‘’Canta que sai gol’’? Aproximações entre algumas formas de torcer e a positividade tóxica
Com a queda de rendimento do elenco do Clube do Remo na série B do campeonato brasileiro, tendo que vencer ao menos um dos três jogos que restam na competição para livrar-se do rebaixamento, posturas antagônicas vêm dividindo opiniões de torcedores/as e influenciado nas suas formas de torcer. Apoiar até o fim sem criticar ou apontando publicamente as falhas do elenco e da gestão do futebol do Clube? Eis o dilema!
Em um dos grupos com maior número de torcedores/as do Clube do Remo em uma rede social, no dia da partida contra o Manaus Futebol Clube, válida pela Copa Verde – outra competição que o Clube está na disputa -, publicou um dos administradores: ‘’Postagens de remistas secadores, postagens negativas e de torcedores de sofá, serão excluídas até segunda-feira. VSF! Grato!’’. Com mais uma atuação ruim do time e o empate entre as equipes, retrucou através de outra publicação, em tom irônico, um membro do grupo: ‘’que jogo maravilhoso. Um futebol de qualidade e bem jogado (emojis de palmas). Que belo trabalho de quem montou essa máquina. Parem de falar coisas negativas desses grandes jogadores que tem dado a vida dentro de campo’’, gerando reações com emojis de risos ou de raiva, além de longos debates dividindo opiniões no grupo em outros grupos de aplicativos de troca de mensagens.
‘’É precisamente nisso que consiste a positividade tóxica ou positivismo extremo: impor a nós mesmos — ou aos outros — uma atitude falsamente positiva, generalizar um estado feliz e otimista seja qual for a situação, silenciar nossas emoções ‘negativa’ ou as dos outros’’, sintetiza a jornalista Lucía Blasco, em texto sobre o assunto, citando especialistas da área da psicologia, publicado no site BBC News Brasil, em 14 de dezembro de 2020. Não é de hoje que posturas ligadas ao que vêm sendo chamado de positividade tóxica se fazem presentes nas sociabilidades futebolísticas brasileiras, manifestadas através de atos individuais ou coletivos, conforme se pode notar nos exemplos a seguir.
Em 2002, o Clube do Remo perdia por 1 x 0 para o Spot Recife, pela série B, jogando na presença de sua torcida, no estádio Baenão. A partida já se aproximava do final quando uma torcida organizada resolveu puxar cânticos de protesto enquanto que outra que de se encontrava próxima permaneceu puxando cânticos de incentivo, mesmo com o baixo rendimento do time em campo. Quando o gol de empate saiu, já beirando o final da partida, a torcida que permanecia apoiando partiu pra cima da outra, gerando uma briga imensa entre membros das duas torcidas na arquibancada.
Em 2019, falando poucos minutos para o término da partida entre Remo x Tombense, válida pela série C, com a derrota de 2×0 do time da casa, um torcedor do Clube do Remo começou a protestar na área das cadeiras cativas do estádio Mangueirão, contra os jogadores do seu time, com gritos: ‘’jogadores sem raça’’, ‘’timinho’’, etc. Incomodado, um torcedor próximo o teu repreender, alegando que a sua atitude era de torcedor de um Clube rival, momento em que os ânimos entre os dois de exaltaram, levando policiais e seguranças a intervirem na situação.
Em uma sociedade democrática, manifestações que não ferem os princípios liberdade de expressão merecem respeito, logo é preciso repudiar quem não aceita o/a diferente e ainda por cima tentar impô-lo/a o que pensa . Não é de hoje que práticas como essas vem ganhando força no campo das disputas entre os sentidos e as formas de torcer. No ethos do universo futebolístico brasileiro há diversas crenças que permeiam o imaginário de torcedores/as e torcidas, dignas de atenção e respeito, como, por exemplo, o ‘’canta que sai gol’’, estampado em muitas faixas de torcidas pelo país. Todavia, o desejo de não querer cantar para um elenco com atuação medíocre, por não acreditar que tal atitude positiva vá mudar o resultado da partida, também deve ser respeitado. Afinal, o torcer, como toda prática humana, envolve uma variedade de sentimentos e emoções convergentes ou não, que fazem das sociabilidades futebolísticas esse emaranhado cheio de surpresas a serem desvendadas.
Ao abordar sobre o fenômeno no âmbito da pandemia da COVID-19, o comediante Gregório Duvivier afirmou que ‘’a positividade tóxica é a mãe do negacionismo’’, mostrando como pessoas indispostas a cumprir as medidas sanitárias de prevenção ao vírus tentam justificar as suas atitudes alegando – sem base científica alguma – que a exposição à doença está ligada a pensamentos negativos. No que se refere às sociabilidades futebolísticas brasileiras, podemos inferir que a positividade tóxica tem se mostrado alguma grande aliada da intolerância e do autoritarismo.