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A beleza da finitude e o retorno do herói

Gabriel Canuto Nogueira da Gama 2 de março de 2017

Certifico que na noite de 23 de fevereiro de 2017, entre 18h e 19h (precisões de data à parte), horário local de Londres, o estimado Ranieri Leicester City Football Club, sexo indefinido, cor indefinida, faleceu com 1 ano, 7 meses e 10 dias de vida, nas dependências do LCFC Training Complex, centro de treinamento do Leicester City, na homônima cidade inglesa, situada no condado de Leicestershire, em decorrência da Síndrome dos Vencedores, doença com esporádicos casos médicos registrados e que se manifesta exclusivamente em treinadores recém-campeões. O sepultamento ocorreu horas depois no próprio website oficial do clube da cidade, local onde o falecido exerceu o seu ofício durante toda a vida.

Vinte e três jogadores de futebol dos Foxes, nove dirigentes dos Blues, dois funcionários do King Power Stadium e outros dois legistas atestaram o óbito do falecido, firmado pelo senhor presidente Vichai Srivaddhanaprabha. Ranieri Leicester City Football Club não separou bens a inventariar, todavia, deixou um legado de irrefutável magnificência para toda a comunidade de 330 mil habitantes a noroeste de Londres: o inédito título da liga nacional de futebol mais competitiva do mundo.

E foi mais ou menos assim. Sala discreta, dezena de poltronas ocupadas, papéis espalhados pela mesa. Sem delongas, após algumas assinaturas aqui e outras acolá, tudo resolvido. Pendências burocráticas finalizadas e caixão fechado. O fim de uma era. O fim de um sonho epifânico, sem precedentes catárticos, e regozijado por milhões e milhões de fãs do futebol por meses a fio. O véu do encantamento desnudado. A força do sobrenatural, enfim, derrotada por alguns parágrafos contidos em um breve comunicado formal cibernético.

Ranieri se despede com louvor. Com alma de herói e mártir de um povo. O contexto atual torna-se irrelevante aos olhos da grandeza do que fez. Um Odisseu abatido pelas intempéries naturais que o tempo acomete. O fim trágico era o último elemento que faltava para o desfecho desse mito contemporâneo. A jornada do herói chega ao seu estágio final.

Ranieri partiu aos 36 e suas peripécias duraram 19 anos até o derradeiro triunfo na Batalha de Segunda, em 2 de maio de 2016, entre as tropas rivais do Chelsea e do Tottenham. Agora, o herói retorna à casa. Após Prometeu, Ulisses, Buda, Jesus Cristo, é a vez de Claudio Ranieri cumprir o ciclo de sua jornada. Se haverá mais aventuras, não sabemos. O que sabemos é que as batalhas foram vencidas, a glória alcançada e como um autêntico descendente ítalo, o espírito de romano está em seu sangue. Com as armas em punho, está preparado para qualquer perigo.

Ranieri deixa o Leicester nove meses após realizar o que para muitos foi o maior feito da história do futebol mundial. Em um ano, o treinador tirou o outrora modesto time do interior inglês da última posição da Premier League e um virtual rebaixamento à segunda divisão para o inacreditável título de campeão na temporada seguinte. Com muito menos tradição histórica no esporte e sequer poderio financeiro, comercial e técnico frente a rivais bilionários como Manchester United, Manchester City, Chelsea, Liverpool e Arsenal, Ranieri e seus comandados foram verdadeiros espartanos. Sem arrojos táticos ou brilhantismo técnico de encher os olhos, bateram todos os concorrentes fazendo apenas o simples em campo e se sagraram campeões pela primeira vez na história, contrariando todas as expectativas da imprensa, dos torcedores de outros clubes e até mesmo entre os próprios fãs do clube.

ranieri
Grafite de Ranieri em muro da cidade de Leicester. Foto: timnutt (CC BY-NC-SA 2.0).

Agora, meses depois, os torcedores presenciam a despedida de seu guerreiro. O baixo rendimento na atual temporada pesou contra o técnico italiano, que teve a sua demissão anunciada nessa quinta-feira. Mesmo com o mau desempenho dos Foxes no campeonato inglês – estão na 17ª posição, após 25 rodadas, e brigam contra o rebaixamento – a decisão pegou muitos de surpresa, como o ídolo inglês Gary Lineker. Sem poupar críticas à decisão, ele se revoltou pelo Twitter: “Claudio Ranieri? Sacked? Really? Dilly Ding Dilly Game’s Gone” / “After all that Claudio Ranieri has done for Leicester City, to sack him now is inexplicable, unforgivable and gut-wrenchingly sad”¹.

O Leicester não vem conseguindo repetir a consistência defensiva que os premiaram como a menos vazada do setor, em números ao lado do Tottenham, da temporada passada. No ataque, o time sofre com a pouca inspiração das principais estrelas, Mahrez e Vardy, principalmente o segundo, que chegou a ficar recentemente dois meses sem marcar um gol. Nem mesmo a campanha acima das expectativas na competitiva Champions League – estão na disputa por uma vaga às quartas de final contra o Sevilla – foi suficiente para Ranieri assegurar o cargo. A fase realmente não era boa. Nos últimos dez jogos disputados, os atuais campeões ingleses haviam vencido apenas duas partidas e empatado uma. Sete pontos de trinta possíveis. Mesmo com a sequência de resultados ruins, o saldo de Ranieri à frente do Leicester foi positivo. Em pouco mais de um ano e meio no comando, ele obteve 47 vitórias, 30 empates e 42 derrotas.

Mais do que a frieza dos números e outras estatísticas racionais podem explicar, o curioso caso de Claudio Ranieri foi mais uma prova inconteste de que o futebol é metonímia da vida, pois é plástico, é teatral, é artístico, é catártico. É trágico e é cômico, porque fala da trajetória do herói, do vilão, do que é lutar, persistir, vencer e perder. É o antro das emoções. É o coliseu da contemporaneidade, onde todos externalizam seus sentimentos, seus desejos, suas angústias, seus problemas na vida, através dos gritos na arquibancada. No futebol, portanto, estão presentes todos os elementos possíveis e inimagináveis que tangem o ser humano e suas relações em sociedade. Até mesmo o imponderável está presente. A força rodrigueana do Sobrenatural de Almeida.

O futebol é belo, sobretudo, porque representa os ciclos da vida. Representa a inexorável finitude de nossa existência. E Ranieri, assim como inúmeros outros jogadores, treinadores e clubes que passaram na história do futebol, deixou uma marca indelével nesse esporte. Assim como familiares nos deixam, amores se dissolvem, amizades se interrompem, sonhos se desvanecem, o futebol e suas estórias também são reféns do Tempo, a única dimensão que podemos designar como eterna.

Já dizia o mestre Drummond no poema “Memória”:

“(…) As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão”.

O que ficará desta finda versão de Ranieri será o seu olhar compenetrado, a sua vibração contida, as suas lágrimas sinceras, o seu sorriso de campeão.

Quanto ao futuro do Leicester, o que acontecerá até o final da temporada é uma incógnita. Seja com requintes dramáticos ou não, as circunstâncias atuais do time ainda são pequenas perante à experiência que viveram. Durante um ano, sete meses e dez dias, a cidade de Leicester viveu a eternidade do presente. Eles viveram a mais genuína felicidade. Aquela vontade intrínseca de se viver por várias e várias vezes o mesmo momento. Um presente que se recusa a virar passado ou ser substituído por outro. O eterno-retorno nietzscheano em sua mais autêntica forma. Um instante que superou o Tempo, parou a ampulheta da existência e se transformou em eternidade

¹Tradução em português: “Claudio Ranieri? Demitido? Sério?” / “Após tudo que Claudio Ranieri fez pelo Leicester City, demiti-lo agora é inexplicável, imperdoável e incrivelmente triste.”

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Canuto Nogueira da Gama

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG (Teoria da Literatura e Literatura Comparada), Graduado em Bacharelado no curso de Letras da PUC-MG. Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC-MG.Foi editor de seção da revista FuLiA / UFMG, periódico quadrimestral da Faculdade de Letras da UFMG, e membro do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.Tem ampla experiência na área de jornalismo esportivo. Foi co-fundador e editor-chefe do Observatório do Esporte, portal de notícias premiado em 2º lugar na versão online do programa "O aprendiz" da Rede Record de Televisão, em 2011. Exerceu a função de repórter do Grupo Estadão na Copa do Mundo de 2014 como correspondente em Belo Horizonte-MG. Tem experiência como editor de texto no programa "Globo Esporte", da TV Globo Minas.É autor dos livros de poesia: "Nós Dois: mais cedo que antes, mais tarde que depois" e "Para Não Desistir".

Como citar

GAMA, Gabriel Canuto Nogueira da. A beleza da finitude e o retorno do herói. Ludopédio, São Paulo, v. 93, n. 2, 2017.
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