“Um jogador” é uma obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski, publicada pela primeira vez em 1867. Escrito em apenas 26 dias, para cumprir uma obrigação contratual com seu editor, conta a história de Alexei Ivanovich, um preceptor que chega a Roletemburgo, espécie de paraíso dos jogos de azar na Alemanha, como parte do séquito de um general. Para além da história do protagonista, o livro retrata o cotidiano de uma decadente aristocracia russa, que se esforça para manter as aparências, enquanto sonha com dias melhores, contando com a sorte na roleta ou com a herança de um parente abastado.

O futebol brasileiro está tomado pelo espírito de Roletemburgo. Os gramados nem tão verdes assim, maltratados pelo calendário insano que espremeu a temporada em pouco menos de 10 meses, parece ter se transformado no pano verde das mesas de um cassino. Dos 20 clubes da série A, somente Cuiabá e Juventude não são (ainda) patrocinados por casas de apostas virtuais. Nas transmissões televisivas ou nas placas publicitárias ao redor do gramado, outros três ou quatro sites são anunciados. Nas redes sociais, pululam páginas e youtubers especialistas (“traders”), dispostos a orientar os iniciantes no mundo das apostas (“bets”), e no seu vocabulário anglófilo (green, red, lay, back, odd, stake, over, all in, etc).

Apostas esportivas não são novidades no Brasil. Victor Melo em seu estudo sobre os primórdios do esporte no Rio de Janeiro no final do século XIX, já aponta o papel das apostas em sua popularização, principalmente o turfe e o remo. Georgino Souza Neto destaca a participação das apostas no despertar da paixão pelo futebol entre os belorizontinos, nas primeiras décadas do século XX. Cléber Dias e Eliza Souza também encontram apostas envolvendo provas ciclísticas, no mesmo período, em Manaus. Entretanto, tais práticas logo foram proibidas ou fortemente reguladas, por não coadunarem com certa “ética do trabalho”, vista como necessária ao desenvolvimento capitalista no Brasil. Abolida a escravidão, as elites nacionais precisavam criar outros mecanismos de coerção, que obrigasse as classes populares a se sujeitarem à disciplina do trabalho assalariado. Coibir outras fontes de renda, que não o trabalho, fazia parte dessa estratégia. 

Em 1970, porém, as apostas esportivas voltaram a fazer sucesso de forma legalizada. A loteria esportiva, criada pelo ditador Artur Costa e Silva, supostamente como parte de um plano de incentivo ao esporte nacional, premiava semanalmente o acertador do resultado de 13 partidas. A revista Placar, semanário esportivo da Editora Abril, também criada em 1970, inovou trazendo dicas e informações sobre os jogos que faziam parte do concurso (muitas vezes de campeonatos distantes, quase inacessíveis em uma época pré-internet). Curiosamente, a própria Placar foi responsável por ferir de morte a loteria, quando denunciou em 1982 um esquema de manipulação de resultados que envolvia jogadores, técnicos e dirigentes. Com a credibilidade abalada, a loteria esportiva nunca mais foi a mesma, e a revista, que recebeu prêmios e processos judiciais pela reportagem, perdeu um de seus maiores atrativos.

Mas é com a internet que se inaugura, sem dúvida alguma, uma nova era das apostas esportivas no Brasil. Primeiramente por uma brecha legal. Hospedados no exterior, dezenas de sites do gênero exploram o mercado brasileiro sem se submeterem às restrições da legislação local. Segundo por tornar possível as apostas “in game”, ou seja, no decorrer do jogo, em tempo real. Com isso, além de indicar apenas o vencedor, ou o placar final, o apostador pode tentar sua sorte em um mercado ainda mais variado, com dezenas de ofertas dentro de uma mesma partida, que envolve número de cartões, momento dos gols, escanteios, resultado parcial, etc. E isso em centenas de jogos por dia, em um catálogo que, embora varie de site para site, geralmente vai das principais ligas do mundo até obscuros campeonatos amadores, em dezenas de países. 

Não é difícil imaginar que tanta facilidade também seja aproveitada de outro modo. Com a mundialização do jogo, e a consequente multiplicação dos valores envolvidos, se tornaram também internacionais e mais complexos os esquemas de corrupção que o envolvem. Brett Forrest, em “Jogo Roubado”, segue o rastro de Wilson Perumal, operador de um esquema internacional de resultados, com relações com o crime organizado de Cingapura, China e Rússia, bem como dirigentes, árbitros e jogadores em dezenas de países. Considerando a atratividade do negócio, a dificuldade para investigá-lo, bem como a pouca disposição da FIFA para lidar com o problema, podemos supor que outros esquemas semelhantes, ou bem mais sofisticados, certamente seguem em operação.

Por fim, cabe uma reflexão sobre o que torna as apostas tão atrativas em nossos dias. Em uma sociedade onde a opulência jamais vista convive lado a lado com a miséria absoluta, o antigo discurso da “ética do trabalho” já não se sustenta. No capitalismo atual, direitos básicos são vistos como privilégios. Cada vez há menos empregos, e os empregos que restam são cada vez mais precarizados, incapazes de garantir uma vida digna, que dirá sonhos de prosperidade. Sem perspectivas reais, as novas gerações se tornam alvo fácil para discursos mágicos, ilusórios, que prometem uma saída a partir das apostas, do empreendedorismo, ou da reprogramação mental. Estranhamente, Roletemburgo, imaginada por Dostoiévski no século XIX, parece cada vez mais atual.   

Apostas
Apostas em tempo real. Foto: Arquivo pessoal

 

Referências bibliográficas

DIAS, Cleber; SOUZA, Eliza Salgado de. Ciclismo e comércio em Manaus, 1898-1907. Revista de História Regional, vol. 25, n. 2, p. 459-487, 2020.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Um jogador. São Paulo: Editora 34, 2004.

FORREST, Brett. Jogo Roubado. São Paulo: Paralela, 2015.

MELO, Victor Andrade. Cidade sportiva: primórdios do esporte no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Relume Dumará: FAPERJ, 2001.

SOUZA NETO, Georgino Jorge de. A invenção do torcer em Belo Horizonte: da assistência ao pertencimento clubístico (1904-1930). Dissertação (Mestrado em Estudos do Lazer), Belo Horizonte: PPGIEL/UFMG, 2010.

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Renato Saldanha

Professor da UFPE (CAV/UFPE), formando em Educação Física pela UFV, Doutor em Estudos do Lazer pela UFMG.Membro do GeFUT/UFMG (Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas) e coordenador do GEFFuT-PE (Grupo de Estudos sobre Festas, Futebol e Torcidas - Pernambuco)

Verônica Toledo Ferreira de Carvalho

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer (EEFFTO/UFMG).Membra do grupo de pesquisa FuLiA/UFMG e do GEFFUT-PE.

Como citar

SALDANHA, Renato Machado; CARVALHO, Verônica Toledo Ferreira de. Bet(Unfair): futebol e apostas no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 42, 2021.
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