Atletas intersexo em competições esportivas
Há cerca de uma década tem havido polêmica no esporte de alto nível relacionado à presença de atletas que não se enquadrariam nas rígidas categorias binárias “masculino” e “feminino”, definidas pelo meio esportivo. Particularmente, um fato ocorrido com a corredora sul-africana Caster Semenya chamou muito a atenção pública mundial: ela teve excepcional desempenho nos 800 metros, do 12º Campeonato Mundial de Atletismo da IAAF, em agosto de 2009, em Berlim/Alemanha, mas, apesar de competir na categoria de mulheres, se parecia “homem” (aspas nesta designação discriminatória). Em que pese a própria Semenya não se reconhecer como pessoa transgênero ou intersexo (e, sim, lésbica), seu corpo apresenta uma anomalia chamada hiperandrogenia e, devido a isso, produz uma quantidade excessiva de testosterona, um hormônio vinculado a corpos de homens e à força e virilidade que apresentam. Por isso que, devido à quantidade de pelos e ao desempenho, recaiu sobre a atleta a desconfiança não apenas da mídia e do senso comum, como também das confederações esportivas.
Entretanto, o constrangimento da sociedade não deveria recair sobre o corpo da atleta, mas sobre o que tal “levante discriminatório” representa. Penso que, de um lado, o incômodo é gerado porque se baseia na afirmação de uma suposta vantagem que ela teria sobre outros corpos, o que a faria desempenhar melhor todas as funções relativas à corrida e a colocaria no conjunto de atletas que se utilizam de doping no esporte. De outro lado, e talvez a maior das queixas e sob a qual há discriminação velada, é que Semenya traz um corpo que não concorda em ser colocado num lugar de abjeção e de marginalidade. A inquietação geral a partir desta segunda acepção baseia-se exatamente na estrutura de dominação masculina edificada no campo esportivo, que, reproduzindo valores morais do patriarcado, invisibiliza, domina e inferioriza mulheres como sujeitos políticos.

E isso afeta tanto corpos de mulheres cisgênero (que acatam sua fisiologia desde o nascimento), quanto de mulheres transgênero (que se identificam com outro gênero a partir de algum momento em suas vidas) e ainda causa transtorno a corpos intersexo (que nascem com características sexuais e reprodutivas específicas). Com o avanço nas pesquisas, sabe-se que, na história do esporte olímpico, alguns/mas atletas participaram nessa última condição, porém todos/as foram mantidos/as invisibilizados/as.
Foi o caso da polonesa naturalizada norte-americana Stella Walsh, medalhista nos Jogos Olímpicos de 1932 e 1936, que foi reconhecida como intersexo em 1980; de Dora Ratjen, alemã que competiu no salto em distância representando o país em Berlim-1936 (consta que Ratjen fora obrigado pelos nazistas a inscrever-se como mulher, quando em realidade era homem); de Tamara Press, atleta soviética do arremesso de peso e lançamento de disco, que estabeleceu recordes nos Jogos Olímpicos de 1960 e 1964, sendo mais tarde “acusada” de ser intersexo; da também polonesa, Ewa Klobukowska, competidora do revezamento 4 x 100 metros nos Jogos de Tóquio-1964, que em razão de um teste de verificação sexual aplicado três anos mais tarde, foi declarada possuidora de “cromossomos masculinos” em seu organismo.
O mais perverso disso tudo não são as “acusações” de ser de um sexo/gênero outro ou mesmo os horríveis testes de verificação sexual, mas a referencialização a um ideal corpo biológico normativo como padrão instituído. Obviamente que, por essa comparação terminal e pela lógica estabelecida, qualquer corpo que fisiológica ou fenotipicamente se desvie do modelo-padrão é considerado abjeto, anômalo, anormal. A acusação pública é apenas a ponta de um iceberg.

O caso atual de Semenya e das outras atletas vêm de encontro a questões mal endereçadas no esporte midiatizado e ressalta que questões relativas a corpos, gêneros e sexualidades não normativas precisam ser melhor compreendidas em suas especificidades. Particularmente, corpos intersexo (e também transgêneros) ainda sofrem muito com preconceitos, invisibilização e violências simbólicas em arenas esportivas – vide o caso atual da jogadora brasileira de voleibol, Tiffany Abreu. Considerá-los, portanto, não apenas problematizaria o binarismo de gênero instituído no campo esportivo, como se abririam importantes discussões sobre a gestão política e técnica do corpo e da sexualidade no esporte de competição (e, por extensão, no esporte não competitivo, escolar, de lazer e recreacional).
Há alguns meses, uma aluna me perguntou porque é tão difícil descobrir quem foram as pessoas intersexo ou transgênero na história dos Jogos Olímpicos. E eu disse a ela que as respostas podem ser várias, mas é fato dado que a história de tais Jogos se esforça por “oficializar” nomes de pessoas que perfazem masculinidades e feminilidades hegemônicas, as quais reafirmam constantemente os valores heteronormativos (que tomam a heterossexualidade como norma). A partir dessa “diretriz”, digamos assim, o registro oficial das conquistas olímpicas se sedimenta na “história oficial do esporte olímpico” e qualquer dissonância que aparece no sistema não deve ser registrada, muito menos lembrada. O que funciona para a sociedade, também funciona para o esporte, ou seja, a história oficial ainda escreve o nome dos vencedores: homens, viris e masculinos. Por essa lógica, mulheres e outros sujeitos sexuais apenas orbitam perifericamente o sistema. Isso precisa mudar!