no parágrafo de abertura: a desconfiança.

Retomando um pouco da resenha das últimas semanas, tivemos:

– Rumores sobre a demissão da técnica Emily surgem enquanto a delegação ainda está na Austrália fazendo jogos amistosos. A maioria das atletas se manifestam pela manutenção de Emily e a continuidade de seu trabalho;

– Demissão da técnica Emily Lima com menos de um ano de trabalho e sem competições oficiais como parâmetro de avaliação do trabalho desenvolvido;

– Justificativa do presidente: Ausência de mais resultados positivos nos amistosos em que a própria técnica escolheu adversários com posição superior no ranking e outros detalhes que seriam apontados em momento oportuno;

– Atletas da seleção – 24 das 26, entregam a Del Nero, carta formalizadora do pedido de manutenção de Emily e sua comissão;

– Cristiane, Rosana, Francielle, Andreia Rosa e Maurine comunicam sua retirada da seleção;

– Ex atletas como Sissi, Marcia Tafarel, Juliana Cabral e Formiga, se unem ao movimento e elaboram carta aberta com apontamentos sobre a situação do futebol feminino brasileiro. A carta ganha a mídia nacional e internacional, com apoio de notáveis do futebol feminino mundial como Moya Dodd, Wambach, Julie Foudy, Verô Boquete, entre outras;

– Diante do barulho da mídia, Marco Polo Del Nero se manifesta convidando as assinantes da carta para uma reunião, algo jamais ocorrido na CBF;

– Após reunião, fica instaurado o Comitê de Futebol Feminino na CBF.

Nos grupos formados a partir de tal situação, observo um misto de felicidade e ceticismo e eu, como já um pouco descrita no parágrafo de abertura, me coloco no grupo da suspeição.

O presidente da CBF, Marco Polo del Nero fala durante coletiva de imprensa para o anúncio dos jogadores que irão participar das primeiras partidas eliminatórias da Copa 2018, na sede da CBF, na Barra, Rio de Janeiro, Brasil, Setembro, Quinta-feira 17, 2015. O Brasil enfrentará o Chile, em Santiago, no dia 8 de Outubro e a Venezuela no dia 13., em Fortaleza. Foto Leo Correa/Mowa Press
O presidente da CBF, Marco Polo del Nero fala durante coletiva de imprensa. Foto Leo Correa/Mowa Press.

Por que desconfio dessa abertura mágica na conversa com a CBF?
Simples: se houvesse real interesse em ouvir o que as mulheres do futebol tem a dizer, a carta enviada ao presidente na ocasião da véspera da demissão de Emily, seria considerada e acatada, já que NINGUÉM melhor que as atletas para saber o que é um bom e um mau trabalho. E a posição de todas era a mesma: trabalho nunca antes feito por lá.

Outro fato que requer muito da nossa atenção: 2018 é um ano chave para Del Nero. A partir do momento em que a carta aberta ganha espaço em mídias internacionais, com uma forcinha extra das declarações inadequadas e pretensiosas do coordenador Marco Aurélio Cunha, a atitude de convocar um grupo para a formação de um comitê específico na entidade toma um caráter eleitoreiro.

E digo isso porque em 2016 tivemos um grupo de trabalho de futebol feminino dentro do Comitê de Reformas com planos bem traçados, um projeto de desenvolvimento muito bem desenhado por especialistas de várias áreas e um percentual baixíssimo de implementação das diretrizes indicadas e abalizadas pela própria CBF.

Causa estranheza, portanto, que, ao ouvir os relatos das representantes do grupo sobre algumas situações, o presidente e alguns outros participantes por parte da CBF, demonstrassem certo grau de “surpresa”.

Se não for cinismo, mostra o quão desorganizado segue o futebol feminino dentro da entidade. E se assim segue, denota claramente que o tempo dedicado por algumas pessoas ao grupo de trabalho do Comitê de Reformas foi praticamente em vão, o que já é um desrespeito.

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Já sem a treinadora Emily a seleção feminina enfrenta Coreia do Norte. Foto: Fernanda Coimbra/CBF.

Com tanta pressão para que as orientações da FIFA quanto ao desenvolvimento do futebol feminino sejam seguidas e colocadas em prática, e às vésperas de ano de eleição, cabe parcimônia nas comemorações.

Talvez a vida tenha me proporcionado situações em que confiança plena seja algo de muito valor e, com todo histórico da modalidade, quase sempre sob a batuta de dirigentes pouco ou quase nada comprometidos com a evolução do futebol das mulheres, desconfiar seja o mínimo para evitar uma desilusão.

Por outro lado, mostramos que SIM, podemos e devemos nos mobilizar quando, ao sabor das conveniências, pessoas inseridas sabe-se lá de que modo em determinados departamentos e assuntos, trabalham muito com a língua e seu “prestígio midiático” e pouco com o cérebro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. As mulheres do futebol entre a esperança e a desconfiança. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 21, 2017.
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