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Ave agourenta

José Paulo Florenzano 7 de março de 2019

No domingo, 23 de janeiro, data que assinalava a abertura do campeonato estadual de 1972, o Diário de Pernambuco trouxe a notícia de que Allan Cole havia telegrafado ao Náutico para comunicar que, em nome da “amizade que fizera” durante sua breve estadia em Recife, aceitava a proposta que lhe fora apresentada pelos dirigentes do alvirrubro[1]. Além das questões afetivas, no entanto, devemos considerar também o peso de outros fatores na mudança de posição do atleta que inicialmente rejeitara o acordo, por discordar dos valores oferecidos pelo clube. Com efeito, entre voltar ao futebol da Jamaica, sem perspectivas de crescimento profissional, e permanecer no futebol do Brasil, mesmo recebendo menos do que acreditava merecer, a segunda opção certamente parecia mais indicada para quem acalentava obter projeção na carreira. Mas eram inúmeros os obstáculos no caminho de quem desejava ingressar no seleto grupo que, segundo a revista Placar, constituía a elite econômica da referida categoria.

À época da chegada do atacante jamaicano, o quadro esboçado pela pesquisa do semanário trazia à tona uma realidade que não se coadunava com a representação do futebol tricampeão do mundo e, muito menos, com a propaganda política do milagre econômico. A categoria profissional abrigava, então, seis mil, quinhentos e cinquenta e nove atletas, distribuídos ao longo de uma pirâmide hierárquica que, no vértice, contabilizava não mais do que vinte afortunados, classificados na rubrica dos “milionários”, enquanto, na base, concentrava uma imensa maioria de trabalhadores remunerados na faixa do salário mínimo, muitos dos quais exercendo uma atividade sazonal que os transformava nos “boias-frias” do futebol[2].

De fato, boa parte dos clubes não conseguia manter em ação o elenco ao longo do ano, atuando apenas durante alguns meses, correspondentes aos campeonatos estaduais. Entre os dois extremos da pirâmide hierárquica, a revista Placar divisava uma pequena “classe média”, formada por cerca de quinhentos atletas, com salários em torno de mil cruzeiros, valor que assegurava, em tese, a dedicação exclusiva ao ofício. Eis aí o dado que passava despercebido à opinião pública. Ao mirar os astros que brilhavam na galáxia do futebol, ela não enxergava a dura realidade dos trabalhadores que conciliavam a prática esportiva com o exercício de uma segunda profissão. Até mesmo para a “classe média” impunha-se a necessidade de precaver-se com um emprego alternativo para quando chegasse o momento de pendurar as chuteiras. Nesse sentido, como ressaltava a reportagem, a figura do “jogador-estudante” tornava-se cada vez mais numerosa. Somente na equipe do Náutico, onde atuava Allan Cole, vários jogadores cursavam a faculdade, em especial, a de educação física.

Além da desorganização do calendário, do amadorismo dos dirigentes e da crise dos clubes, para mencionarmos apenas três fatores responsáveis pela instabilidade crônica da profissão, a carreira de um atleta implicava, ainda, uma série de desafios. De um lado, havia a Lei do Passe que pairava como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos que incorriam na prática da rebeldia. De outro lado, havia a violência que grassava nos gramados e ameaçava a todos com uma fratura irreparável. A luta contra o tempo, por sua vez, estava perdida de antemão, pois, aos trinta anos, de acordo com as especificidades das regras do envelhecimento no campo esportivo, o jogador já se via rotulado de ultrapassado[3]. Aos vinte e um anos, Allan Cole se achava no início da trajetória profissional. O acordo fechado com o Náutico, algo ao redor de dois mil cruzeiros mensais, fora luvas, o situava em uma posição privilegiada no mercado de trabalho, abaixo da elite, mas acima da “classe média”. Levando-se em consideração as chances reais de o Clube Capibaribe participar das futuras edições do Campeonato Nacional, as perspectivas se lhe afiguravam promissoras.

Aos dirigentes do alvirrubro, em contrapartida, interessava contar com um atacante estrangeiro que não só aprovara no jogo-teste, como, ainda por cima, se transformara em uma sensação capaz de alavancar o projeto da construção de um novo estádio em Macaxeira[4]. Muitos planos começavam a ser edificados ao redor do ídolo jamaicano. Além de lhe reconhecer certo carisma junto ao público, Luiz Carlos Barbosa Lima, dirigente do clube, ratificava a confiança em um jogador “jovem, sem vícios e, acima de tudo, de excelentes qualidades técnicas”[5]. Por todas estas razões, ele conclamava a torcida a “colaborar com a agremiação para poder contratar Allan Cole”, mediante contribuição a ser depositada em uma conta corrente aberta no Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais.

A iniciativa não era inédita. Ela se inspirava na campanha do Corinthians deslanchada na mesma época para contratar Paulo César Lima, o controvertido ponta-esquerda do Botafogo[6]. Porém, assim como ocorrera com a ação do alvinegro paulista, a do alvirrubro pernambucano acabaria frustrada. E, pior ainda, a necessidade de recorrer a ela indicava um dado preocupante. O Náutico, afinal de contas, não reunia as condições financeiras para cumprir a proposta apresentada ao jogador jamaicano. Para viabilizá-la, a direção do clube apelava à generosidade de uma torcida identificada aos estratos socioeconômicos mais elevados, consoante os dados levantados pela pesquisa Ibope. De acordo com eles, no estado de Pernambuco, o Santa Cruz ocupava o primeiro lugar na preferência popular com 39%, seguido do Sport com 34%. O Náutico aparecia bem abaixo dos rivais com 24%, mas, em compensação, 35% das classes alta e média declaravam-se adeptos da agremiação da Rosa e Silva, incluindo o governador Eraldo Gueiros[7].

Além de contar com as doações feitas na conta corrente aberta em nome do Náutico, os dirigentes escoravam-se no comparecimento dos torcedores aos jogos, por certo, uma aposta de alto risco. No início da temporada de 1972, o Diário de Pernambuco explicitava a realidade desalentadora do futebol local, vivendo “às portas da falência” devido à “ausência de público nos estádios”, uma “situação de penúria” que o jornal atribuía, sobretudo, à “miséria do nosso povo”[8]. Com efeito, a estreia do Náutico no campeonato estadual, no final de janeiro, dar-se-ia contra o Ferroviário no estádio dos Aflitos. Diante de um público de mil e seiscentos pagantes, a equipe dirigida por Nelson Lucena foi derrotada por 2 a 1, prefigurando as dificuldades que a aguardavam, não somente dentro de campo em termos de resultados, mas também fora das quatro linhas em termos de arrecadações. Sob este último aspecto, diga-se de passagem, o problema não era exclusivo do Náutico. Na vitória sobre o Íbis pelo placar de 8 a 0, o Santa Cruz, o mais popular dos clubes, levara ao estádio dos Aflitos não mais do que mil e quinhentos torcedores. A Federação Pernambucana de Futebol (FPF), preocupada com a baixa presença de público, decretava já na segunda rodada a redução do valor dos ingressos no setor da geral, de quatro para três cruzeiros[9]. Nesse cenário adverso, a chegada de um “astro” estrangeiro, ainda que proveniente da Jamaica, não podia deixar de ser bem-vinda.

Na quinta-feira, 17 de fevereiro, logo após o encerramento do carnaval, Allan Cole retornava ao Recife procedente de Kingston. Nesse mesmo dia, sem perda de tempo, foi ao estádio dos Aflitos surpreender os amigos nos vestiários, “causando verdadeiro reboliço”. Esforçando-se ao máximo para superar a barreira da língua, mesclando palavras extraídas de idiomas diversos, ele manifestava a “felicidade” de reencontrar os friends. Embora o preparador físico o declarasse em “excelente forma”, o médico Omar Braga explicava que o atacante não poderia atuar no domingo contra o Sport porque, infelizmente, a documentação ainda não se achava regularizada. Isto, porém, não arrefecia a euforia provocada pela sua atuação no treino do Náutico. O Diário de Pernambuco não economizava elogios, exaltando os “sensacionais passes” distribuídos aos companheiros e a realização de “ótimas jogadas” durante o coletivo, com destaque para o gol de cabeça assinalado na vitória dos titulares por 2 a 1[10].

Allan Cole no Náutico.

Dir-se-ia que Allan Cole atuava em ritmo de frevo, ou de maracatu, estendendo os folguedos carnavalescos para o relvado do Náutico. Aos olhos da imprensa local, com efeito, era como se ele se inserisse em uma estimada tradição do carnaval de Recife, caracterizada pela presença dos “tipos exóticos” que, egressos das camadas mais desfavorecidas da sociedade, exibiam-se nas ruas da cidade, levando para o espaço público personagens criadas basicamente com os recursos da imaginação[11]. Mas a figura do atleta rastafári possuía um traço que constituía um desafio ao ritual de poder instituído no campo do futebol, detalhe devidamente identificado pelo relato jornalístico:

Sorridente, barbudo, com o cabelo ainda maior, Allan não escondia a sua satisfação em poder voltar a vestir a camiseta do quadro timbu.[12]

Sem o registro na FPF, Allan Cole, o único jogador de barba e cabelo comprido de todo o elenco alvirrubro, teve de se contentar com uma simples apresentação no clássico contra o Sport. Quando o Náutico veio a campo lá estava ele à frente do time para ser ovacionado pela torcida do alvirrubro. Enquanto a arquibancada lhe festejava o retorno, Armindo Tavares, um dos árbitros auxiliares do jogo, fez um comentário de menoscabo que não passaria despercebido pelo Diário de Pernambuco: “Tem muito Joaquim e João por aí que joga muito melhor do que esse cara e que viria muito mais barato”[13]. Até que ponto esta opinião sobre o jamaicano se achava disseminada pelo Recife se nos afigura uma questão em aberto. De qualquer forma, conforme veremos, ela estava longe de traduzir apenas a visão provinciana de um simples auxiliar de arbitragem. Naquele domingo de fevereiro, porém, mais de dez mil pessoas compareceram ao estádio da Ilha do Retiro para prestigiar o clássico e saudar o ídolo. Surpreendendo a crônica especializada, os atletas do quadro “jovem e imaturo” do Náutico venceram o conjunto mais experiente do Sport pelo placar de 2 a 1.

Não obstante a vitória contra o rival, a equipe do alvirrubro não lograria se afirmar no transcorrer da competição, oscilando ao longo das rodadas sem consolidar um padrão de jogo. As críticas concentravam-se, principalmente, nos “problemas do ataque” e para solucioná-los aguardava-se ansiosamente pela entrada de Allan Cole. No princípio de março, finalmente, a documentação foi colocada em ordem e ele estava liberado para atuar contra o América, o Campeão do Centenário, tradicional agremiação do Recife, imersa, porém, em um longo processo de decadência. Agendado para o domingo, o encontro contra o alviverde oferecia uma “grande atração” para os torcedores do alvirrubro.

Todavia, contrariando as expectativas, a reestreia do atacante jamaicano deixaria um gosto amargo de frustração, a começar pelo público que afluíra ao estádio dos Aflitos, apenas quatro mil e quinhentos espectadores. Dentro de campo, embora o Náutico tenha ratificado a condição de favorito, impondo-se ao adversário pela contagem de 3 a 0, a sensação do jogo acabaria sendo Edvaldo, um “ilustre desconhecido” que saíra do banco de reservas, no segundo tempo, para tirar o placar do zero e abrir o caminho da vitória, assinalando dois dos três gols marcados pela equipe. A descrição do encontro feita pelo jornalista Adonias de Moura, do Diário de Pernambuco, procurava realçar os lances em que Allan Cole se envolvera, fosse imprimindo “um ritmo de velocidade” ao conjunto, fosse tocando na bola “sempre de primeira”, ou, ainda, realizando “lançamentos sensacionais”. As escassas linhas que lhe eram dedicadas reiteravam a “boa qualidade” do jovem jogador, uma promessa que mais cedo ou mais tarde haveria de se realizar[14].

A partida contra o Íbis parecia reunir as condições ideais para proporcionar a Allan Cole uma atuação convincente. No sábado, o alvirrubro enfrentaria uma equipe cuja fragilidade beirava o folclore. Na última rodada, o Pássaro Preto havia sido destroçado pelos Leões na Ilha do Retiro pelo placar de 7 a 0. A situação vivida pela agremiação de Santo Amaro era tão dramática que o treinador Jagunço, antigo arqueiro do alvinegro, teve que entrar em campo contra o Sport para completar a formação do time. Como se não bastasse, os poucos atletas do elenco ameaçavam não atuar contra o Náutico caso o salário de janeiro não fosse pago[15]. Tendo em vista os imensos problemas que envolviam o adversário, a partida permitia aguardar uma nova goleada, com o atacante da Jamaica fartando-se em balançar as redes. De fato, naquela noite de sábado, o Náutico venceria o Íbis sem dificuldade pelo placar de 3 a 0. Mas o reduzido público que se deslocara ao estádio dos Aflitos, mil e quinhentos espectadores, não teria o prazer de comemorar os gols do centroavante afro-caribenho.

Se tivéssemos que assinalar o momento a partir do qual o encantamento criado em torno da figura de Allan Cole começara a se desfazer, seria precisamente o do encontro com o Pássaro Preto. Qual uma ave agourenta, ele pressagiara os problemas que o aguardavam em sua trajetória pelo futebol brasileiro.

Principal responsável pela contratação do forasteiro, Nelson Lucena quebrava a cabeça na busca de uma solução para o problema que começava a afligir a direção do clube. Já para a partida posterior, contra o Santo Amaro, o treinador promovia uma mudança no posicionamento de Allan Cole, deslocando-o do centro para a ponta esquerda. Em termos didáticos ele explicava aos repórteres que ali o jamaicano poderia “auxiliar o meio de campo”, e, dada a precisão dos passes, “criar situações de gol” para os demais atacantes[16]. Com efeito, a imprensa não se cansava de elogiar os “passes matemáticos de Allan Cole”[17]. Mas eles não eram suficientes para justificar a equação financeira montada pelo clube para trazê-lo ao Recife. Depois de superar o Santo Amaro pelo escore mínimo, o Náutico preparava-se para o novo confronto com o Sport, no domingo, desta feita no estádio dos Aflitos. Desde a sexta-feira à noite o elenco alvirrubro se achava concentrado no casarão da Rua de Santo Elias.

O Leão da Ilha, àquela altura, “não tinha nada a perder”, enquanto o Náutico possuía uma diminuta chance de alcançar o Santa Cruz, líder da competição. O gol olímpico de Edmílson, entretanto, deitava por terra as pretensões do alvirrubro. Pior ainda, a derrota por 1 a 0 aumentava o questionamento acerca do desempenho de Allan Cole. De fato, com mais uma atuação apagada, o centroavante jamaicano, improvisado na ponta-esquerda, acabou substituído no segundo tempo, deixando o gramado sob as vaias da torcida do Sport e sob as palmas da torcida do Náutico[18]. As mudanças introduzidas por Nelson Lucena, afinal de contas, não surtiram o efeito esperado. O jornalista esportivo Lenivaldo Aragão alinhavava os desacertos cometidos pelo treinador:

Se tirar Allan Cole do centro do ataque, isto é, das ações contra os zagueiros limpadores de área, já foi um erro (porque o lógico seria contar com um atleta que chuta com ambos os pés e que sobe para cabecear, inclusive com altura), deixando para Edvaldo a missão de travar a batalha na base do corpo a corpo, [função para a qual] o jamaicano não parece servir, o pior foi lançar Elói para as jogadas de área.[19]

Sem entrarmos no mérito da análise tática da partida, importa-nos realçar no relato do Diário de Pernambuco um dado recorrente na percepção da imprensa local a respeito do atacante jamaicano. Se ela de modo geral lhe reconhecia a qualidade técnica no manejo com a bola, por outro lado, o criticava pela ausência de combatividade física, isto é, pela recusa em travar dentro da área a necessária “batalha” do corpo a corpo com os zagueiros adversários. O problema, obviamente, não se esgotava na falta de valentia que lhe era atribuída pela crônica esportiva. Sem ter o entrosamento necessário com uma equipe que se encontrava ela própria em formação, carecendo do tempo imprescindível para se adaptar ao futebol local, e enfrentando as dificuldades naturais de aclimatação à cultura brasileira, em especial, na configuração peculiar que esta assumia em Pernambuco, Allan Cole se convertia cada vez mais em uma personagem deslocada dentro das quatro linhas.

Allan Cole assina contrato com o Náutico.

As águas de março mal haviam fechado o verão e o ídolo do Caribe já tinha consumido boa parte do prestígio com o qual aterrissara no Aeroporto Internacional dos Guararapes. Urgia dar uma resposta o quanto antes aos críticos. O clássico contra o Santa Cruz, nesse sentido, afigurava-se como uma oportunidade única para dar a volta por cima. O “Clube das Multidões” estava invicto e a um passo de conquistar o segundo turno, depois de sagrar-se campeão do primeiro turno. Uma atuação convincente contra a principal esquadra da competição poderia restituir ao forasteiro boa parte do prestígio perdido nos últimos jogos. Mas não constituía tarefa fácil enfrentar Givanildo, Luciano, Ramon e Cia. E, de fato, na quarta-feira à noite, no estádio dos Aflitos, perante um público diminuto de cinco mil torcedores, os tricolores não deram chance ao azar, impondo-se pelo placar de 3 a 0.

O Diário de Pernambuco já não escondia mais a decepção com o atacante jamaicano, cuja contratação havia despertado inicialmente tamanho entusiasmo. A cobertura do jornal assinalava que ele teve, no clássico, “uma ou outra jogada pessoal, sem, contudo, render para o conjunto”[20]. Enquanto os corais, sob a direção do experiente Evaristo de Macedo, partiam decididos “rumo ao tetracampeonato”; os timbus amargavam a decepção com um trabalho de reformulação que parecia ter regressado à estaca zero, ponto em que o emprego do jovem Nelson Lucena começava a vacilar. Ciente disso, ele não hesitava em promover novas e mais radicais mudanças a fim de salvar o emprego. Para o jogo contra o Central, de Caruaru, face à “fraca produção do ataque”, ele optava por colocar Allan Cole na suplência.

A reviravolta do quadro era estonteante. Em um curto espaço de tempo, o jovem atacante saíra da condição de “grande atração” para ocupar a posição de “regra três”[21]. Bastaram cinco jogos para consumir o capital simbólico que ele trouxera da Jamaica. A seção de esportes do Diário de Pernambuco buscava explicações para a reversão das expectativas. Discutia-se se ele devia ser escalado como apoiador, atuar enfiado entre os zagueiros ou deslocado na ponta-esquerda. Allan Cole, por sua vez, empenhava-se em esclarecer aos jornalistas o modo exato como estava habituado a jogar na ilha do Caribe: “Lá, jogava entre o meio-campo e o ataque, como uma espécie de líbero avançado”[22]. Uma explicação vaga que ao invés de dirimir as dúvidas tornava-as ainda mais angustiantes. Interpelado pela imprensa, Allan Cole realizava uma autocrítica pública: “Tento fazer gols ou dar passes, mas reconheço que não tenho rendido o que posso”. O Diário de Pernambuco arvorava-se a condição de porta-voz das arquibancadas para transmitir ao estrangeiro a impressão dos Aflitos: “A torcida se queixa que você não entra na briga, não disputa a bola”. A resposta do atleta rastafári continha uma justificativa e formulava um compromisso:

Não acredito muito no corpo a corpo, pois acho que o toque rápido ainda é a melhor fórmula para ganhar o combate com o adversário. Mas tentarei entrar no corpo a corpo, para satisfazer a torcida.[23]

O trecho acima, decerto, mais do que traduzir fielmente as declarações de Allan Cole, expressava a síntese elaborada pelo setorista do Diário de Pernambuco. Conquanto o jogador estivesse “sempre acompanhado de um dicionário inglês-português”, consultado no tempo ocioso da concentração, a língua permanecia um empecilho à comunicação intercultural. Além disso, devemos levar em consideração as inevitáveis distorções introduzidas pelo próprio repórter na interlocução mantida com o atleta. Feitas as ressalvas, porém, temos a impressão de que a reportagem tocava no âmago da questão. Com efeito, em um universo saturado de valores masculinos, imersa na cultura da virilidade, faltava a Allan Cole, segundo os críticos, o essencial nas disposições consideradas imprescindíveis à afirmação de qualquer atleta profissional, a saber: a hombridade[24].

Enquanto o forasteiro se defendia das farpas, argumentando que na Jamaica “trocava passes” com os companheiros, “quase sempre de primeira”, até penetrar na área adversária; a imprensa local, em contrapartida, o acusava de subtrair-se da “briga” pela bola, de esquivar-se do “corpo a corpo” com o zagueiro, denotando um comportamento incompatível com as exigências consideradas intrínsecas ao ofício. O desacordo não poderia ser maior. A divergência, no entanto, constitui um precioso indicador dos descaminhos que o futebol brasileiro começava a trilhar, sobrepondo, à habilidade técnica, a força física, conferindo primazia, não à linha de passe, mas ao combate nas trincheiras. Com efeito, as consequências nefastas do modelo da caserna afloravam na valorização do zagueiro limpador de área, na veneração do volante destruidor de jogadas, na exaltação do atleta cumpridor de ordens. 

Mais uma vez, impõe-se aqui uma importante ressalva. De fato, não temos a pretensão de retratar o atacante jamaicano como um craque incompreendido que só não fez sucesso nos gramados de Pernambuco por causa dos mecanismos disciplinares acionados no quadro da militarização. Indubitavelmente, existiam dificuldades relacionadas ao jogo de Allan Cole que o impediam de se afirmar no profissionalismo. Para os objetivos do presente trabalho, contudo, interessa-nos enfocar o debate que sua presença entre nós suscitava a respeito das possibilidades de ser atleta, dos limites conceituais da atividade esportiva, dos valores adotados no campo de jogo. Sendo assim, retomemos mais uma vez o fio da narrativa.         

Allan Cole tinha como apelido “Skill”.

Na última rodada do segundo turno, como já salientado, Allan Cole foi para o banco de reservas. O Náutico deveria enfrentar o Central, no domingo, apenas para cumprir tabela. O clima de desolação que cingia o estádio dos Aflitos refletia-se nas arquibancadas vazias, pouco mais de mil torcedores presentes. Dentro das quatro linhas, a situação não era mais animadora, como demonstrava o placar de 0 a 0 do primeiro tempo. A segunda etapa, porém, trouxe algumas emoções inesperadas a partir do gol assinalado pelo Central. De fato, na sequência do jogo, o treinador Nelson Lucena colocou em campo Allan Cole, e o jamaicano, com um “passe matemático”, iniciou a jogada do gol de empate, restituindo esperanças na recuperação de um atleta que desembarcara no Recife cercado de imensa expectativa. Mas quando o atacante jamaicano parecia ter despertado do sono dogmático que o mantivera aprisionado à concepção “ultrapassada” do futebol de toque de bola, eis que uma distensão muscular na coxa esquerda, qual uma fisgada do destino, não só o retirava da partida como o condenava à inatividade por um prazo mínimo de quinze dias[25].

A situação do Náutico não poderia ser mais desalentadora. Um ídolo contundido e questionado; uma “torcida inconformada” que começava a virar as costas para o time; uma diretoria acuada pelos resultados adversos de uma campanha pífia. A irrupção da crise permitia prever um desfecho rotineiro. Depois do empate de 2 a 2 com o Central, Nelson Lucena foi demitido[26]. Responsável direto pela contratação de Allan Cole, principal avalista das “qualidades” do jogador, ele saía sem ter-lhe encontrado uma posição na equipe e, pior ainda, sem haver justificado o dispêndio financeiro feita pela diretoria para tê-lo no elenco. Para se defender das críticas que lhe questionavam o trabalho, Nelson Lucena escancarava os problemas internos que havia enfrentado durante sua permanência no cargo: “Salários atrasados, muitos jogadores recebendo apenas vales há vários meses”, não obstante tratar-se, segundo afirmava, da equipe mais “barata” que a agremiação tinha armado nos “últimos anos”[27]. A situação era tão dramática que “muitas vezes”, aduzia, “tive que emprestar dinheiro aos atletas para que eles saldassem compromissos inadiáveis”, porque o clube alegava que “não podia fazer nada”.

Foi em meio a esse tiroteio verbal que um velho conhecido da comunidade alvirrubra chegaria ao Recife com a incumbência de apaziguar os ânimos, reorganizar a equipe e restituir confiança aos adeptos do alvirrubro, conforme veremos no próximo artigo.


[1] Cf. “Depende da torcida o regresso de Allan Cole”, Diário de Pernambuco, 23 de janeiro de 1972. O presente artigo é continuação do artigo anterior, intitulado: “O Atleta de Jah”, publicado no mês de fevereiro.

[2] O jornalista João Saldanha empregava a expressão para criticar a situação dos jogadores contratados “apenas pela duração do campeonato”, condenados em seguida ao desemprego. “Alguns param de jogar, outros ficam parados e encostados em qualquer parte. Como um ´boia-fria`”. Cf. “Boia-Fria no Futebol”, Jornal do Brasil, 9 de março de 1983.

[3] Bourdieu, Pierre (1983) A “juventude” é apenas uma palavra. In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero. Cf. “O homem de 30”, revista Placar, nº 57, 16 de abril de 1971. 

[4] Cf. “Allan Cole, o jamaicano que foi ídolo apenas durante uma semana”, Diário de Pernambuco, 1 de janeiro de 1972. Cogitava-se de utilizá-lo como a “grande arma” na “promoção” do novo estádio.

[5] Cf. “Depende da torcida o regresso de Allan Cole”, Diário de Pernambuco, 23 de janeiro de 1972.

[6] Cf. “Paulo César: o dinheiro está pingando”, revista Placar, nº 86, 5 de novembro de 1971.

[7] Cf. “Nosso futebol visto pelo torcedor”, Diário de Pernambuco, 18 de janeiro de 1972.

[8] Cf. “Um pobre futebol rico”, Diário de Pernambuco, 4 de janeiro de 1972.

[9] Cf. “Torcedor da geral volta a pagar 3 cruzeiros”, Diário de Pernambuco, 29 de janeiro de 1972. A competição estadual reunia então oito clubes: Santa Cruz, Sport, Náutico, Ferroviário, América, Central, Santo Amaro e Íbis.

[10] Cf. “Joel e Allan foram as figuras principais do treino apronto”, Diário de Pernambuco, 19 de fevereiro de 1972.

[11] Cf. “Diminui o número de tipos exóticos nas ruas da cidade”, Diário de Pernambuco, 17 de fevereiro de 1972.

[12] Cf. “Allan Cole volta e é recebido com alegria”, Diário de Pernambuco, 18 de fevereiro de 1972.

[13] Cf. “No pé da conversa”, coluna do Diário de Pernambuco, 22 de fevereiro de 1972.

[14] Cf. “Edvaldo entrou e resolveu tudo”, Diário de Pernambuco, 7 de março de 1972.

[15] Cf. “Jogadores ameaçam não atuar contra o Náutico”, Diário de Pernambuco, 7 de março de 1972.

[16] Cf. “Allan Cole vai de ponta-esquerda para acabar com os santamarinos”, Diário de Pernambuco, 15 de março de 1972.

[17] Cf. “Torcida confia na tabela Cole e Edvaldo”, Diário de Pernambuco, 11 de março de 1972.

[18] Cf. “No pé da conversa”, coluna de Lenivaldo Aragão, Diário de Pernambuco, 21 de março de 1972.

[19] Cf. “No pé da conversa”, coluna de Lenivaldo Aragão, Diário de Pernambuco, 21 de março de 1972.

[20] Cf. “Gol de saída facilita a vitória do Santa Cruz”, Diário de Pernambuco, 23 de março de 1972.

[21] Cf. “Tico ao lado de Edvaldo é uma nova fórmula dos alvirrubros para o ataque”, Diário de Pernambuco, 25 de março de 1972.

[22] Cf. “Allan Cole não se mostra surpreso ante a convocação para a Concacaf”, Diário de Pernambuco, 26 de março de 1972.

[23] Cf. “Allan Cole não se mostra surpreso ante a convocação para a Concacaf”, Diário de Pernambuco, 26 de março de 1972.

[24] Damo, Arlei Sander (2007) Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, HUCITEC, p.50.

[25] Cf. “Dé e Jucélio culpados dos tentos”, Diário de Pernambuco, 28 de março de 1972.

[26] Cf. “Lucena se despede do elenco após empate com centralinos”, Diário de Pernambuco, 28 de março de 1972.

[27] Cf. “Nelson Lucena explica a razão de sua breve saída do clube da Rosa e Silva”, Diário de Pernambuco, 29 de março de 1972.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Ave agourenta. Ludopédio, São Paulo, v. 117, n. 9, 2019.
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