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“A brecha que o sistema queria”: o caso Pacaembu 22 anos depois (Parte III)

Fabio Perina 8 de novembro de 2017

Desde o caso Pacaembu em 1995 foi-se articulando esforços para interligar políticas de criminalização das Torcidas Organizadas e restrição da cultura torcedora para abrir espaço para a elitização dos estádios. Avalio que na primeira década dos anos 2000 realmente a tendência foi fortemente pela cooptação oficial (dado os controles do Estatuto do Torcedor através de cadastramento de cada Torcida Organizada e de cada membro). Foi uma época que ocorreram vários confrontos de torcidas, inclusive com várias mortes, mas toda a cobertura midiática sensacionalista não alavancou até aquele momento uma nova estratégia repressiva tão impactante como na segunda metade dos anos 90. Para olhos desavisados o cenário parecia sob controle: as diretorias das Torcidas Organizadas tiveram que assumir várias obrigações com os órgãos de segurança e até mesmo com frequência um vasto material era disponibilizado na internet por interessados em entrevistá-las. Em suma, o controle e a obediência ao Estatuto do Torcedor são priorizados antes da participação e representação das Torcidas Organizadas. Assim como a repressão esse tipo de medidas tampouco reconhece as torcidas como atores sociais com direitos.

Fica a sensação que até antes de 2010 os principais interessados na elitização do futebol/criminalização das Torcidas Organizadas aplicavam cada um suas táticas mas ainda não estavam unidos numa nova investida estratégica. O poder público tomava medidas que se anulavam, ora pela repressão e ora pela regulamentação. Os novos investimentos em programas de sócios torcedores e setores mais privilegiados dentro dos estádios convencionais caminhavam muito lentamente.

Nessa década de 2000 é interessante recuperar também um fenômeno discreto: o apoio da televisão a mostrar a vibração das torcidas com cantos de amor ao clube. Alguns dos gritos que marcaram época nesse claro incentivo da televisão de estimular uma nova forma de torcer e certamente ao mesmo tempo reduzir os palavrões e cantos agressivos: “A taça Libertadores obsessão…” (Palmeiras), “Aqui tem um bando de loucos…” (Corinthians), “Vai lá, vai lá de coração…” (São Paulo), “Vai pra cima deles Santos” (Santos). Isso foi parte de um novo consenso, até aqui inquestionável, para resolver conflitos no futebol, seja nas arquibancadas ou dentro das quatro linhas do campo, pelo qual se teme e se procura extirpar qualquer lampejo, qualquer faísca de violência simbólica, como se ela, por um cálculo dos ‘especialistas’ na repressão, sempre tivesse o potencial de incendiar violências reais incontroláveis.

Nesse sentido não posso deixar de mencionar o carnaval como um importante recurso que as Torcidas Organizadas paulistas encontraram logo após a grande proibição do caso Pacaembu para melhorarem a organização interna e levantarem fundos para o seu retorno progressivo na década passada. Chama a atenção de diretores das torcidas a postura cínica por parte do poder público, e principalmente da mídia, que para uma mesma entidade ora lhe abre portas enquanto escola de samba e ora lhes fecha enquanto torcida! Também não pode passar em branco o registro do aumento da articulação das Torcidas Organizadas, agora não somente as paulistas, mas em todo o Brasil, de ações e projetos sociais. É um detalhe que diz muito do progressivo abandono do poder publico dos direitos sociais da população e a substituição de tais necessidades por diversas entidades. Fica a sugestão…

03/03/2017- Carnaval 2017: Desfiles das Campeãs do Carnaval de São Paulo; Dragões da Real. Foto: Paulo Pinto / LIGASP / Fotos Públicas
Carnaval 2017: Desfiles das Campeãs do Carnaval de São Paulo; Dragões da Real. Foto: Paulo Pinto/LIGASP/Fotos Públicas.

Quando afirmo que o ano 2010 marca uma nova ofensiva contra as Torcidas Organizadas, até mesmo essa mudança da televisão deixar de dar voz ao torcedor comum de origem popular(e quando retratado em imagens apenas as dos mais ricos nos melhores lugares do estádio) e passou a estimular o consumo do futebol europeu também serve para simbolizar essa nova época.

A criação de programas de sócios-torcedores traz um apelo comercial de fazer o torcedor se sentir mais privilegiado ao ser (supostamente) reconhecido pelo clube, não mais como um anônimo entre milhões, mas cadastrado para (apenas) ajudar em seu orçamento com mensalidades. Não é mais uma relação na qual os clubes “não ganham nada” (como se dizia) da paixão de sua torcida. É a tendência do marketing atual de não fazer mais produtos para as massas, mas para a diferenciação. Percebe-se o tratamento semelhante ao dado a um cliente de uma empresa de qualquer outro setor, na forma do direito do consumidor e do oferecimento de um serviço de qualidade. É a implantação de uma proposta mais comercial, individualista e mais intelectual a esse novo torcedor que se quer selecionar. Deixando anulada a questão da participação política. Quando o torcedor percebe as vantagens econômicas quanto ao ingresso ele aceita que toda a relação com o clube seja nessa base de um contrato comercial.

Um caso concreto dessa situação hipócrita é que o clube usa imagens da vibração da torcida para vender planos de sócios-torcedores e dizer que ela é importante para “mostrar sua força” e ajudar o clube; mas quando seus torcedores querem cobrar ou protestar pacificamente eles são descartáveis! Até mesmo a participação na política interna do clube é restrita ou mesmo rejeitada! Nesse sentido outra contradição que ainda vale mencionar que, na estratégia recente dos clubes se desvincularem das Torcidas Organizadas, uma tática comum que se lançou mão foi procurar processá-las por uso indevido da imagem do clube (Uma vez que o ‘saber’ jurídico-midiático cunhou uma nova ‘verdade’, pela qual o clube deve tanto zelar por sua imagem quanto auxiliar na investigação de incidentes para evitar punições esportivas para si). Porém nenhum clube pede permissão à Torcida Organizada para usar suas imagens para persuadir a venda de programas de sócios-torcedores!

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Kit de Sócio Torcedor da categoria Master. Foto: Tales.ebner/Wikipédia.

No futebol moderno tudo que é supérfluo passa a ser mais importante que o próprio futebol. Ficou comum o público espectador fazer qualquer coisa durante os 90 minutos menos incentivar o clube: consumir, bater papo, acessar internet, etc. Com um celular na mão se sentem protagonistas da própria imagem e sem se importar com o que mais esteja ao redor. Essa mudança de mentalidade para uma mais comercial veio tão rápido durante a hiperinflação dos ingressos nos anos próximos da Copa de 2014. Na medida que, se há poucos anos não era difícil dizer que “torcedor é quem vai no estádio” (contra a passividade de ver pela televisão), atualmente nem isso mais é possível afirmar porque para muitos clubes só está indo em jogo quem pode (pela condição financeira), e não quem faria sacrifícios porque realmente quer.

O problema atual das tentativas de se substituir num golpe só uma cultura torcedora tradicional de grande riqueza por uma postura mais moderna, resignada e passiva. Quando foi dito que ao longo dos anos 90 os produtores de discursos hegemônicos sobre o futebol vinham de quem menos entendia do seu dia a dia, os últimos anos viram a ascensão dos empresários e gestores como os novos supostos entendidos do assunto que devam ser ouvidos. Mais uma vez recorro à figura das ‘engrenagens’ do futebol moderno na medida que se procura estimular que a modernização do ‘produto’ futebol virá com a profissionalização de dirigentes-gestores, atletas (alegando ser ‘empresários de si mesmos’) e torcedores-clientes cada vez mais semelhantes entre si!

Leia a última parte no dia 22 de novembro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “A brecha que o sistema queria”: o caso Pacaembu 22 anos depois (Parte III). Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 8, 2017.
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