E as repercussões da fala crítica ao presidente da república por parte da jogadora de vôlei de praia, Carol Solberg, após receber medalha de bronze na etapa do circuito brasileiro da modalidade em fins de setembro, seguem a todo vapor. A história, como sabemos, foi a julgamento no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) no dia 13 de outubro e resultou numa advertência à atleta pelo seu “Fora, Bolsonaro!”. “Pena branda”, segundo o presidente da Comissão Disciplinar que julgou a atleta, ao invés do pagamento de multa e suspensão de 1 jogo, recebeu apenas um “puxão de orelha”, nas palavras do advogado.

As justificativas da acusação se basearam em um possível descumprimento do regulamento da competição, que protege a imagem da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) perante seus patrocinadores. O principal deles é o Banco do Brasil, sociedade de economia mista, com uma (grande) porção do Estado e outra privada, e nisso reside a suposta preocupação em perder o importante apoio financeiro por parte da CBV.

Mas, fica a dúvida: em que o grito de Carol poderia, de fato, implicar, se em última instância, Jair Bolsonaro não é o dono do banco em questão, não compõe sua diretoria executiva, nem pode nela intervir de maneira autocrática, ao menos em teoria, já que a realidade brasileira, sabemos, tem se mostrado cada vez mais apartada da democracia? Ou seja, se o argumento da medida disciplinar contra a jogadora tem base nos negócios e não na política, por que sua manifestação soou tão mal à entidade maior do vôlei no país?

Foto: Wikipédia

Pois se nos lembrarmos das manifestações de apoio ao então candidato à presidência da República ainda em 2018, por parte de jogadores homens (como Felipe Melo, Lucas Moura e muitos no futebol, Wanderley Silva e José Aldo, no MMA, só para listar alguns), chegamos a uma incômoda conclusão: o apoio (entendido em sentido amplo) passa pelos caminhos da concordância com um discurso masculinista, de dominação, que legitima um lugar de poder, localizado no homem branco, cisgênero e heterossexual, de classe social privilegiada, que costuma “mandar” nesse país desde os tempos da colonização.

Vale dizer que criticar o governo, dentro de um ideal democrático e republicano, não deveria se configurar como um problema, mas antes um movimento do próprio fazer político. Se à política, como bem mostrou a intelectual alemã Hannah Arendt, pertence o âmbito do debate, do discurso, da mediação dos contentamentos e descontentamentos em direção à construção de um senso comum (para um bem comum), a crítica pública (espaço por excelência da política) não deveria ser uma afronta, mas assim se torna em contextos autoritários. E aqui não estamos tratando apenas do atual governo, claramente conservador e repressor, e sim também (e principalmente) do sistema esportivo.

Não podemos nos esquecer que faz parte da estrutura do esporte uma porção de violência e sofrimento entendidos como “excessos tolerados”, como pontuou Theodor Adorno ainda nos anos 1940, notadamente no que concerne ao treinamento e rendimento corporais. Nesse contexto, predominam discurso e prática altamente disciplinadores, em que autoritarismo e obediência se encontram na aceitação das regras do jogo, tanto aquelas da modalidade que se pratica, quanto às inerentes ao treinamento esportivo. No processo de entrega do corpo à intensa preparação atlética e às rígidas normas de trabalho (e de vida), há, muitas vezes, o cerceamento da autonomia dos atletas, que devem ser calados em suas expressões que não sejam aquelas estritamente esportivas.

A repreensão à manifestação de Carol se coloca como revoltante e merecedora de repúdio, não apenas em comparação ao histórico de apoios anteriores que listamos, mas no nível de uma justificativa incabível acerca da postura individual desta atleta. Estaríamos, então, diante de “elegibilidades eletivas” em tais situações? Ou seja, alguns/algumas atletas podem se manifestar, outros (e outras) não têm permissão, na exata medida de que isso, terminantemente, não é aceito. De que critérios estamos nos referindo sobre quem pode ou não requerer ética e compromisso de governantes? Fala quem apoia e cala quem protesta?

O próprio COI, entidade máxima do esporte mundial, determina em sua regra 50 da Carta Olímpica que não pode haver nenhum tipo de demonstração de cunho político, racial ou religioso durante seus eventos. O Comitê segue tentando manter uma ideia (diga-se, um tanto ultrapassada) de pureza no esporte, persistindo no anacronismo do etos aristocrático, amador, branco, masculino, heterossexual, elitista de seus fundadores do século XIX.

Contudo, e felizmente, personagens esportivas têm tensionado tais ditames há, pelo menos um século. Desde Stamata Revithi, a grega que desafiou a proibição de participação de mulheres na maratona, ainda em 1896, e correu sozinha o percurso, passando por Jesse Owens, negro estadunidense campeão olímpico que não cumprimentou Hitler em 1936, os corredores Thomas Smith e John Carlos, que levantaram punhos em riste pelo Black Power, em 1968, até Cathy Freeman, corredora aborígene, que trouxe aos holofotes a causa do massacre dos povos autóctones no território australiano, em plena Olimpíada de Sydney-2000.

Paulatinamente, no entanto, estas posturas se proliferam no século XXI, a partir de movimentos organizados pelos próprios atletas, que têm debatido e exigido maior representatividade política dentro do sistema. Um exemplo disso é o caso da comissão de atletas do COB que passou de 1 representante para 12 com direito a voto, assim como a reivindicação de revisão de normativas que cerceiam a liberdade de expressão, a exemplo da própria regra acima citada.

Se a postura tradicional do sistema esportivo é de infantilizar os principais trabalhadores deste mercado (atletas), punindo-os ou silenciando suas vozes, ou, como no caso aqui em questão, “puxando suas orelhas” (como disse a Comissão que julgou a jogadora de vôlei), identificamos como resposta, cada vez mais, a insubmissão de tais sujeitos frente a estas repressões institucionalizadas. Enquanto adultos que são e não infantes (aquele que não fala), atletas mulheres e homens começam a se mover e agir contra punições e posições autoritárias.

Carol é um exemplo interessante, pois ela não se calou, nem se arrependeu do que disse em frente às câmeras de televisão, trazendo no corpo (e talvez na marca do DNA, pois é filha da excepcional jogadora de vôlei Isabel Salgado), uma politização de corpos historicamente apartados da política. Além de meritoso, ela evoca algo muito potente nesse momento histórico: a fala de uma mulher, que não se acovarda perante o domínio masculino das instituições em que habita.

As violências de gênero em vigor contra mulheres não são apenas físicas, mas simbólicas e perpetuadas ad nauseam. Concepções de senso comum, como “calem à boca”, “joguem como homens” ou ainda “corpos frágeis”, são desferidas a elas, no sentido de inferiorizá-las, alocando-as em lugares secundários da estrutura do esporte, não reconhecendo suas performances existenciais ou esportivas. 

Se o feminismo negro nos mostrou que não tem como considerar a condição social de uma mulher sem levar em conta sua raça, classe social, seu gênero (e identidades sexuais) e mesmo outros marcadores, pois só assim conseguiremos perceber as camadas de preconceitos e injustiças desferidas contra tais sujeitas, o mesmo vale nas arenas esportivas. Fatores que interseccionalizam e atravessam corpos de mulheres negras, pardas, indígenas, amarelas, ou mesmo brancas como Carol, são importantes porque revelam o lugar contra-hegemônico frente ao que está consolidado e institucionalizado.

O caso parece estar longe do fim, apesar da decisão do STJD de advertir a jogadora de vôlei de praia. O Ministério Público Federal (MPF) do RJ já está organizando uma audiência pública para discutir a liberdade de expressão de atletas, um sinal fundamental que as instituições que devem zelar pela manutenção da política e da democracia ainda seguem vivas no Brasil.

De nossa parte, lutemos para que discussões sejam feitas e posicionamentos incrustados sejam desafiados, e que, sobretudo, muitas e outras Carols, sejam elas atletas ou não, possam seguir expressando suas opiniões políticas, e que o sistema esportivo deixe de se apresentar como arena neutra, assumindo que é (e sempre foi) um espaço de disputa, não apenas de medalhas e recordes, mas também de ideologias e visões de mundo.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Michelle Carreirão Gonçalves

Doutora em Educação com formação inicial em Educação Física e Filosofia, professora da Faculdade de Educação da UFRJ, venho pesquisando esporte ancorada nas Humanidades, com especial interesse nas questões estéticas das práticas esportivas.

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

GONçALVES, Michelle Carreirão; CAMARGO, Wagner Xavier de. Atletas e política: o caso Carol Solberg. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 2, 2020.
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