As outras canções do tricampeonato
Entre os dias 31 de maio de 21 de junho ocorreu a nona edição da Copa do Mundo de Futebol, realizada no México. Era a primeira edição a ser realizada fora do eixo América do Sul/Europa. A edição contou com 16 participantes e reuniu grandes jogadores como Pelé, Gerd Muller, Teofilo Cubillas, Bobby Charlton, Giacinto Facchetti entre outros. O Brasil sagrou-se tricampeão mundial, vencendo a forte Itália no dia 21 de junho de 1970 na Cidade do México. Era o título que coroava uma grande seleção e geração que marcou o futebol brasileiro entre os anos 1960 e 1970. O tricampeonato tornava o Brasil o maior campeão mundial, ultrapassando os italianos que haviam sido bicampeões nas edições de 1934 e 1938.
A Copa do Mundo de 1970 é muito representativa no país, pois sua conquista pela Seleção Brasileira foi concomitante a um nebuloso período da nossa história. Em 1964, o então presidente João Goulart sofreu um golpe de Estado e em seu lugar assumiu o poder os militares; com apoio de forças estrangeiras. O Brasil deu início a uma série de regimes militares que assolaram a América do Sul. Durante a realização da Copa do Mundo, sofríamos com o chamado anos de chumbo, marcado pelo governo de Emílio Médici que substituiu Costa e Silva em outubro de 1969 e se manteria no poder até março de 1974. Também é muito discutido a utilização política da Copa de 1970 pelos militares que naquela conjuntura, obtiveram êxito na utilização do futebol como meio de propagar seus interesses. Porém, o que me traz neste texto é a relação entre futebol e música, encarando ambos como objetos de estudo que podem nos oferecer explicações sobre a sociedade que desejamos investigar.
Quando falamos em futebol, música e Copa de 1970 logo vem em mente a canção “Pra frente, Brasil”, composta por Miguel Gustavo. A canção, de teor publicitário, não foi uma encomenda dos militares mas esses souberam surfar muito bem nas ideias contidas naquela canção ao ponto dela ser tratada como um hino do regime. A recente menção à música, feita pela ex-ministra e atriz Regina Duarte, prova o quão a canção foi adotada pelas forças políticas que sustentaram a Ditadura Militar. Porém, nestes 50 anos do tricampeonato mundial, desejo mostrar que não existiu apenas “Pra Frente, Brasil” no cenário musical brasileiro. Outras canções reproduziram à glória do tricampeonato, visto na época como uma extensão do sucesso brasileiro como nação. Vale lembrar que, além da forte repressão com direito à tortura institucionalizada, o Brasil também vivenciava o chamado “milagre brasileiro” que incutia a ilusão de que o mero desenvolvimento econômico representava progresso social.
Dito isso, vale a menção honrosa a três canções que foram compostas em homenagem ao tricampeonato mundial. A primeira delas chama-se “O caneco é nosso”, cantada por Teixeirinha. Nascido na pequena cidade de Rolante, Teixeirinha foi um dos grandes expoentes da música gaúcha no Brasil e também no exterior. Seu alcance e sucesso foi tamanho que recebeu a alcunha de “rei do disco”, por conta do recorde de vendas que seus discos alcançavam. A canção mencionada fez parte do álbum “Doce amor”, lançado em 1970 pela gravadora Copacabana. Destacaremos apenas alguns trechos da música, começando pelo seguinte: “Agora o caneco é nosso/ Campeão do mundo/ Gritar eu posso/ A seleção canarinho/ tricampeão do mundo inteiro/ Não há quem resista/ O esquadrão brasileiro”. Assim como em 1958, o caneco é “nosso” e utiliza-se de um pronome possessivo na primeira pessoa do plural. A conquista da taça ou caneco é remetida a toda nação brasileira, sendo uma prova imediata que somos a pátria em chuteiras.
Em seguida, Teixeirinha eterniza os nomes de uma seleção que é até hoje considerada a melhor de todos os tempos. Diz a canção: “Salve Pelé e Tostão/ Jairzinho e Everaldo/ O Gérson e Carlos Alberto/ Rivelino e Clodoaldo/ Brito e Wilson Piazza/ Félix que o arco conserva/ Ainda mais chumbo/ Lá no banco de reservas”. Nelson Rodrigues em suas geniais crônicas, colocou diversas vezes o selecionado nacional como propriedade do povo brasileiro. Ao citar, vangloriar e eternizar em uma canção os nomes dos jogadores que protagonizaram à conquista; Teixeirinha acaba reforçando uma ideia já recorrente na sociedade. A festa e a alegria que a segue, tão caras a uma sociedade que tem no Carnaval como uma de suas principais manifestações culturais, também se faz presente na canção nos seguintes trechos: “Foguetes subiram aos céus/ Fogo, explosão e fumaça/ Pra saudar a seleção do futebol e da raça/ Dia vinte e um de junho/ Ficou bem assinalado/ Venham passear no Brasil/ Este dia é feriado”. A Copa do Mundo é vista abertamente como um evento de congregação, união, leveza e alegria.
A segunda canção de que tratamos aqui é “Marcha do tri”, cantada pela dupla sertaneja Tonico e Tinoco. Entre 1930 e 1994, a dupla fez bastante sucesso no Brasil, lançando mais de 50 discos que chegaram a inédita marca de 50 milhões de vendas. A canção esteve presente no lado B do disco “A marcha da ferradura”, lançado em 1971 e que reuniu canções presentes no filme do mesmo nome em que Tonico e Tinoco foram os protagonistas da trama, dirigida por Nelson Teixeira. Em Marcha do Tri, temos na primeira estrofe: “Brasil, Brasil/ Os canarinhos da seleção/ Brasil, Brasil/ Trouxeram a taça do tricampeão/ Foi a maior das proezas/ Salve nosso esquadrão/ Mereceste com nobreza/ A taça do tricampeão”. O verbo trazer, flexionado na terceira pessoa do plural, busca não tratar a conquista da Copa do Mundo como algo individual. Pelo contrário, sempre se remete a uma coletividade vencedora, pois somos a pátria em chuteiras e por isso ganhamos ou perdemos juntos com os atletas em campo.
Em seguida, temos: “Brasil, Brasil/ Esta página da história/ Simboliza tradição/ Ficará em nossa memória/ Pra futura geração/Brasil, Brasil”. Neste trecho final, Tonico e Tinoco resumem a prática e o significado do conceito de tradições inventadas ao acionar uma tradição que tende a se perdurar na memória coletiva. O tricampeonato ficou tanto em nossa memória que estamos aqui, 50 anos depois, escrevendo e refletindo sobre sua representatividade e repercussão.
Por fim, chegamos a canção “Sou tricampeão” do grupo Golden Boys. O grupo, fruto do movimento da Jovem Guarda, fez muito sucesso nos anos de 1960 e 1970 e era voltado para um público mais jovem. De altor teor nacionalista, diz a canção: “Eu hoje, igual a todo brasileiro/ Vou passar o dia inteiro entre faixas e bandeiras coloridas/ Parece até que eu estava em campo/ Buscando a paz aos quatro cantos/ Companheiros, vamos todos cantar a vitória pela raça/ Ficamos com a taça de melhor entre os mais”. Ela parece relatar à experiência individual de um brasileiro que compartilha com outros a grandeza do título mundial (“Eu hoje, igual a todo brasileiro”). No mais, assim como descreve Roberto DaMatta, o futebol é visto como aquela atividade que aproxima o brasileiro de seus símbolos pátrios (“Vou passar o dia inteiro entre faixas e bandeiras coloridas”); e, além disso, a ideia de pátria em chuteiras é personificada da melhor forma possível como o torcedor que se sente em campo (“Parece até que eu estava em campo”).
A canção se encerra: “Minha gente, a distância não tem mais sentido/ Nosso grito é gol é ouvido pelo chão, pelo mar/ Agora, só tenho a Copa em minha mente/ Só vejo escrete em minha frente/ Sofri, sofri, mas, afinal, ganhei o mundo/ Sou tricampeão do mundo”. À distância reduzida entre seleção e torcedor pode ter relações com o advento da TV na Copa de 1970, sendo a primeira transmitida ao vivo no país. Já o sofrimento foi recompensado pela conquista do mundo. Enfim, a Copa de 1970 colocava o futebol brasileiro novamente no topo do mundo, consagrando uma geração. Pelé era reverenciado em todo o país, sendo o maior representante de uma geração que tirou o país do complexo de vira-latas e o transformou na maior potência futebolística do mundo. Era a última grande conquista da chamada era de ouro do futebol brasileiro, responsável pelo alicerçamento de tradições inventadas desde os anos de 1930. E como podemos perceber, a expressão dessas tradições nas músicas, no caso específico da Copa de 1970, está além da popular “Pra frente, Brasil”.