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As VÁRias regras no futebol e o seu efeito na VÁRzea

O futebol é uma das modalidades esportivas mais conservadoras. Mudanças em seu regulamento acontecem de tempos em tempos após muito debate e resistência. A alegação está centralizada VARiavelmente no objetivo de minimizar a interferência na dinâmica das partidas. Isso aconteceu com o tiro de meta (1869), a inclusão dos árbitros (1874), o tempo de jogo com 90 minutos (1877), a introdução dos pênaltis (1891), a criação das áreas (1902), a delimitação dos goleiros às áreas e o uso de uniforme diferente (1912), o número obrigatório nas camisetas (1939), as substituições em caso de lesão (1958), a utilização de cartões punitivos e dos pênaltis para decidir uma partida empatada (1970), o recuo de bola para o goleiro pegar apenas com os pés (1992) e a permissão para até 3 substituições (1995). Nos últimos anos, também temos a autorização de intervalo durante o tempo de jogo em condições extremas, como calor excessivo. No contemporâneo, falamos da utilização do Video Assistant Referee (VAR), também chamado de vídeo-árbitro ou árbitro assistente de vídeo.

Essa técnica de verificação das jogadas, no futebol, surge um pouco atrasada se comparada com outras modalidades como futebol americano, atletismo, automobilismo, tênis, vôlei, basquete e artes marciais, para citar as mais conhecidas do grande público brasileiro. A questão quando pensamos o VARejo do futebol discorre sobre os impactos dessa instrumentalização na estética e no tempo do jogo. Falamos sobre uma nova percepção sobre o futebol, seja assistindo pela televisão, escutando pelo rádio ou vivenciando de dentro de um estádio. Pretendo pendurar no VARal a discussão e, assim, da VARanda, observar as transformações. Mas, quais transformações?

As alegações mais simplistas afirmam ser o futebol uma modalidade esportiva democrática, o que escamoteia a desigualdade instalada em salários de atletas e na estrutura dos clubes. Além, é claro, de negar que durante muito tempo apenas VARões estavam autorizados a praticá-lo. Hoje, o futebol feminino vem galgando espaços, tateando com seu VARapau em mãos, tentando igualar o patamar de investimento do futebol masculino.

A VARiedade de clubes, de campeonatos de futebol e o número de praticantes são imensos ao nível mundial. Essa situação remete às supostas vantagens da modalidade em seu sentido mais democrático, o acesso. Qualquer VÁRzea pode abrigar um campo, seja no quintal de uma casa ou em modernas arenas.

No livro Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil (1987), Ronaldo Helal discute sobre as expressões, tradicionalismo versus modernização. Em breve trecho, contextualiza o cenário nacional do futebol quanto à estrutura administrativa dos clubes. Hoje, facilmente fazemos a distinção entre administrações amadoras e as que passaram a adotar o conceito de clube-empresa, destacando um maior profissionalismo. Não só essas duas modalidades, ainda que sejam, provavelmente, as que representam os extremos na gestão.

 

Cadê o gol? Cobrança de pênalti em gol imaginário. Valparaíso, Chile, 2008. Foto: Martín Vinacur.

Pensemos o quanto o futebol, essa modalidade esportiva VARonil, se transforma em campo. Os motivos das VARiações que acontecem de tempos em tempos estão relacionadas com seus objetivos esportivos e midiáticos. Atrelados ao negócio futebol que já atravessa décadas com um público fiel e até então cativo. Entretanto, sofre com a concorrência de novas modalidades, inclusive, virtuais que se alinham aos novos tempos de uma sociedade em constante inovação.

A VARiação das possibilidades e oportunidades esportivas na sociedade leva os dirigentes de futebol a repensar a modalidade, procurando torná-la mais atrativa para o público praticante e consumidor, bem como para as “VARejeiras” que produzem o espetáculo e os produtos a serem consumidos. Estas últimas, por sinal, não podem perder os adeptos, chamados de consumidores.

Toda mudança no futebol é construída por meio das argumentações, das negociações e da apresentação de resultados práticos do impacto de determinada mudança na dinâmica do jogo. A Federação Internacional de Futebol Associação (FIFA) tem adotado uma metodologia de testes junto a ligas menores ou nas categorias de base, o que permite avaliar com subsídios concretos a possibilidade de VARiar as regras. Após o período de experimentação, apresenta as mudanças propostas e solicita sua implantação por meio do que podemos chamar de um grande Pacto de VARsóvia futebolístico.

As mudanças podem produzir VÁRios impactos na subjetividade do jogo. Quero com isso VARrer as dúvidas, críticas, possíveis falhas ou potencialidades que alimentam o debate atual sobre a aplicação do árbitro de vídeo. Aproveito para fazer a VARredura das implicações das mudanças nas regras do jogo que se refletem na prática cotidiana.

No quintal da minha casa, tem um espaço suficiente para transformá-lo em uma VARiante de uma grande arena. Meu filho de seis anos aceita que as traves sejam feitas com VARas fincadas no solo. Nesse espaço, o aprendizado espontâneo, diria que é discretamente orientado do futebol, dá os seus primeiros chutes e dribles. Na mente de uma criança, a fantasia confunde-se com a realidade, possibilitando estar investido de Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo, D’Alessandro, Paolo Guerreiro e muitos outros. Também permite, ao toque de uma VARinha de condão, que os confrontos mais inusitados possam acontecer independente dos limites fronteiriços da desigualdade futebolística.

Quem já não experimentou essa fantasia como uma criança ou ao lado de uma? Foi em uma dessas partidas inusitadas e icônicas entre Juventus (Itália) e Brasil de Pelotas (RS) que compreendi o alcance da inserção das mudanças instrumentais no futebol e como afetam o cotidiano de uma brincadeira. As regras ou a inclusão de um novo elemento na configuração do jogo transformam sua cultura, que para Toledo (2008) envolve uma nova sensibilidade.

Gesto do árbitro ao consultar o VAR. Foto: Reprodução/TV Globo.

Tal observação aconteceu durante nosso clássico, entre o clube italiano e o brasileiro, que em determinado lance uma dúvida surgiu. A bola passou por cima da trave que baixa deixou uma interrogação, passou dentro ou fora da VAReta que sinaliza o limite do gol? Sem pensar, quase que de maneira automática meu filho parou a discussão e a minha entusiástica comemoração. Deu alguns passos, até o que pode ser considerado o meio do campo em nossa arena quintal. Enquanto eu permanecia atônito, ele ergueu os braços, fez o gestual com as mãos desenhando um retângulo no ar e com firmeza apontou sinalizando que a bola foi fora. Pensei, que safado! A dúvida do gol e toda a discussão foi resolvida com a introdução de um outro elemento no campo de jogo imaginário.

Meu filho VARreu a dúvida do gol através da racionalidade técnica de um elemento capaz de mediar a decisão que passa a ser objetivada com base na vidência ou evidência. A criança ao reproduzir a mimese do jogo usa a racionalidade técnica, digamos, apenas a imagina. Não pretendo fazer o debate questionando o quanto o futebol necessita VARiavelmente mudar suas regras para ser mais atrativo. Inovações fazem parte da sociedade e continuam proporcionando adaptações, pois esse é o sentido do progresso. Apenas desejo apresentar que as mudanças têm efeito direto nas novas gerações que aprendem a incorporar, mesmo nas brincadeiras (lúdico), as novas regras de maneira mais consensual, como se sempre tivessem feito parte do jogo.

As novas gerações nascem em um novo mundo com os processos já incorporados na sociedade. Meu filho adotou o VAR como instrumento técnico pertencente ao jogo de maneira mais consensual. Portanto, as regras só encontram resistência naqueles que necessitam ser aculturados, isto é, nas gerações mais velhas que experimentam outra sensibilidade que agora passa por uma renovação, modificação, alteração ou direção.

Em março de 2020, a FIFA fez o anúncio de novos testes para aprimoramento das regras que visam deixar a modalidade mais dinâmica e atrativa. Algumas dessas já são aplicadas na VÁRzea e não trarão grande impacto na estética do jogo. Logo, não sofrerão resistência, é minha opinião. Pois, parece regulamentar algo que já está sendo praticado nas peladas e na modalidade do futebol de salão.

A proposta irá testar a reposição de bola lateral com os pés, substituições ilimitadas, a aplicação do cartão amarelo significando como punição a retirada do jogador por um determinado tempo da partida e também o cronômetro contabilizado apenas com a bola em jogo. Regras que prometem aprimorar a fluidez do jogo. No entanto, toda instrumentalização técnica (como adoção do VAR) faz um movimento oposto, afetando o produto futebol e até mesmo a fantasia na brincadeira de uma criança. Nesse caso, apresenta maior resistência, em razão do impacto que produz na cultura do jogo e que requer, como tal, um período de aprendizado, pois se caracteriza por ser um novo elemento com poder de mediação e decisão em uma partida.

Nas recentes mudanças propostas pela FIFA, por exemplo, a aplicação da reposição de bola lateral com os pés não será algo desaprovado pela opinião pública esportiva. Agora, quando falamos de aplicações técnicas ou sua instrumentalização no jogo, essas promovem um grande debate, mesmo quando sua utilização serve para equilibrar ou tornar o embate esportivo mais justo. Tal situação acontece em razão das implicações culturais que impactam o jogo, e mesmo durante a mimese na ludicidade de uma criança.

Referência

TOLEDO, Luiz Henrique de. Jogo livre: analogias em torno das 17 regras do futebol. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 30, jul./dez. 2008. p. 191-219.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. As VÁRias regras no futebol e o seu efeito na VÁRzea. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 59, 2020.
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