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De estigmatizadas à tendência: as camisas de futebol e o mundo da moda

Mayara de Araújo 21 de novembro de 2022

Entre 2020 até o ano atual (2022), tem sido observado o surgimento de tendências no mundo da moda associadas a camisas de futebol, essa nova moda tem sido denominada de blockcore[1] e, no que tange ao sexo feminino, destaca-se o brazilcore[2]. Para ser mais específica, o blockcore se apresenta como uma nova tendência para o ano de 2023, aonde homens se vestiriam de forma “nostálgica”, tal como figuras masculinas tendiam se vestir ao assistir uma partida de futebol. Já, no que diz respeito ao “brazilcore”, observa-se uma tendência associada ao uso de camisas da seleção por fashionistas e celebridades, para além da amarelinha, vêm se destacando também entre essas mulheres o uso de camisas de clubes atreladas aos seus looks.

Foto: @pokitodestilo / Modelos: @casdelachic @bratzfavelada – Reprodução

Mas qual a relevância deste fenômeno fashionista atual? Assim como a temática envolvendo esporte tende a ser menosprezado às vezes no meio acadêmico, é possível também incluir a moda neste processo. Ambos, como fenômenos culturais, costumam ser relacionados com certa dificuldade aos processos históricos e políticos de uma sociedade. Da mesma forma que o esporte, está dialogando a todo momento com questões que permeiam a sociedade, assim é a moda. A problemática aqui, é pensar aspectos sociais e raciais que se atrelam a estes fenômenos, observar que o crescimento destas tendências perpassa um grupo social específico e só se tornaram “tendência”, por envolver homens e mulheres que estão, em suma maioria, para além das periferias e subúrbios das cidades.

Ao contrário de outras modalidades esportivas, as camisas de futebol não possuíam muito espaço no mundo da moda. De acordo com a revista MPH, esportes como o golfe, o tênis e o hipismo, tinham uma boa aceitação entre os fashionistas[3]. Algo que pode ser explicado, por exemplo, pelo fator econômico que envolve parte desses esportes. Na realidade, entre a moda feminina, pode ser destacado o estilo “Old Money” que se destacou no final do século XX. O significado do termo estaria relacionado às grandes heranças provenientes de elites que surgiram a partir da Revolução Industrial, ou seja, de uma burguesia[4]. O estilo “Old Money”, traduzido por “dinheiro velho”, traz consigo esteticamente alguns elementos esportivos, tal como o tênis e o hipismo, esportes esses tidos como elitistas[5]. Esses estilos, que retornaram com força segundo as revistas de moda, principalmente entre a juventude neste ano de 2022, pouco impacto obteve no Brasil por que esses esportes não possuem grande adesão no âmbito nacional.

Mas, ao pensar o futebol e as novas tendências que remetem ao esporte, observamos como as periferias e os subúrbios tendem a ser apagados nestes processos. A moda que hoje leva a fashionistas a utilizarem camisas de futebol em seus looks, na realidade, estiveram com frequência no cotidiano de muitas meninas e meninos. Há dois aspectos que podem ser pensados com isso: 1) Um fenômeno racial e econômico envolvendo a aceitação das camisas de futebol como um artigo fashion; 2) A maior visibilidade que as mulheres passaram a ter no cenário esportivo. Mencionar um ponto problemático e um positivo dentro de um mesmo fenômeno, é justamente, refletir sobre a complexidade destes processos que são históricos.

A moda e o futebol não andaram separados, é possível observar que em torno das narrativas a respeito dos jogos durante o início do século XX, havia uma preocupação em expor mais os indivíduos que frequentavam esses espaços do que o jogo em si. Dentre esses interesses, era comum se ponderar a forma como os frequentadores das arquibancadas se vestiam. Outro ponto, é que alguns jornais a partir da década de 1910, passam a dividir as páginas entre futebol e moda, há exemplo o jornal Gazeta de Notícias. A moda durante a belle époque carioca servia como um importante demarcador social, incorporava ao dia a dia carioca aspectos que remetiam a Paris, cidade modelo. Logo, assim como a moda, o esporte ao ser introduzido entre as elites cariocas, também carregava certos simbolismos. O futebol vinha ditar um novo estilo de vida, um novo hábito, pautado no estilo de vida europeu. Tanto as vestimentas como os esportes, apontavam para a modernidade. O jornal O Paiz, por exemplo, em sua seção de esporte, menciona ter ocorrido durante uma partida, manifestações agressivas na arquibancada do Fluminense.

Foi isto que vi ontem, na ampla arquibancada do Fluminense, vergonhosas vaias, agressões físicas e, principalmente, palavrões de todo calão. Felizmente, a diretoria do Fluminense pôs cobro ainda em tempo aos incidentes, evitando energicamente que seus “habitués” continuassem sob aquele desrespeito moral. Entretanto, a molecada (sem gravata) lá estava quieta e submissa ante a presença da polícia[6].

No discurso do jornal, observamos que diante da reclamação a respeito da má conduta de torcedores, é destacado uma parte da vestimenta masculina para se referir a “molecada” que precisaria da companhia de policiais. A gravata, por ser mencionada, demonstra ser um aspecto importante, logo, não a usar tendia a causar estranhamento e indicar a qual grupo social pertencia-se. De acordo com Carmén Lúcia Sores, o ato de vestir-se expressam posições, sexo, idade, cultura, condições de higiene[7], ou seja, incorpora diferentes elementos consigo. Por tal razão, o simples fato de não utilizar gravata, é destacado pelo jornal em sua narrativa, pois, provavelmente apontava a condição social destes.

A partir do meado do ano, nas edições das quintas-feiras, a Gazeta de Notícias passou a unir temas relacionados a moda e esporte em uma única sessão, intitulada “Gazeta da ‘moda’ e do Sport”[8]. Ou seja, durante o século XX houve sim uma aproximação da moda com o futebol, contudo pontuo estar sendo pensado aqui a cidade do Rio de Janeiro. Todavia, esses aspectos tendem a mudar com a popularização do jogo. À medida que o esporte alcança os menos abastados, o sentido do futebol se modifica, e partes dos figurinos adotados pelos mais diversos grupos sociais, demonstravam não ser suficientes para atribuir aos homens e mulheres pobres o mesmo prestígio.

Foto: Aline Santos (Reprodução)

 

Não bastava utilizar uma vestimenta de qualidade inferior ou da mesma qualidade que a elite carioca para ser bem visto na sociedade. A raça é critério determinante na forma como esses artigos são vistos. Pensando o uso de camisas de futebol como um aspecto da “moda”, sendo hoje bem visto por fashionistas, é possível se pensar como um artigo sempre utilizado pelas camadas populares, tornaram-se bem vistos a partir do momento em que mulheres brancas e de classe média, tal como homens, celebridades no geral, resolveram incorporar em seus “looks”. A famosa e cara camisa de clubes, tal como da seleção brasileira, eram artigos desdenhados pelo mundo da moda. Ainda assim, sempre estiveram na vida de muitos brasileiros, que ignoraram certas imposições, colocando suas paixões acima. Hoje, observa-se o esporte tornando-se tendência, o olhar sobre artigos esportivos vem sendo modificado, devido ao grande número de influenciadores que tornaram “cool” certos elementos. No entanto, há que se pensar, será que essa “tendência” de utilizar camisas de futebol tende a ser vista da mesma forma quando utilizada por mulheres de raças e condições socioeconômicas diferentes? Ou por homens?

Apesar da problemática levantada, existe também a crescente participação da mulher no meio esportivo para que este movimento viesse ocorrer. A tendência das camisas de futebol entre o sexo feminino, aponta para o mercado a necessidade de se olhar também para as mulheres ao se falar de futebol. Neste processo de incorporação de camisas de futebol na vestimenta feminina, há uma gama de mulheres que hoje integram o mundo da moda e ao mesmo tempo, carregam a paixão por determinados clubes.

Foto: Milena Otta (Reprodução)

As fashionistas acima, no artigo publicado pela revista STL (Steal the look), ratificam o fato de serem torcedoras, de utilizarem camisas esportivas não apenas como um artigo para compor looks, mas de possuírem relações com os clubes no qual vestem a camisa[9]. Ainda que, essa “moda” entre fashionistas demonstre-se excludente em alguns aspectos, tendo em vista que, esses artigos esportivos fazem parte da vida de muitas meninas das periferias e dos subúrbios há tempos, no entanto carregado de estigmas. Essa tendência também permite observar uma transformação na forma como a relação da mulher com o futebol vem sendo modificada. É possível perceber que a própria indústria hoje, se vê mais preocupada em disponibilizar modelos que abrangem o sexo feminino, algo que até recentemente, era muito criticado por torcedoras que sentiam dificuldades em encontrar camisas de futebol em modelos femininos. A tendência, por mais que não venha trazer muita novidade no cotidiano de uma parcela da população, que sempre utilizou artigos de seus clubes no dia a dia, têm uma contribuição no que tange romper os estigmas que cercam uma mulher vestindo uma camisa de futebol.

É claro, que essa mulher capaz de romper com a imagem negativa da vestimenta esportiva sendo utilizada pelo sexo feminino, não é apta a romper com as questões raciais e econômicas que atravessam a tendência. Esta moda se vê concentrada em um nicho específico, aonde é preciso carregar certos padrões para que a camisa de futebol incorpore um novo sentido. A tendência possui relevância no que diz respeito a participação da mulher no cenário esportivo, mais especificamente, futebolístico, demonstrando uma adesão cada vez maior. Permite observar como o esporte dialoga com temáticas muitas vezes ignoradas por àqueles que se sentem afeiçoados ao futebol. E, ao mesmo tempo, entender que tanto aspectos raciais e econômicos estão sendo importantes no processo de transformar os sentidos atribuídos as camisas de futebol pelos mesmos que hoje, observam o artigo como tendência.

Notas

[1] Brazilian aesthetic: por que o Brazilcore é tendência somente agora?
[2] Brazilian aesthetic: o Brazilcore está se tornando tendência mundial
[3] As camisas de futebol estão começando a ser aceitas pela moda
[4] Saiba o que é a estética Old Money que está dominando a moda no Brasil
[5] Saiba o que é a estética Old Money que está dominando a moda no Brasil
[6] Gazeta de Notícias, 1910, ed. 09361.
[7] CORREIO, Xenia. As roupas nas práticas corporais e esportivas: a educação do corpo entre o conforto, a elegância e a eficiência (1920-1940). v. 49 (2014): JAN./ABR. HISTÓRIA E ESPORTES.
[8] Gazeta de Notícias, 1912, ed.00102.
[9] Dos looks sport aos fashionistas, as camisas de time serão tendência na próxima temporada

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mayara de Araújo Silva

Graduada em História e, no momento, mestranda em História na UFRRJ, tendo por objeto o futebol nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Torcedora assídua do Clube de Regatas Vasco da Gama e interessada por assuntos que rodeiam o esporte no geral.

Como citar

ARAúJO, Mayara de. De estigmatizadas à tendência: as camisas de futebol e o mundo da moda. Ludopédio, São Paulo, v. 161, n. 21, 2022.
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