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As múltiplas facetas do futebol: a construção propagandística do mundialito pela ditadura uruguaia

Danilo Rodrigues Paiva 26 de maio de 2021

Esse artigo tem o intuito de compreender as relações entre futebol e as ditaduras sul-americanas do Cone Sul entre as décadas de 60 e 80. Hilário Franco Júnior (2007) destaca que o futebol passou a ser um grande festejo popular, além de ser visto como um meio de controlar e tranquilizar as massas. Sendo assim, diversos tipos de governos sejam eles democráticos ou não, manipularam o futebol como artifício político. Entretanto, os governos autoritários foram os que mais se beneficiaram desse trunfo, pois ao mesmo tempo que cometiam crimes contra humanidade, alcançavam glória e poder através do esporte afim de maquiar seus atos criminosos. Para isso, foi analisado o claro elo entre futebol e o regime autoritário do Uruguai, a Copa investigada foi: a Copa de Ouro dos Campeões Mundiais que ocorreu entre o final de 1980 e início de 1981.

A escalada autoritária no Rio da Prata

A América do Sul durante as décadas de 1960 e 1970 estava em sua mais pura efervescência social com incertezas e crises políticas que ajudaram a dar vida e força ao autoritarismo. Para entender esse fenômeno antidemocrático que pairou sobre a América do Sul durante o século XX é preciso compreender algumas premissas. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo entrou em conflito ideológico, no qual, foi protagonizado por Estados Unidos que defendia o capitalismo e a União Soviética que defendia o comunismo, disputa essa que ficou conhecida como Guerra Fria. “A tensão internacional – Estados Unidos versus URSS, ou ‘comunismo versus mundo livre’ – forneceria justamente o álibi ideológico para os golpes militares, que afirmaram como unanimidade ser a democracia incapaz de conter o comunismo” (COGGIOLA, 2001, p.11) e uma das principais doutrinas que acabou sendo transmigrada para toda América do Sul foi a Doutrina de Segurança Nacional. De acordo com Enrique Padrós ela se caracterizou como:

“A rejeição da ideia da divisão da sociedade em classes, pois as tensões entre elas entram em conflito com a noção de unidade política, elemento basilar daquela. Segundo os princípios da DSN o cidadão não se realiza enquanto indivíduo ou em função de uma identidade de classe. É a consciência de pertencimento a uma comunidade nacional coesa o que potencializa o ser humano e viabiliza a satisfação das suas demandas. Nesse sentido, qualquer entendimento que aponte a existência de antagonismo sociais ou questionamentos que explicitem a dissimulação de interesses de classe por detrás dos setores políticos dirigentes é identificada como nociva aos interesses da “nação” e, portanto, deve ser combatida como tal”. (PADRÓS, 2005, p.52-53)

Embora o golpe militar do Uruguai tenha se concretizado durante o governo de Juan Maria Bordaberry no dia 27 de junho de 1973, ele não ocorreu por acaso, pois segundo Padrós (2012) ele foi gestado em “câmara lenta” no mandato de Jorge Pacheco Areco no final de 1967.

“Quanto à administração Pacheco Areco as primeiras medidas foram a dissolução de partido políticos e organizações vinculados à esquerda, tais como o Partido Socialista, a Federación Anarquista Uruguaya, o Movimiento Revolucionario Oriental, o Movimiento de Acción Popular Uruguaya e o Movimiento de Izquierda Revolucionario, e o fechamento dos periódicos Época e El Sol, acusados de serem subversivos. O uso do poder discricionário contra os setores populares, os trabalhadores e os estudantes foi a principal ação política do governo”. (PADRÓS, 2012, p.28)

Juan Maria Bordaberry foi o sucessor de Jorge Pacheco Areco na presidência em 1971, dando continuidade as medidas do seu antecessor, potencializou ainda mais as Forças Armadas na luta “antissubverssiva” enquanto gradativamente o golpe ia se consolidando. Por conseguinte, essas medidas acarretaram em uma grave crise político-social no Uruguai que se intensificou em 1973.Uma grande fragilidade política das instituições democráticas, um congresso completamente confuso sobre como agir ao que estava acontecendo no país foi uma grande oportunidade para os militares que estavam se fortalecendo politicamente. Uma demonstração dessa vulnerabilidade e ascensão do autoritarismo no Uruguai foi quando o presidente fez um acordo com os militares para sua permanência na presidência criando o “COSENA (Consejo de Seguridad Nacional)”. (CAETANO & RILLA, 1998, p.20) Diferentemente das outras ditaduras da América do Sul em que presidentes eleitos foram depostos, nota-se uma particularidade no caso do Uruguai, pois além de não ser deposto, o presidente uruguaio se aliou e catapultou os militares ao poder.

“Las tensiones políticas que opusieron reiteradamente en esos meses al parlamento y el Poder Ejecutivo culminaron finalmente el 27 de junio, cuando este último decretó la disolución de ambas cámaras y la creación en su lugar de un Consejo de Estado a integrarse oportunamente” (CAETANO & RILLA,1998, p.23)

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Em 1980, sete anos após o golpe o clima de instabilidade continuava, pois em uma ditadura há necessidade de legitimar a importância do regime autoritário de forma contínua. Com a “subversão” controlada por meio da política de Estado de detenção, o governo uruguaio convocou um plebiscito para a elaboração de uma nova constituinte no dia 30 de novembro. Segundo Padrós:

“O texto proposto era um mecanismo de legalização de uma série de práticas que o regime havia desencadeado desde o golpe de Estado de Bordaberry e que, apesar de alguns artifícios jurídicos, se constituíam até então, em franca violação dos termos constitucionais anteriores”. (PADRÓS, 2005, p.394)

Em virtude do controle da ordem social através da violência estatal, o governo uruguaio não esperava um revés no plebiscito de novembro que ratificaria o poder desse Estado autoritário. E de fato a ideia de derrota dos militares era impensável, prova disso foi a fala do ex preso político Marcelo Stefanell: “no había antecedentes históricos em ningún país del mundo de uma dictadura proponer un plebiscito y perder” (BEDNARIK, 2009) Para a surpresa do governo, o povo uruguaio resistiu e “against all odds, the new constitution was rejected by the 57% of the voters.” (MOSQUERA, 2018) Um mês depois desse acontecimento em 30 de dezembro de 1980 começou a Copa de Ouro dos Campeões Mundiais, mais conhecida como Mundialito.

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Cartaz de publicidade do Mundialito. Fonte: Reprodução Futbox

Segundo Caetano (2009), essa competição tinha o objetivo muito claro de ser um festejo ao êxito anterior que seria o plebiscito, só que isso não aconteceu. Depois desse fracasso político, não era possível cancelar o Mundialito devido ao curto tempo, além disso os militares consideraram que seria interessante os benefícios que essa Competição traria para o país fazendo com que a derrota política se dissipasse ao decorrer do Campeonato. Tendo como exemplo a Copa do Mundo da Argentina, o governo uruguaio usou o futebol com objetivo de ter sucesso em seus projetos políticos. Assim como foi no Mundial de 1978, o presidente da FIFA João Havelange, chancelou e propôs a criação junto ao regime uruguaio da Copa de Ouro dos Campeões Mundiais que foi elaborada para comemorar os 50 anos da 1º Copa do Mundo realizada no Uruguai em 1930.

Os principais articuladores dessa Competição foram João Havelange o presidente da FIFA naquele momento; Washington Cataldi, político muito ligado ao futebol uruguaio e ao regime militar vigente, os empresários Angelo voulgaris e Silvio Berlusconi. Esses dois últimos foram muito importantes na questão financeira, pois nem FIFA e nem AUF tinham fundos para a organização desse evento. Segundo o vice-presidente da AUF em 1980, Oscar Schiafarino, “esto no era un Campeonato Mundial, esto era un invento nuevo primera vez que se hacía, pois era muy difícil saber en que medida iba a haber interés a nivel internacional.” (BEDNARIK, 2009) Portanto, o apoio financeiro desses empresários ajudara tanto a FIFA quanto o regime uruguaio convencer as seleções a participar deste evento. O Campeonato se configurou da seguinte maneira:

A competição reuniu todos os campeões mundiais de 1930 a 1978: Uruguai (1930, 1950), Itália (1934,1938), Alemanha Ocidental (1954, 1974), Brasil (1958, 1962 e 1970), Argentina (1978) e Holanda (vice-campeã em 1974 e 1978) que entrou no lugar da Inglaterra, campeã em 1966, pelo fato de não ter tido o interesse em participar (ÁVILA, 2017)

Este torneio de seis seleções foi dividido em dois grupos, as seleções de cada grupo se enfrentavam e o melhor de cada grupo se classificava para a final em confronto único. Desses dois grupos, os melhores foram o Brasil liderado por Sócrates e o Uruguai liderado pelo experiente goleiro Rodolfo Rodríguez. Em uma partida muito disputada, o jogo acabou com a vitória do Uruguai por 2 a 1.Por ser um Campeonato menor que uma Copa do Mundo, além de todo horror que os países vizinhos como Argentina e Chile passavam esse Campeonato acaba sendo deixado de lado. Entretanto, vale ressaltar que apesar de ter sido sediado em um país pequeno como o Uruguai que não estava nos holofotes internacionais como seus vizinhos, assim como Jorge Rafael Videla fez na Argentina com a Copa do Mundo de 1978, o regime uruguaio utilizou desse Campeonato para maquiar seus crimes e com objetivo de se beneficiar das glórias futebolísticas da Seleção Nacional.

De acordo com o presidente da FIFA em 1980, João Havelange, a narrativa de existir uma ditadura no Uruguai impossibilitaria a realização do torneio e o uso do evento com intuitos propagandísticos pelo regime não eram questões de competência da FIFA. Porque o mesmo disse: “a mim não teve nenhum problema porque não faço política, eu faço esporte, tem que respeitar quem está no governo. se é bom, ou se é ruim não é minha decisão.” (BEDNARIK,2009) Contrapondo as ideias de Havelange, o jornal La Nación publicou:

El gobierno de facto uruguayo tomó como ejemplo la organización de la Copa del Mundo de 1978 para hacer algo similar dos años después y mostrar su “éxito”. La ceremonia inaugural, a estadio lleno, con canción oficial e himno, fue una vitrina perfecta (KONISZCZER, 2020)

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Fonte: Reprodução Twitter

As reações dos atores sociais no Uruguai

Para compreendermos como a conjuntura social dos país se configurou no período estudado e como os atores sociais reagiram precisamos entender como funciona o habitus. O habitus de acordo com Elias (1997) funciona como um código de convenções que tenta manter a coesão social entre grupos, mas esse não se constitui de imobilidade porque o mesmo tem como base um processo constante de arraigamento de ideias e transformações de pensamentos, práticas e etc. O todo social uruguaio reagiu de maneira oposta a vitória do Mundialito. O povo uruguaio em 1981 em um gesto de resistência após o fim do jogo e a vitória da Copa, bradou: “vai acabar, vai acabar a ditadura militar. (CASTRO, 2012) Essa atitude da população veio para mostrar que os tempos obscuros imposto pelas forças armadas estavam chegando ao fim. Através dessa ação do povo uruguaio diante a ditadura, podemos examinar como o habitus atua na sociedade.

O código convencional que rege o comportamento entre grupos, que estava afinado em função de uma ordem hierárquica mais rígida, deixou de corresponder às relações reais de seus membros. Só será possível o surgimento gradual de um novo código de comportamento através de muitas experiências” (ELIAS, 1997, p.37)

Por meio das ideias de Elias podemos observar que antes da vitória nas urnas e a vitória da Seleção Nacional no Mundialito, uma ação do povo contrária do governo como essa que aconteceu após o título era inimaginável por conta do terrorismo de Estado que existia no país, mas com esses acontecimentos citados se tornou possível ter uma manifestação dessa maneira contra o regime. Pois o habitus não é algo imutável, portanto, ele vai se modelando e evoluindo com o decorrer do tempo.

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O arqueiro e capitão da seleção do Uruguai, Rodolfo Rodríguez, a erguer a taça do Mundialito. Fonte: Wikipédia

Com o relato do ex-jogador Fernando Alves que foi campeão do Mundialito em 1981 é notório como o futebol foi usado como ferramenta pelos militares para que os problemas sociais e políticos fossem ocultados. Sobre a Copa de Ouro dos Campeões Mundiais ele disse:

Você ia ao estádio, lotado, cheio mesmo. com as pessoas cantando: Uruguai queremos ver você campeão. la fora, subia os combustíveis, alimentos e todo mundo com a cabeça no futebol. Todo mundo estava distraído com o que estávamos fazendo. E la fora a coisa estava difícil. Então eu dizia que, naquele momento fomos palhaços de luxo. (CASTRO, 2012)

Com essa fala percebe-se outra nuance exposta relacionada ao habitus. Pois para se entender a natureza operativa do Habitus, Pierre Bourdieu utiliza a analogia de um jogo.

Cada campo social de prática (incluindo a sociedade como um todo) pode ser compreendido como um jogo competitivo, ou “campo de lutas”, onde os atores improvisam estrategicamente em sua missão de maximizar suas posições. os atores não chegam a um campo completamente armados com conhecimento divino do estado do jogo[…] em vez disso, eles possuem um ponto de vista particular sobre os acontecimentos com base em suas posições. (GRENFELL, 2018, p.79)

Em outros termos, as nossas ações e observações depende da posição que estamos inseridos na sociedade e a capacidade em ler o que está acontecendo na mesma. Fernando Alves embora estivesse diretamente ligado ao Mundialito adquiriu a autoconsciência e foi capaz de perceber que o futebol estava sendo utilizado pela ditadura, tanto é que se caracterizou como sendo um “palhaço de luxo”.

 

Referências Bibliográficas

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ÁVILA, A. Mundialito: A copa que a FIFA escondeu. Futbox, 2017. Acesso em: 27 de mai. 2020.

BARROS, J. História comparada– um novo modo de ver e fazer a história. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, jun. 2007.

CAETANO, G. & RILLA. J. Breve historia de la dictadura (1973-1985). Montevideo: Ediciones Banda Oriental, 1998.

COGGIOLA, O. Governos militares na América Latina. São Paulo: Contexto, 2001.

GRENFELL, M. Pierre Bourdieu: Conceitos fundamentais. Tradução de Fábio Ribeiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

JÚNIOR, H. A dança dos deuses: futebol, cultura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

KONISZCZER, F. Mundialito de Uruguay”, aquel torneo repleto de estrellas del fútbol que la historia olvidó. La Nacíon, 2020. Acesso em: 27 de mai. 2020.

MANERO, C. D. Futbol y dictadura en Uruguay: El Mundialito desde Bourdieu y Elías. Revista da ALESDE, Curitiba, v.3, n. 2, p. 04-14, set. 2013.

MAGALHÃES, L. G. Los Campeones del Río de la Plata: Fútbol en Argentina y Uruguay. Hispania Nova, n. 17, p. 470-493, 2019.

Memórias do chumbo- O futebol nos tempos de condor. Direção: Lúcio de Castro. Brasil: ESPN Brasil. 2012.

MOSQUERA, M. The 1980 Mundialito. Copa 90, 2018. Acesso em: 27 de mai. 2020.

NORBERT. E. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

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PADRÓS, E. S. Como el Uruguay no hay… Terror de Estado e Segurança Nacional no Uruguai (1968-1985): do Pachecato à ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

RODRIGUES, E. Jogo duro: A história de João Havelange. Rio de Janeiro: Record,2007.

WAIZBORT, L. Questões não só alemãs. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, vol. 13 n. 3, jun. 1998.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Danilo Rodrigues Paiva

Sou um botafoguense apaixonado por futebol e história em quadrinhos, tenho 21 anos e atualmente sou graduando de licenciatura em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro-FFP.

Como citar

PAIVA, Danilo Rodrigues. As múltiplas facetas do futebol: a construção propagandística do mundialito pela ditadura uruguaia. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 49, 2021.
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