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As ruas e o futebol-arte: como a prática do futebol nas ruas influenciou na construção de um estilo nacional

Mayara de Araújo 16 de agosto de 2021

Há uma diversidade de trabalhos que pensam o futebol e o processo de construção de uma identidade brasileira. Essas produções evidenciam a década de 30 como importante na legitimação de certos termos, há exemplo do futebol-arte, que passa a caracterizar o futebol brasileiro. Para que determinado termo se consolidasse, houve a influência de cronistas e intelectuais, preocupados em buscar elementos que corroborassem na construção de um “novo Brasil”[1]. Desta forma, práticas culturais que haviam adquirido certa popularidade, são apropriados e ressignificados. O termo futebol-arte, que se consagrou e, ainda hoje, porém com menos regularidade, pode ser encontrado, já foi objeto de diferentes estudos. Tal conceito ignora todo um processo imbricado que permeia o esporte, principalmente, no que diz respeito as questões raciais.

No mais, o interesse aqui não é desfazer do conceito, porém repensá-lo. Hoje, muitos artigos contestam tal termo. É possível, inclusive, ver uma mídia que utiliza cada vez menos a expressão para classificar o nosso futebol. Os dribles, as piruetas e alegria[2], características que explicariam o termo, podem ser associados as diferentes formas pelo qual o jogo será incorporado na sociedade. Hoje, com menos frequência se ouve ou fala do “futebol-arte” praticado pelos jogadores. No entanto, o drible continua sendo parte importante do jogo, algo que excita e motiva a quem está assistindo e que, quando ocorre, logo se atrela a um estilo nacional. Entretanto, àquilo que muitos cronistas, jornalistas e intelectuais destacam como sendo particular ao futebol brasileiro, principalmente, a partir da década de 30[3]. Pode ser visto como resultado da insistência de jovens, que excluídos dos grandes clubes, praticam nas ruas o recente esporte bretão, à sua maneira.

Desta forma, o interesse aqui, é pensar de maneira breve como a prática do futebol nas ruas contribui na imagem que irá se consolidar sobre um estilo brasileiro de jogar futebol. Entender como o jogo nas ruas, que se tornou um problema tanto na cidade do Rio de Janeiro, como em outras regiões do país, são importantes na forma como o futebol será exercido. Para Damo, por exemplo, o futebol abarca uma “diversidade de fatos empíricos”, por isso, convém a ele utilizar o conceito “futebóis”, dado aos diferentes elementos que constituem e influenciam o esporte[4]. A prática do jogo nas ruas é um desses elementos que irão influenciar, que apresentam novas formas de se relacionar e praticá-lo.

Logo, para refletir sobre o jogo nas ruas e sua contribuição em agregar novos elementos, que são apropriados e utilizados como aspecto singular do futebol brasileiro, será analisado algumas reclamações presentes em alguns periódicos, na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, quero enfatizar, que reclamações sobre a prática do futebol nas ruas tornam-se frequentes em outras cidades do país, há exemplo de Salvador, Belo Horizonte e São Paulo.  Apesar do enfoque na cidade do Rio de Janeiro, a prática do esporte nestas cidades e, sobre condições semelhantes, também podem ser vistas como importantes na incorporação de novas formas de jogar o futebol.

Futebol de rua
Nem a chuva é capaz de impedir o futebol de rua. Foto:
Rogerio Sousa Silva

As queixas sobre a prática do futebol nas ruas, expõe como o esporte quando praticado por populares, não fugiu dos estigmas e da perseguição policial. Isso demonstra, como a maior parte dos elementos empregados na construção de uma identidade brasileira se estabelece, principalmente, a partir de práticas que antes são reprimidas. Os excessos de dribles, piruetas, que despertam críticas, principalmente nas primeiras décadas do século XX, a partir de 1920, com a massificação do esporte, passa a ser incorporado como expressão da nacionalidade em algumas narrativas[5]. Entretanto, a associação deste estilo de jogo ao “mulato”, somado a presença mais frequente do negro em diferentes clubes, principalmente na região suburbana, permite que se consolide a ideia de que estes indivíduos fossem portadores de um talento natural para o esporte.

Alguns periódicos ao expor queixas sobre a prática do futebol nas ruas, ajudam a pensar uma popularização do esporte já nos primeiros anos do século XX. Em 1909, por exemplo, o jornal O Século volta a chamar atenção das autoridades sobre a prática do football nas ruas, neste caso, na travessa Muratori (RJ)[6]. Além desta, o número de queixas nas páginas dos jornais, sobre o jogo em vias públicas, as desordens ocasionadas pelo jogo da bola, praticado tanto por menores como por adultos, tornam-se mais frequentes. A prática se torna comum àqueles pertencentes, principalmente, às camadas populares. As vias públicas transformam-se em grounds, nestes espaços se reafirma o direito ao esporte que é negado. É importante lembrar que a questão racial e a desigualdade social no país, estão inteiramente relacionadas. Os negros, brancos pobres ou “mulatos”, quando não pertencentes aos clubes suburbanos, vão praticar o futebol nas ruas, em meio a perseguição que se estabelece.

“Temo-nos ocupado já por diversas vezes do abuso, bastante generalizado, de garotos e vagabundos transformarem as vias publicas em campos de football… A policia precisa agir com energia para evitar que prosiga esse abuso, condemnavel sob todas os pontos de vista” [7]

A imprensa se constitui como importante neste processo de perseguição à prática do futebol, buscando distanciar ao máximo a prática nas ruas, do football exercido pela elite carioca. Da mesma forma, está constantemente chamando atenção das autoridades policiais. Logo, a prática recorrente, demonstra que a habilidade que se evidencia e associa, como sendo natural a estes homens, é resultado da prática que se torna habitual entre as camadas populares, aos “vagabundos”, como é caracterizado os players por parte dos jornais. De forma semelhante, essa prática do jogo nas ruas, assim como os problemas gerados por esta, se repete em outras cidades do país. Em Salvador, por exemplo, Henrique Sena dos Santos em seu artigo, evidencia a partir das narrativas em torno da prática do futebol por “moleques, vadios e peraltas”, como estes indivíduos estão introduzindo sentidos “próprios e específicos” ao esporte[8].

Outro aspecto importante e que já foi abordado em alguns trabalhos, diz respeito à prática do futebol na várzea em São Paulo. Ainda que diferentes, pois a futebol nas várzeas tendia a ser mais “ordenado” e regrado, do que nas ruas. Ela permite compreender como a modalidade vinha sendo ressignificada com frequência, recebendo novos sentidos e movimentos. Em 1908-1910, por exemplo, Mascarenhas já menciona a ocorrência de vários campeonatos na várzea paulista. Entretanto, tal prática também é cercado de estigmas, tornando-se sinônimo de “desordem, encontro de vadios a ser disciplinados”[9]. Mas este futebol se estabelece na cidade, proporcionando a aproximação das camadas populares à modalidade, que até então, havia sido exportada como elemento de distinção social por parte das elites.

Futebol de várzea
Vista de trás do gol do jogo de veteranos na periferia de São Paulo. Foto: Rogério Sousa Silva

O que aos poucos vai se legitimando como estilo brasileiro, pode ser explicado, em parte, pela insistência ao jogo em espaços tidos como inapropriados. As camadas populares mesmo que impedidas, estavam exercendo o jogo à sua maneira. O jornal A Noite menciona que, “a qualquer protesto, fazem ameaças e tomam represálias”[10], ou seja, impedir o football apresentava-se como uma tarefa árdua. Em relação a outras modalidades, o futebol se torna recorrente entre as camadas populares, o que possibilita a aquisição de certas habilidades no jogar. O estilo brasileiro pode ser, nada menos, do que o resultado da ausência de espaços apropriados para a prática do lazer, da resistência e insistência, às diversas investidas em tentar impedir a democratização do esporte. Se analisarmos e compararmos a trajetória de parte dos grandes ídolos do futebol brasileiro, as ruas ou as várzeas, serão comuns a muitos. As ruas são importantes para se pensar o esporte, elas apresentam novas representações que são inseridas a modalidade, novas formas de executá-lo. O talento do negro ou do “mestiço” utilizado para consagrar um estilo brasileiro, pouco tem haver com dom, mas com persistência de meninos, jovens e adultos na prática do futebol nas ruas, vias e várzeas.

O próprio cronista e jornalista Mario Filho, que inclusive colabora na construção de um estilo nacional, atribuindo isto a uma falsa democracia racial no esporte. Menciona em seu livro “O negro no futebol brasileiro”, a recorrente prática do futebol nas redondezas da fábrica Bangu, principalmente, por crianças. A prática, causava incômodo ao padre Frota Pessoa, de acordo com o autor, pois atrapalhava o andar da missa[11]. Além disto, o cronista ressalta a importância da difusão da prática entre os meninos, pois, cada bola que ultrapassa os muros da fábrica e iam para as ruas, não representavam uma perda, mas uma troca “as bolas não voltariam mais, em troca, porém, viriam mais jogadores para o time, mais operários para a fábrica”[11].  Até que ponto é verídico tal narrativa, é difícil dizer. Entretanto, é possível identificar um padre Frota, responsável pela realização de missas na região de Bangu[12].

Sobre a relação do padre com a prática do futebol, já não é possível afirmar, no entanto, tal exercício não é incomum na cidade. Pelo menos a partir da década de 10, torna-se recorrente, apenas aumentando o número de ocorrências à respeito. O fato da fábrica Bangu possuir um time de futebol, o Bangu Athletic Club, responsável por difundir o futebol entre as camadas populares[13], também permite refletir sobre a influência do esporte nos arrabaldes. O que Mario Filho evidencia, é a importância que a prática do jogo nas ruas tem para os clubes, principalmente, os suburbanos, com caráter mais democrático. Ao executar o futebol, com frequência, mesmo em meio a perseguição e críticas, cria-se afinidades com o jogar. Quanto mais praticamos algo, exercemos ou executamos tal movimento, provável, que melhor fiquemos em determinada coisa. Logo, o interesse que o futebol desperta, motivando crianças e adultos a transformarem as ruas em campos, gera a habilidade, que mais tarde é ressaltada como um talento natural. O que se consagra por “estilo nacional”, está longe de ser uma história linear e romantizada como buscou-se consagrar.

Notas

[1] MOSTARO, Filipe Fernandes Ribeiro; HELAL, Ronaldo George; AMARO, Fausto. Futebol, nação e representações: a importância do estilo ⠼futebol-arte⠽ na construção da identidade nacionalHistória Unisinos, [S.L.], v. 19, n. 3, p. 272-282, 9 out. 2015. UNISINOS – Universidade do Vale do Rio Dos Sinos. http://dx.doi.org/10.4013/htu.2015.193.01, p.273.

[2] SOARES, Antonio Jorge. Futebol: a construção histórica do estilo nacionalRev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 25, n. 1, p. 129-143, set. 2003, p.2

[3] ABRAHÃO, Bruno Otávio de Lacerda; PAOLI, Próspero Brum; SOARES, Antonio Jorge. Identidades “Raciais” e Identidades Nacionais: as representações do Corpo Negro na Construção do “Estilo Brasileiro de Jogar Futebol. Movimento (Esefid/Ufrgs), [S.L.], v. 17, n. 2, p. 195-210, 20 jun. 2011. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.19345, p.6.

[4] DAMO, Arlei. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no brasil e na França. 2005. 435 f. Tese (Doutorado) – Curso de Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, p.13

[5] SOARES, Antonio Jorge. Futebol: a construção histórica do estilo nacionalRev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 25, n. 1, p. 129-143, set. 2003, p.7

[6] O Século, 1909, ed. 00824

[7] Correio da Manhã, 1920, ed. 07646.

[8] SANTOS, Henrique Sena dos. “Desastres materiais, desordens morais”: o “football de vagabundos” nas ruas de Salvador, 1905 – 1920. Recorde: Revista de História do Esporte. Rio de Janeiro, v.5, n.1, 2012, p. 4.

[9] MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014, p.100.

[10] A Noite, 1920, ed. 03252.

[11] FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: MAUAD, 2003, ed.5, 2010, p.85.

[12] Ibid., p.86.

[13] A Época (RJ), 1913, ed. 00219

[14] SANTOS JUNIOR, Nei Jorge dos. A vida divertida suburbana: representações, identidades e tensões em um arrabalde chamado Bangu (1895-1929). 2017. 230 f. Tese (Doutorado) – Curso de Estudos do Lazer, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017 p.196.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mayara de Araújo Silva

Graduada em História e, no momento, mestranda em História na UFRRJ, tendo por objeto o futebol nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Torcedora assídua do Clube de Regatas Vasco da Gama e interessada por assuntos que rodeiam o esporte no geral.

Como citar

ARAúJO, Mayara de. As ruas e o futebol-arte: como a prática do futebol nas ruas influenciou na construção de um estilo nacional. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 30, 2021.
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