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Baixada Melancólica. Sem melancolia em Santa Maria

Amantes do futebol: quem aqui já foi ver um jogo às 11h da manhã de domingo? Acredito que, nos últimos anos, muitos de nós enfrentamos este inusitado horário para acompanhar nossos times. Minha estreia em um jogo desses foi em um Palmeiras x Botafogo de Ribeirão Preto, em 2015. Confesso que não me agrada. À época, discutia-se muito sobre a questão do horário. Diziam até que era para vender o jogo para transmissão na China. Fato é que esses jogos no estádio do Palmeiras rendem sempre bons públicos.

Estádio Presidente Vargas
Estádio Presidente Vargas: a Baixada Melancólica. Foto: João Malaia.

Neste domingo, fui mais uma vez em um jogo às 11h da manhã. Mas não para ver o Palmeiras. Como agora sou professor da Universidade Federal de Santa Maria (e pretendo ser pelo resto da minha vida), fui fazer minha estreia no Estádio Presidente Vargas, a “Baixada Melancólica”. Fui acompanhar o Esporte Clube Internacional de Santa Maria, o Inter-SM, ou o Interzinho, como a equipe é carinhosamente chamada por aqui. O jogo foi às 11h pois neste domingo teve Grêmio x Inter pelas quartas de final do Gauchão, às 16h. Com medo de marcar na mesma hora e o estádio ficar vazio, a diretoria passou o jogo para domingo de manhã.

Arquibancada: 20 reais. Meia é 10.
Arquibancada: 20 reais. Meia é 10. Foto: João Malaia.

A partida foi Inter-SM x Futebol Clube Santa Cruz (de Santa Cruz do Sul). O jogo era válido pela terceira rodada da Divisão de Acesso do Campeonato Gaúcho (a segunda divisão). Muitos de vocês não devem nem imaginar que no verão Santa Maria é uma cidade de um calor abafado praticamente insuportável. Calor daqueles de testar qualquer torcedor dos mais fanáticos. Principalmente se o jogo acontecer às 11h da manhã. E com o Interzinho vindo de duas derrotas nas duas primeiras partidas.

Mas para quem ama a arquibancada, como este que vos escreve, situações como esta só servem para que tenhamos a certeza de que é disso mesmo que a gente gosta. Da bancada. Lá fui eu, sozinho, ver o Interzinho enfrentar o Santa Cruz, com um calor de 35 graus.

Cheguei perto da hora do início do jogo. Passei na bilheteria, paguei 20 reais por um ingresso de arquibancada e adentrei o estádio. E quando entrei, tive uma das melhores sensações de sempre: nada de arena, nada de cobertura e muito menos cadeiras ou lugares marcados. Muito pelo contrário.

Alambrado: lugar de memória da bancada popular. Foto: João Malaia.

Alambrado colado na lateral do campo, concreto e torcida organizada (a Fanáticos da Baixada) atrás de um dos gols fazendo barulho. Estava em casa. Os únicos lugares à sombra no estádio ficavam do outro lado, nas cadeiras numeradas. Eu poderia descrever cada canto do estádio e todas as figuras inenarráveis que pude ter o prazer de ver. Mas vou ficar com a descrição resumida apenas de algumas cenas das que mais me chamaram à atenção: o alambrado que separa a arquibancada do campo, o bandeirinha que atuou colado neste alambrado, a torcida organizada Fanáticos da Baixada e o mascote do Inter-SM.

Ô Bandeirinha...
Ô Bandeirinha… Foto: João Malaia.

O alambrado que divide a arquibancada do campo está já todo esgarçado. Os losangos do alambrado já viraram círculos, quadrados ou qualquer outra forma. O pessoal se pendura ali para gritar gol, chuta o alambrado quando não gosta de algo, ou se apoia nele para ver o jogo. Mas uma das vítimas que mais sofre com a torcida no alambrado é o bandeirinha.

Se a pessoa tem que gostar muito de futebol para estar ali naquela situação de calor impressionante, o que podemos dizer do auxiliar do árbitro? Está no mesmo calor, mas correndo, suando e com torcedores dos sete aos 70 berrando na orelha dele o jogo todo. Cerca de dois metros de distância separavam o bandeirinha da torcida. Os torcedores chegam a ficar correndo atrás do bandeirinha pela lateral do campo. Mas quem não está muito preocupado com o alambrado, ou com as ofensas a serem gritadas quase que no ouvido do bandeirinha são os membros da torcida organizada.

Fanáticos da Baixada: sem melancolia. Foto: João Malaia.

A Fanáticos da Baixada fica atrás de um dos gols. Se já estava difícil para qualquer um aguentar aquele sol e aquela temperatura, o que podemos dizer da torcida organizada, que não parou de cantar nem por um minuto? Cantou, apoiou, gritou, comemorou, sem parar de pular. Eram muitos? Não. Mas os que estavam ali atuaram como se fossem milhares. Quem frequenta a bancada sabe: pular e cantar no meio de 5 mil é uma coisa. No meio de 50, é outra. E quem estava no estádio os ouviu durante os 90 minutos. Torcendo.

Outra cena que me chamou a atenção, comum para quem acompanha o Inter-SM. No intervalo, um rapaz vestido com uma fantasia de dinossauro, feita de espuma, passou por todo o campo, acenando e brincando com os torcedores. Fui saber que era o “Dino”, mascote do clube. Uma homenagem à cidade que tem um dos mais importantes sítios paleontológicos do mundo. Foi aqui em Santa Maria que se encontrou o Estauricossauro (Staurikosaurus pricei), o primeiro dinossauro do período triássico achado no Brasil. O “Dino” merece uma menção. Ninguém passou mais calor na Baixada Melancólica do que ele, preso dentro daquela fantasia. Merece nosso respeito.

Dino: pré-história em campo
Dino: pré-história em campo. Foto: João Malaia.

Infelizmente, não tenho como relatar qual foi o público presente no estádio. Não há informações na súmula da Federação Gaúcha de Futebol, não há informações no site do Inter-SM, nem em nenhum jornal da cidade ou em qualquer veículo de comunicação que cobriu o jogo. Ao entrar no estádio, meu ingresso foi colhido de minhas mãos e depositado em uma urna, sem que eu ficasse com o nenhum tipo de comprovante, desfalcando minha coleção de ingressos de jogos memoráveis que fui. Uma pena e um desrespeito ao Estatuto do Torcedor. Calculei, por cima, um público entre 800 a 1.300 presentes. E não podia deixar de registrar: havia cinco torcedores do Santa Cruz no estádio.

Alguns já devem estar perguntando: ok… mas e o jogo? O jogo foi apenas um detalhe. O Inter-SM venceu por 2 a 1. Do concreto escaldante da bancada da Baixada Melancólica, fui pé quente na estreia.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Baixada Melancólica. Sem melancolia em Santa Maria. Ludopédio, São Paulo, v. 105, n. 21, 2018.
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