Há cerca de 15 meses, a Cinemateca Brasileira ingressara em um momento crítico de sua história. Em janeiro de 2013, o anúncio da demissão do diretor executivo Carlos Magalhães e o desastroso corte expressivo do corpo de funcionários deu início a uma crise política e institucional que expõe hoje consequências graves para o trabalho e para o acervo da entidade.
A Cinemateca é a principal mantenedora da memória do audiovisual brasileiro e uma das maiores da América Latina, em sua área de atuação. Dentre seus mais de 140 mil títulos, encontram-se curta e longa-metragens, materiais domésticos, novelas, publicidades, telejornais e cinejornais, datados desde o primeiro quarto do século passado.
Esta última categoria, o cinejornal, sofre um particular prejuízo desde então. O tratamento e a utilização de alguns lotes de produtoras importantes para a memória do cinema brasileiro, como Atlântida, Goulard de Andrade, Vera Cruz, Norma Bengell, Glauber Rocha e Canal 100 está paralisado. Isto porque a adquisição destes acervos realizada durante a gestão Carlos Magalhães está sendo investigada e o Ministério Público bloqueou qualquer atividade envolvendo estes materiais.
A fatalidade neste caso é que a maior parte destes materiais ainda não foi processado. Chamo atenção para o caso do Canal 100. Adquirido pelo MinC em janeiro de 2011, o lote de 8.044 latas do Canal 100 foi despejado na Cinemateca em centenas de sacos úmidos e forrados de ferrugem.
O lote pertencente a família de Carlos Niemeyer chegou em condições precárias. Além da umidade e a ferrugem, a infestação de fungos e a síndrome do vinagre (recorrente aos filmes com suporte de acetato) foram encontrados largamente nos materiais.
A primeira triagem identificou que cerca de 25% do lote não teria condições sequer de tratamento imediado. Até o fim de 2013, 53,9% do lote havia sido processado – triagem por grau de conservação, identificação, catalogação e acondicionamento. No entanto, é seguro dizer que mais de 90% deste processamento foi realizado até o fim de 2012, antes da crise que estagnou as atividades de preservação e catalogação do acervo.
Os quase cem funcionários demitidos – em sua maioria terceiros – buscaram alternativas e debateram os problemas em assembleia, se manifestaram contra a política de ruptura abrupta da gestão e protestaram contra o desligamento de profissionais que além de longevos na casa, também são portadores de saberes e experiências essenciais à Cinemateca que são adquiridos através da vivência na instituição.
Além da carência de recursos, a falta de mão-de-obra na instituição compromete a preservação dos filmes. Até o momento, 1021 latas de Canal 100 foram descartadas. Sem o tratamento imediato, os filmes contidos nas cerca de 3.000 latas restantes que sofrem deterioração pela síndrome do vinagre não irão resistir por muito mais tempo.
O Canal 100 é responsável por levar às telas de cinema do Brasil durante mais de 30 anos uma das visões mais consagradas do futebol nacional: o futebol arte. A partir das teleobjetivas, dos planos distintos das transmissões televisivas, da trilha sonora ufanista e da narração dramatizada construiu-se a imagem nostálgica que herdamos dos tempos de ouro do futebol brasileiro.
Compreender o papel que o Canal 100 desempenhou na difusão do futebol de elite – sobretudo carioca – para o restante do país é exercício imprescindível para os estudos de clubes, torcidas ou mesmo da seleção nacional. A negligência intrínseca à crise da Cinemateca compromete a preservação deste patrimônio cultural e o desenvolvimento de pesquisas fundamentais para entendermos um dos fenômenos culturais mais relevantes para nossa sociedade.
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Retrospecto
A Cinemateca Brasileria foi criada em 1946 por iniciativa de intelectuais do cinema brasileiro, ainda como uma associação privada – Clube de Cinema de São Paulo. Ao longo de toda sua história, a Cinemateca enfrentou dificuldades para sobreviver, se adaptando e se deslocando para diversos organismos privados e públicos.
Em 2003 tornou-se oficialmente órgão da Secretaria do Audiovisual (MinC), responsável pela preservação e difusão da memória do audiovisual brasileiro. No entanto, uma entidade chave não pode ser deixada de lado para entender o funcionamento da Cinemateca. A Sociedade de Amigos da Cinemateca (SAC), criada em 1962 para auxiliar administrativamente a instituição, ocupa hoje o palco principal da crise.
Responsável pela captação e gestão de recursos – tanto públicos quanto privados -, a SAC e a direção da última década protagonizaram uma era de intensos contrastes: de um lado, o crescimento vertiginoso do investimento e das atividades da Cinemateca; de outro, a degradação das relações de trabalho como um todo (contratação em massa de terceiros para atividades fins, instabilidade de emprego, priorização de metas quantitativas e os inúmeros casos de assédio moral oriundos da direção).
No entanto, a crise que eclodiu em janeiro do ano passado pouco se refere às críticas destacadas acima. Com a saída de Ana de Holanda do MinC em setembro de 2012 e a posse da atual ministra Marta Suplicy, uma série de intervenções começam a ser arquitetadas e entram em ação no início de 2013.
A queda de Carlos Magalhães da Cinemateca foi o pontapé inicial do ataque do governo federal à gestão do diretor tucano. Oficialmente, o governo federal acusa a gestão de ter transformado a missão da instituição pública, e condena a política de contratações em regime de pessoa jurídica.
Auditorias passaram a ser realizadas e questionamentos acerca da vida financeira da SAC chegaram à imprensa. O entrave político deflagrado é grave, mas o que o torna crítico é o abandono daquilo que deveria ser essencial nesta discussão: a missão da Cinemateca Brasileira.
Pra saber mais:
Clipping
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