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As turnês de Pelé

Copa Além da Copa 14 de fevereiro de 2023

Como maior atleta do esporte mais popular do mundo, Pelé viajou o globo desfilando seu talento. Com o Santos, com a Seleção Brasileira e mesmo com o New York Cosmos, sua majestade encheu os olhos até em lugares que os grandes astros não costumam ir.

Há alguns casos que são famosos: durante a excursão do Santos pela Europa em 1961, o Olympiakos, da Grécia, venceu o time de Pelé, feito que até hoje aparece no hino do gigante grego. Mais tarde, há discussões e interpretações sobre o que realmente aconteceu na Nigéria, em um episódio que se diz que “o Rei do Futebol parou uma guerra”.

Nós já falamos sobre esses casos no podcast Copa Além da Copa #58, episódio especial dedicado ao Rei (para ouvi-lo, clique aqui). Nesse texto, o foco é em outros episódios memoráveis de viagens de Pelé pelo mundo.

Contextualizando as turnês

Antes de começarmos, é muito importante entender que não é possível analisar o futebol dos tempos de Pelé com os olhos de hoje. Atualmente, não se imagina um time fazendo tantas turnês em diversos lugares do mundo como fazia o Santos – que, é claro, era muito requisitado por ser a equipe de Pelé.

Quando o rei começou a atuar profissionalmente, a Libertadores, por exemplo, sequer havia sido criada (ela começou em 1960, quatro anos após a estreia de Pelé no clube santista). Ainda assim, apenas com a camisa do Santos, Pelé atuou no exterior mais de 350 vezes. É claro que, se as competições internacionais ainda não tinham tomado forma, os jogos disputados eram considerados não oficiais – ou seja, amistosos.

Mas não podemos pensar neles como os amistosos de hoje, em que se joga sem muita vontade. Pelé rodou o mundo lotando estádios, com times se empenhando para valer para vencer sua equipe. Entre 1959 e 1974, o Santos de Pelé atuou nos cinco continentes. Nesse período, o craque jogou na Europa ocidental todos os anos entre 1959 e 1963 e, depois, entre 1967 e 1974 (com exceção de 1970).

É preciso entender também qual era o contexto político do mundo em que Pelé brilhou: em 1955, um ano antes de sua estreia, ocorreu a Conferência de Bandung, em que países asiáticos e africanos que haviam conquistado recentemente suas independências começavam a debater, pela primeira vez, os males do colonialismo, buscando seu próprio lugar no tabuleiro internacional.

Também por isso, Pelé teve passagens marcantes pelos continentes africano e asiático: diferentemente de Puskás e Di Stefano, craques da geração anterior a ele, Pelé brilhou num momento em que o futebol realmente se tornava global (também com a ajuda da TV, que impulsionou a fama de Pelé pelas transmissões da Copa do Mundo). Não à toa, João Havelange, presidente da CBD nos três títulos mundiais de Pelé com o Brasil, o tomou pelo braço para fazer campanha à presidência da FIFA. Ele sabia que o peso político das federações de outros continentes aumentava e abria espaço para que a entidade tivesse um presidente não europeu pela primeira vez.

Pelé jogou contra os maiores e melhores, em todas as partes do mundo, e esses jogos foram também usados de forma política e social.

Bate-bola com operários

O VfL Wolfsburg é hoje um clube médio na Alemanha e tem até um título da Bundesliga no seu currículo, na temporada 2008-09. Mas apesar de existir desde 1945, ele teve uma ascensão bastante recente, alcançando a Bundesliga apenas na segunda metade da década de 1990.

O motivo dessa demora é que o clube, ligado às fábricas da Volkswagen na cidade cuja versão moderna foi planejada em torno da gigante automobilística, inicialmente era formado apenas por operários, servindo principalmente como forma de dar a eles atividade física e lazer.

Em janeiro de 1959, fora lançado no Brasil o Fusca, carro que logo se tornaria líder do mercado nacional e se transformaria em uma febre. A Volkswagen tinha uma grande ligação em desenvolvimento com o Brasil e, por isso, aproveitou a excursão do Santos pela Europa em 1961 e usou o futebol para estreitá-la: o alvinegro praiano jogaria em Wolfsburg.

A equipe do Wolfsburg na época era amadora e tinha apenas operários da fábrica em seu elenco. Antes do amistoso, os jogadores do Santos visitaram a linha de produção e tiraram fotos ao lado da montagem de alguns Fuscas, que na Alemanha se chamavam Käfer.

Claro que, para o então melhor time do mundo, enfrentar uma equipe de operários era um passeio. Mas a partida entre Santos e Wolfsburg foi muito mais animada do que parecia, com os brasileiros vencendo pelo placar de 6 a 3. O acanhado estádio esteve lotado, com 10 mil pessoas prestigiando aquela experiência única.

Pelé no Congo e na Nigéria: narrativas misturadas

Como mencionamos no nosso podcast sobre Pelé, há muito mais mito do que realidade na narrativa de que o Rei teria parado a Guerra do Biafra, na Nigéria, durante a sua presença por lá. Na verdade, a maior possibilidade é que a partida tenha sido usada como propaganda do governo nigeriano sobre a segurança e unificação de seu território após ter praticamente derrotado a República do Biafra de maneira definitiva.

Há quem diga que houve duas guerras paradas na excursão do Santos à África, em 1969, com a outra sendo no Congo. As duas narrativas, provavelmente, estão confusas e entrelaçadas.

Naquela excursão, o Santos também disputou um amistoso na República do Congo e outro na República Democrática do Congo, previamente Congo-Brazzaville (de colonização francesa) e Congo Belga, respectivamente. Os dois países, vizinhos na África Central, viviam uma grave crise diplomática e tinham fronteiras fechadas entre si, impedindo o trânsito de pessoas.

Daí vem o grande feito do Santos na excursão pela África de 1969: um acordo diplomático entre República do Congo e República Democrática do Congo para que o Santos pudesse cruzar a fronteira livremente. Mas, vale ressaltar, os dois países não estavam em guerra, e não há como afirmar também aqui que “Pelé parou uma guerra”.

A provável confusão é que o acordo diplomático feito entre os Congos acaba sendo transportado para a Nigéria, onde não houve cessar-fogo, uma vez que a região onde o amistoso do Santos foi disputado estava longe da zona de guerra.

De uma forma ou de outra, o Santos moveu multidões também na África e pôde cruzar uma fronteira que era proibida aos meros mortais.

Pelé durante excursão do Santos.
Pelé no Aeroporto de Schiphol, em Amsterdã, em 1962. Foto: Joop van Bilsen/Anefo.

Adiando o pior no Líbano

Nos anos 70, Pelé já era consagrado. Já havia ganhado suas três Copas do Mundo, além dos outros principais títulos de sua carreira. A ida para o Cosmos, em Nova York, em meados da década de 70, coroou essa que foi a última fase de sua carreira profissional.

Contudo, ele seguia sendo requisitado por turnês em diversas partes do mundo. Uma delas ocorreu no Líbano, país que, após a Segunda Guerra Mundial, tinha se desenvolvido de forma rápida. Sua capital Beirute era chamada de “Paris do Oriente Médio”, tanto por sua influência francesa quanto pelo fato de estar bastante avançada em relação às demais capitais da região.

Aqui, vale dizer: o que hoje é o Líbano era parte do Império Otomano até a 1ª Guerra Mundial, quando o controle sobre o território foi então tomado pela França. Mas o domínio francês não duraria muito, enfraquecido pela invasão nazista aos franceses na 2ª Guerra e, em 1943, os libaneses declararam independência. Sendo um país claramente dividido entre religiões, o Líbano recuperou da época otomana uma estrutura de poder compartilhado bastante sofisticada, com um presidente obrigatoriamente cristão e um primeiro-ministro obrigatoriamente muçulmano. 

Esse arranjo permitiu os avanços que levaram Beirute a ser comparada a Paris, mas ele foi desequilibrado com a chegada de milhares de refugiados palestinos após a Guerra dos Seis Dias entre nações árabes e Israel, em 1967. As tensões se elevaram a partir daí e o futebol era uma das poucas línguas faladas por todos os libaneses.

Um dos poucos clubes a romper a bolha sectária no país, o Nejmeh SC, recebeu Pelé em Beirute durante uma de suas turnês em 1975. O rei vestiu a camisa da equipe para enfrentar um combinado de estudantes das universidades francesas do Líbano. O país parou para vê-lo, como era comum, e o Estádio Chamoun se lotou para ver o Nejmeh vencer por 2 a 0.

Claro, era só um jogo. Menos de uma semana depois que Pelé atuou em Beirute, pistoleiros muçulmanos atiraram contra uma igreja e mataram quatro pessoas, no mesmo dia em que um grupo de cristãos atacou um ônibus de militantes palestinos e matou outras 30. Estava inaugurado um longo conflito civil que levaria 15 anos para se resolver.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Copa Além da Copa

Perfil oficial do Podcast Copa Além da Copa. A história, a geopolítica, a cultura e a arte que envolvem o mundo dos esportes.

Como citar

COPA, Copa Além da. As turnês de Pelé. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 15, 2023.
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