Em 1984, o peso-pesado brasileiro Adílson Maguila Rodrigues enfrentou o norte-americano Mike White, vencendo-o por pontos. Depois do combate realizado em São Paulo, o pugilista estadunidense realizou um breve período de testes na equipe de basquete o Corinthians Paulista, então uma das melhores do país, logo passando a integrar o plantel do clube que no futebol é o mais popular de São Paulo. No ano seguinte, um conhecido que também atuava profissionalmente no alvinegro contou-me que White só não permanecera no país porque seu visto de trabalho não fora expedido a tempo. Muito forte, era um marcador implacável, um dos poucos a segurar o pivô Marquinhos, titular da seleção brasileira por mais de uma década, bronze e prata em mundiais pela seleção brasileira e campeão do mundo interclubes pelo Esporte Clube Sírio. O dublê de boxeador e basquetebolista, inconformado com o resultado da luta contra Maguila, queria uma revanche que, no entanto, não chegou a acontecer.

O fato de jogar basquete profissionalmente, sendo igualmente lutador de boxe, fez pairar a suspeita – com frequência reiterada – sobre o nível dos adversários de Maguila, mas parece que White ostentava, de fato, respeitável cartel. A estranheza se dava porque muito dificilmente um atleta se apresenta com alto rendimento em mais de uma modalidade esportiva.

Nos Estados Unidos da América há uma quantidade significativa de excepcionais velocistas no atletismo. Poucos deles, no entanto, chegam a representar o país em competições internacionais, ou mesmo tomar parte no circuito internacional. A disputa para representar o país é muito árdua e não raro recordistas mundiais ficam fora das equipes olímpicas. Vários atletas atuam concomitantemente em equipes de futebol americano na breve temporada anual da modalidade. Há anos acompanhei a performance de um deles que chegou a correr quarenta metros, na grama, pelota nas mãos, em três segundo e quatro décimos. Como parar um bólido desses?

Além dos escassos casos de atuação em duas modalidades, há tentativas migratórias, mas mudar de esporte e manter o alto nível não é tarefas das mais fáceis. É o que acontece na relação entre o vôlei e o vôlei de praia. Karch Kiraly, campeão olímpico na quadra por duas vezes e outra na areia é exceção, assim como Jaque Silva, destacada levantadora de vôlei e melhor do mundo várias vezes e campeã das areias em 1996. Embora em seus momentos de maior brilho já houvesse desenvolvimento importante do vôlei de praia, tanto o estadunidense quanto a brasileira foram campeões olímpicos na praia na primeira das competições da modalidade, nos Jogos de Atlanta. Ou seja, a modalidade ainda não se consolidara, permitindo que os imigrantes vindos da quadra alcançassem com mais facilidade o alto do pódio.

Também no futebol, o movimento se dá, ainda que se mostre raro no sentido de ingressar em outra modalidade em detrimento dele. Um exemplo é o do atacante Adhemar, destaque do Esporte Clube São Caetano no começo deste século, quando ajudou a levar a equipe do ABC às finais do Campeonato Brasileiro e da Copa Libertadores da América. Com seu fortíssimo chute, foi recrutado para o futebol americano ao aposentar-se pela primeira vez. Deveria entrar em campo no momento em que se solicitava a presença de um Kicker. Não durou muito, não chegou a ser um astro.

Enquanto os atletas do campo pouco se deslocam para outras modalidades, o contrário acontece amiúde. “O Falcão tinha condições de jogar no São Paulo”, disse certa vez o lateral-esquerdo Junior, com a experiência de quem fora campeão mundial de seleções (2002) e de clubes (2005), além de ter vencido uma Copa Libertadores da América (1999). Uma segunda Libertadores e também um Mundial de Clubes entrariam em seu currículo. O multivencedor se referia ao craque que viera do futsal no início de 2005, quando o tricolor, além de ser o melhor da América e do Mundo, venceu também o Paulistão. Aquele que possivelmente foi o maior futebolista das quadras até hoje chegava ao Morumbi em sua terceira tentativa no campo, vestindo a habitual camiseta número 12 das quadras, em ação de marketing que fez o bom goleiro Roger, reserva de Rogério Ceni por tantos anos, passar a ostentar o 13 às costas.

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Falcão em ação no Panamericano de 2007 contra a Argentina. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil.

“Jogador do Presidente”. Assim se referia ao astro das quadras o técnico Emerson Leão, que ofereceu poucas chances reais para que Falcão se consolidasse no campo. O craque voltou ao Jaraguá Futsal, deixando os estádios, definitivamente – já antes tentara a sorte no Palmeiras e na Portuguesa de Desportos –, para as peladas de final de ano.

Falcão não foi o único jogador já com destaque no futsal a tentar a sorte no campo. Nos anos 1980, o salonista Douglas não vingou no Flamengo, tampouco Lenísio na década seguinte se firmou no Galo Mineiro. O Grêmio viu Ortiz quase despontar na mesma década, como também aconteceria depois com o grande Manoel Tobias, e com Mithuê há dez anos atrás. De tantos, apenas o último teve carreira relativamente longa no futebol profissional, depois de destacar-se como campeão e melhor jogador do Campeonato Brasileiro sub-20 de 2008. Todos fizeram, de qualquer forma, o caminho de volta às quadras.

Que não é fácil chegar ao futebol profissional, todos sabemos. Ou quase. Frequentemente se escuta, em rompantes de torcedores, quando da perda de um “gol feito”, ou de uma “furada” na zaga, ou ainda de um “frango”, que aquele que está na arquibancada ou em frente à TV não erraria se a chance lhe fosse dada. Mera ilusão, claro, o mais provável é que o confiante fanático nem sequer visse “a cor” da bola em campo. As barreiras para se chegar a jogador profissional são tão altas e em tão grande número, que só mesmo um punhado de bons ou ótimos – entre muitos do mesmo calibre, ou até melhores, que não vingam – chegam lá.

Com frequência, em sessões de treinamento de equipes de alto rendimento, compõe o aquecimento um breve jogo de bola com os pés. Destacar-se nele é, não raro, fonte de prazer e motivo de distinção, mesmo que na informalidade, entre atletas de outras modalidades. Futebol é sonho que não passa.

Sul da Ilha de Santa Catarina, setembro de 2018.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Astros do esporte, sonhos no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 29, 2018.
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