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Blaugrana mecânico: a (r)evolução tática do FC Barcelona

Victor de Leonardo Figols 28 de novembro de 2012

O futebol apresentado pelo FC Barcelona de Josep Guardiola durante os anos de 2009 a 2012 é inquestionavelmente reconhecido como espetacular. O jogo coletivo de posse de bola e de movimentação, além da objetividade ofensiva, mostrou ao mundo um novo jeito de jogar futebol. Taticamente o clube catalão apresentou uma revolução, ao ponto de alguns especialistas compararem com a Seleção da Holanda de 1974, o Carrossel Holandês. De fato, as origens do futebol apresentado pelo FC Barcelona nos últimos anos tem sua origem na Holanda, todavia esse estilo de jogo data da década de 60 e durante os anos sofreu alterações pelos treinadores que aplicaram esse estilo.

Comemoração da conquista do Mundial de Clubes da FIFA (2011). Foto: Christopher Johnson – Flickr.

Se pensarmos esse estilo de jogo historicamente, ou ainda se fizermos uma análise das origens desse estilo podemos retornar a segunda metade da década de 1960, no Amsterdamsche Football Club Ajax. Em menos de uma década o Ajax apresentou um futebol inovador, o jogo coletivo com objetividade ofensiva e posse de bola levou ao clube holandês conquistar não só títulos na Holanda como na Europa, a série vitoriosa do Ajax correspondeu à presença de Rinus Michel, como técnico, e de Johan Cruyff, como jogador.

Em 1965, o técnico Michels assumiu o clube holandês que já contava com o meia-atacante Cruyff, que fora promovido ao time principal um ano antes. Como jogador, o holandês Rinus Michels defendeu o próprio Ajax de 1946 a 1958, tendo sido campeão holandês em 1947 e 1958. Vale lembrar que nesse período, Michels foi treinado por Jack Reynolds. O também holandês, Reynolds, foi um dos inspiradores do estilo de jogo do Ajax de Michels, na década de 60 e 70.

Durante os seis anos, entre 1965 a 1971, em que Michels foi técnico do Ajax, o clube holandês conquistou quatro Campeonatos Holandeses, os três primeiros de forma consecutiva, três Copas da Holanda, duas de forma seguida e uma Liga dos Campeões da Europa. Para além dos títulos, o futebol apresentado pelo Ajax durante esse período foi visto como inovador.

Em 1971, Rinus Michels deixou o Ajax para ser treinador do FC Barcelona, mas a base vencedora do Ajax, com Cruyff e Neeskens, seguiu ganhando títulos. No período em que Cruyff esteve no Ajax, sem o comando de Michels, o clube holandês conquistou mais dois campeonatos holandeses, em 1971 e 1972 e uma Copa da Holanda, em 1972. Além dos títulos nacionais, no período entre 1971 a 1973 o Ajax conquistou três vezes a Liga dos Campeões da Europa, duas Supercopa da Europa e um título da Copa Intercontinental.

Já no comando do FC Barcelona, Michels só conseguiu implantar seu estilo de jogo em 1974. No ano anterior o Barça havia contratado o jogador Cruyff, do Ajax. O interesse do FC Barcelona no futebol do holandês vem desde 1969. Com Cruyff, que já era considerado um dos melhores jogadores do mundo, o FC Barcelona conseguiu uma série de mais de 25 jogos invicto, mas para o torcedor catalão o mais importante foi à vitória de 5-0 sobre o Real Madrid – em pleno estádio Santiago Bernábeu. O jogo foi considerado a melhor apresentação do time catalão na temporada.

Mais do que uma vitória no campo esportivo, a vitória sobre o Real representava uma vitória política, pelo menos em partes. Vale lembrar que durante o regime de Francisco Franco (1939-1975), o Real Madrid era tido como o clube do regime, e o FC Barcelona representava o separatismo catalão. Para além disso, o FC Barcelona conquistou, depois de 14 anos, o título do Campeonato Espanhol, quebrando a hegemonia do clube da capital espanhola.

O futebol apresentado pelo FC Barcelona no ano de 1974 se assemelhava ao do Ajax, mas guardada as devidas proporções, o futebol do Barça era menos espetacular, mas mantinha as mesmas características, ou seja, o jogo coletivo com objetividade ofensiva e posse de bola. Todavia, o Barça não contava com grandes jogadores como o Ajax da época, o elenco era composto, sobretudo por jogadores espanhóis, sul-americanos de origem espanhola que foram naturalizados, além de Cruyff e Neeskens, que fora contratado em 1974. Deste modo, Cruyff ganhou maior destaque dentro do elenco, sendo considerado o maestro do time. Fora de campo Cruyff se identificou com o clube, e conseguiu associar a sua imagem ao FC Barcelona e a Catalunha.

Durante a campanha vitoriosa de 74, Michels dividiu suas atenções entre a Copa do Mundo, com a Seleção da Holanda e a Copa do Rei da Espanha, com o FC Barcelona. Com Cruyff, a Holanda chegou a final da Copa do Mundo de forma invicta, havia empatado apenas um jogo. A final foi contra a Alemanha Ocidental, que contava com jogadores como Franz Beckenbauer e Gerd Müller. A Holanda perdeu por 2-1, mas o futebol apresentado pelas duas seleções foi visto como um futebol moderno, designado como Futebol Total.

Johan Cruyff na final da Copa do Mundo de 1974. Foto: Rainer Mittelstädt (Bundesarchiv, Bild 183-N0716-0314 / CC-BY-SA) – Wikipedia.

A Seleção Holandesa apresentou um futebol com objetividade ofensiva, com um jogo coletivo de posse de bola e de movimentação. Os jogadores da Holanda não possuíam uma posição dentro de campo bem definida, a movimentação dos jogadores era uma das bases desse time. Essa movimentação rendeu o apelido Carrossel Holandês, outro apelido que a essa seleção recebeu foi de Laranja Mecânicas, fazendo referência a cor da camisa e ao o sistema tático, que remetia a uma engrenagem.

Sem Cruyff, o Barça chegou a final da Copa do Rei, e também foi vice-campeão, perdendo pro Real Madrid. Diferentemente do Ajax, o FC Barcelona com Michels e Cruyff não conseguiu emplacar uma série de vitória. Depois do título de 74, o Barça só conquistou uma Copa do Rei da Espanha e uma Recopa da Europa, entre 1978 e 79. Vale lembrar que Michels voltou ao Ajax na temporada 1975-76, retornando ao Barça em 1976. Em sua segunda passagem pelo Ajax, Michels não foi vitorioso, após retornar ao Barça, conquistou mais dois títulos em 1978 e 1979. Nessa mesma época Michels e Cruyff deixaram o FC Barcelona no final da temporada.

Em 1986, dois anos depois de ter encerrado sua carreira como jogador, Cruyff assumiu o posto de técnico do Ajax. O holandês esteve à frente do Ajax durante dois anos de 1986 a 1988. Como treinador, tentou implantar o futebol vitorioso do qual fez parte, como jogador, nas décadas de 60 e 70. Todavia conquistou apenas três títulos, duas Copas da Holanda e uma Recopa Europeia. É importante ressaltar que Cruyff treinou os jogadores Frank Rijkaard e Van Basten. Estes dois jogadores fizeram parte da Seleção da Holanda campeã da Eurocopa de 1988, a qual era treinada por Rinus Michels, deste modo é possível dizer que tanto Rijkaard como Van Basten conheciam o estilo de jogo de Michels, uma vez que Cruyff o aplicara no Ajax anos antes.

Em 1988, assim como havia feito como jogador, Cruyff trocou a cidade de Amsterdã por Barcelona. Já no FC Barcelona, Cruyff contava com o apoio dos dirigentes e da torcida. O ídolo blaugrana iniciou uma mudança drástica no plantel, promoveu alguns jogadores da base e contratou outros, a contratação de maior destaque foi a de Ronald Koeman, do PSV Eindhoven da Holanda. Cruyff também implantou o sistema tático 3-4-3, e procurou fazer o seu time jogar da mesma maneira que Barça de 74. Como treinador, Cruyff implantou o mesmo estilo de jogo do time principal nas categorias de base, havia feito no Ajax e no clube catalão não foi diferente.

Em sua primeira temporada no Barça, Cruyff conquistou a Recopa da Europa de 88, já no ano seguinte a Copa do Rei da Espanha. Na década de 90, o FC Barcelona conquistou quatro vezes o Campeonato Espanhol, de forma consecutiva, de 1990 a 1994, e três vezes a Supercopa da Espanha. Para além dos títulos nacionais, o time comando por Cruyff conquistou títulos continentais, como a Liga dos Campeões da Europa e Supercopa Europeia, ambos os títulos em 1992. Faziam parte deste elenco os jogadores como Zubizarreta, Michael Laudrup, Stoichkov, Romário e Josep Guardiola.

O FC Barcelona foi comandado por Cruyff por nove anos, mas a fase vitoriosa durou de 1988 a 1994. Devido as grandes conquistas deste período, esse Barça ficou conhecido como o “Time dos Sonhos” – o Dream team. Os títulos desse período são frutos, em grande parte, do estilo de jogo de Michels. Cruyff elevou o esquema já consolidado a outro patamar, o holandês conseguiu associar o estilo de jogo com jogadores de qualidade, a posse de bola passou a ser à base deste esquema, que ainda contava com a ofensividade e a movimentação dos jogadores. Entretanto, deve ser ressaltado que o futebol da década de 90 era diferente do jogado na década de 60 e 70. Na década de 90, o jogo era bem mais dinâmico e exigia maior rendimento dos jogadores.

Cruyff foi um dos grandes jogadores do Barcelona. Ilustração: Francisco Carlos S. da Silva.

Em 1997, Louis Van Gaal, também holandês, assumiu o comando do time catalão. Como jogador Van Gaal fez parte do Ajax da década de 70 e vivenciara resquícios do estilo de jogo de Michels, já como técnico iniciou sua carreira no Ajax. No Barça o holandês teve duas passagens, a primeira foi entre 1997 a 2000, já a segunda foi entre 2002 e 2003. Van Gaal aproveitou a base do time montado por Cruyff, e contou com as contratações de jogadores estrangeiros, sobretudo holandeses. Fizeram parte do elenco, jogadores como Josep Guardiola, Luís Figo, Rivaldo, Giovanni, Ruud Hesp, Zenden e Phillip Cocu.

O time de Van Gaal não foi tão vitorioso quanto o de Cruyff, mas ainda assim conquistou títulos, como uma Supercopa Europeia, uma Copa do Rei e duas vezes o Campeonato Espanhol. É importante ressaltar que o time estava enfraquecido devido à saída de alguns jogadores, mas a base foi mantida. Com relação ao estilo de jogo, o futebol apresentado deixava a desejar se comparado com Dream team.

Em sua segunda passagem pelo FC Barcelona, Van Gaal não contava mais com a base do Dream team. Guardiola, o último remanescente daquele time havia deixado o clube em 2001. O holandês contou com a contração de seus conterrâneos, como Reiziger, Overmars e Kluivert, além dos jovens jogadores espanhóis Xavi e Carles Puyol, que haviam sido promovidos ao time principal no final da década de 90. Sem uma base forte, a segunda passagem de Van Gaal não foi vitoriosa.

Após uma fase de reestruturação do futebol no FC Barcelona, o clube catação contratou o jovem técnico Frank Rijkaard. Seguindo os ensinamentos de Cruyff, e promovendo jogadores da base, o holandês montou um time com muitos jogadores jovens como Víctor Valdés, Iniesta Xavi e Puyol, e algumas estrelas internacionais como Ronaldinho Gaúcho e Samuel Eto’o. Com foco na posse de bola, no jogo coletivo e apostando na individualidade de Ronaldinho e Eto’o, o Barça de Rijkaard conquistou duas vezes o Campeonato Espanhol e a Supercopa da Espanha, além da Liga dos Campeões da Europa, todos no período entre 2005 e 2006.

Mosaico do escudo do Barcelona. Ilustração: Mosaic Yourself.

O técnico Rijkaard comandou o time até 2008, o seu substituto foi Guardiola. O ex-jogador tinha sido técnico das categorias de base do Barça, e possuía grande identificação com o clube e com a Catalunha. O jovem técnico espanhol já contava com os jogadores Valdés, Iniesta Xavi e Puyol, além dos jovens promovidos da base, como por exemplo, Piqué e Lionel Messi, sem contar a contratação do brasileiro Daniel Alves.

O Barça de Guardiola passou a jogar de forma coletiva com posse de bola, montado no sistema tático 4-3-3, todavia devidos à movimentação dos jogadores o sistema variava durante o jogo, o que foi visto como uma revolução dentro do futebol. Vale ressaltar que Guardiola contou com o argentino Messi, o melhor jogador do mundo, e dos espanhóis Xavi e Iniesta, considerados os melhores jogadores da Espanha.

O técnico espanhol esteve à frente do clube catalão de 2008 a 2012, e conquistou 14 títulos em 19 disputados. Esse estilo de jogo foi extremamente vitorioso, conquistando três vezes o Campeonato Espanhol e a Supercopa da Espanha, duas vezes a Copa do Rei, a Liga dos Campeões da Europa, a Supercopa Europeia e a Copa do Mundo de Clubes da FIFA.

A fase mais vitoriosa do clube foi durante a temporada 2008-2009, na qual o Barça conquistou seis títulos de seis disputados. O sucesso de Guardiola pode ser visto a partir da presença de Cruyff como treinador na década de 90, quando aplicou o mesmo estilo de jogo do time principal nas categorias de base. Além disso, o sistema de Michels e Cruyff foi elevado a outro patamar, em grande parte, devido dinâmica do jogo que ficou mais veloz, além dos avanços da medicina esportiva que garantiam o melhor desempenho dos jogadores.

Guardiola no banco do FC Barcelona em 2010. Foto: Oemar – Flickr.

Deve-se considerar também, que os principais jogadores que compunham o elenco foram formados na base do clube, dentro a estilo de jogo que Cuyff aplicara, ou seja, esses jogadores estavam acostumados a jogar nesse estilo desde as categorias de base, o que não dependia de uma adaptação mais longa no time principal. Outro fator importante, é que como jogador, Guaridola foi comandado por Cruyff, além de ter jogado com Xavi e Puyol no final da década de 90. Deste modo, é possível dizer que tanto o técnico como os jogadores estavam acostumados com o estilo de jogo. Nesse sentido, a imprensa esportiva catalã já afirma que futuramente Xavi assumirá o posto de treinador do FC Barcelona.

Enfim, o sucesso de Barça de Guardiola é fruto do sistema tático e do estilo de jogo que foi sendo inovado ao longo do tempo, desde o final da década de 60. Além disso, é fruto da formação de jogadores dentro estilo de jogo e de talentos individuais. Ao longo do tempo, o FC Barcelona construiu uma identidade, a partir de sua tática e de seu estilo único de jogar futebol.

* * *

Após o fim da temporada 2011-2012, Guardiola deixou o clube e quem assumiu foi Tito Vilanova. Como jogador, Vilanova havia passado pelas categorias de base do FC Barcelona, mas não chegou a jogar no time principal. Como treinador, iniciou seu trabalho junto com Guardiola, Vilanova foi seu assistente técnico de 2007 a 2012. A escolha de Vilanova pode ser vista como uma forma de manter o estilo de jogo, uma vez que tanto o técnico quanto o jogadores já estavam habituados ao estilo.

É necessário ressaltar que mesmo mantendo a base de Guardiola, a forma de jogar é um pouco diferente. O time de Vilanova mantém o jogo coletivo de posse de bola, mas a movimentação dos jogadores é bem menos intensa, e as mudanças táticas durante o jogo são mais raras. Todavia, os resultados do time são inquestionáveis, o Barça está invicto no Campeonato Espanhol, na Copa do Rei e possui apenas uma derrota na Liga dos Campeões da Europa.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Blaugrana mecânico: a (r)evolução tática do FC Barcelona. Ludopédio, São Paulo, v. 41, n. 8, 2012.
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