165.13

Cantareli, o mago da meta do Mengão

Uma coisa que aprendi no Flamengo foi nunca aceitar uma derrota

(Cantareli)

A magia cumpriu uma função social importante por manipular estruturas simbólicas no âmbito das culturas e das religiões. Historicamente ela sempre esteve atrelada a preconceitos, porém, com o passar dos tempos, o ofício da magia foi sendo ressignificado e os estigmas ligados a ela foram intercambiados. Desse modo, surgem os seres que comumente chamamos de mágicos. E por falar em magia e mágicos, “tiramos da cartola” para esta crônica o mago do Mengão, que a exemplo de muitos mágicos, usava luvas: Antônio Luís Cantareli, o bruxo do arco rubro-negro.

Cantareli
Fonte: reprodução

Mas o que faz um mágico?  Com suas habilidades técnicas (e sobrenaturais) dá a ilusão aos espectadores de que algo impossível aconteceu. Tudo a ver com as defesas de Cantareli, esse ilusionista que por anos fez a torcida do Mengão levitar. Protegeu a nossa pequena área com um repertório de truques que surtiam efeitos extraordinários que contrariavam as leis naturais. Cantareli ingressou na base do Flamengo no ano de 1970, atuando com Zico, Jaime de Almeida, Rondinelli e Vanderley Luxemburgo. Em 1973, Cantareli subiu para o profissional, onde atuou por 17 anos alternando fases como titular e como reserva. Ele foi reserva de luxo de Raul Plassmann, Ubaldo Fillol[1] e Zé Carlos. Cantareli foi o goleiro que mais vestiu o manto sagrado: foram 557 jogos defendendo a meta do Flamengo de 1973-1983 e de 1984-1990. 

Cantareli é para a meta do Flamengo o que Harry Houdini[2] (1874-1926) foi para o mundo da magia, o ícone maior. Assim como o húngaro Houdini revolucionou o ilusionismo, a geração de Cantareli revolucionou a história do Flamengo. Houdini era o mestre das fugas: era colocado em camisas de força, enrolado por correntes presas a inúmeros cadeados, alocado e amarrado dentro de caixas e sacos. Porém, mesmo quando a fuga parecia improvável, mesmo quando escapar das armadilhas beirava as fronteiras do impossível, lá estava o mágico solto. Com Cantareli, o poder era inverso. Quando os atacantes se livravam das amarras dos defensores do Flamengo e o gol parecia certo, lá debaixo da trave estava ele, pronto para prender a bola em suas mãos. Suas mãos eram cadeados a fechar a baliza, com saltos acrobáticos acorrentava a bola ao seu corpo.

Quando parecia impraticável não tomar o gol, das mãos de Cantareli saia uma cartada. E quando falamos em cartomagia, o espanhol Juan Tamariz-Martel (1942) se destaca. É o mestre maior na arte de fazer mágicas manuseando as 52 cartas do baralho. Cantareli foi o “rei de coração” da nossa meta, um “ás de espadas” sempre disposto a guerrear pelas cores do rubro negro. E já que estamos tratando de magos espanhóis, Héctor Mancha (1977) também é referência. Sua especialidade é fazer objetos desaparecerem, burlando sua plateia com o sumiço de carteiras, relógios e outros itens. “Carteirada” em artilheiro, isso também era feito com magia por Cantareli. Roubava dos pés dos atacantes o que há de mais precioso em campo: a bola. Mas a exemplo de Héctor, que dividiu por anos a carreira de bombeiro com a de mágico, Cantareli também atuava como bombeiro nos jogos contra o freguês de General Severiano. Com a disciplina e a coragem de um bombeiro, deixava a meta do Flamengo sempre molhada, e ali o time do Botafogo fazia, no máximo, umas faíscas.

Cantareli foi um mágico travesso, prova disso é o famoso clássico “Fla-Flu” de 1985, quando o Flamengo não podia perder para adiar a final do campeonato carioca. O Fluminense saiu na frente, e o Flamengo lutou o jogo inteiro em busca da vitória. A torcida viu Cantareli transformar-se em zagueiro, líbero, atacante, lateral… O goleiro assumiu diversos papéis. Segundo Cantareli, esse foi o jogo em que ele “colocou para fora toda a alma rubro-negra”. Neste ato, percebemos que magia e mágico são indissociáveis.  Ao final, Leandro empata para o Fla nos minutos finais, com um golaço de fora da área. A bola ainda beijou a trave antes de cair dentro da meta de Paulo Vitor. Porém, na última rodada, o tricolor sagrou-se campeão carioca daquele ano, vencendo o Bangu.

A dupla de magos Siegfried Fischbacher (1939-2021) e Roy Horn (1944-2020) ficaram famosos com seus truques na doma de animais ferozes, sendo este último atacado por um tigre em uma apresentação da dupla e quase veio a óbito. Eram mestres em domar leões, tigres brancos e tigres de bengala. Cantareli era goleiro titular do Flamengo até a chegada de Raul Plassmann, ambos passaram anos domando feras adversárias debaixo das traves do rubro-negro. Transformavam fortes leões em gatos dóceis. Quando o centroavante ficava na frente de Cantareli ou de Raul, recorria à bengala pois as pernas cambaleavam pelo medo. Mas ainda assim, as adversidades também eram comuns entre os melhores goleiros. Às vezes, um “Dinamite” explodia nas imediações de sua área, um “As-sis-co[3]” caia no seu olho ou um “Helicóptero[4]” sobrevoava a sua cobertura. E desse modo, era inevitável não tomar gols.

Quem jogou de 1975 a 1981[5], junto com Cantareli, foi Júlio César, o Uri Geller da Gávea. Era um ponta-esquerda, que por sua habilidade em “contorcer” os laterais adversários com seus dribles, levou o apelido do ilusionista Israelita Uri Geller (1946). Com seus poderes paranormais, Uri Geller entortava talheres e acertava ponteiros de relógios à distância.  Por tais sortilégios entrou para o ranking dos maiores ilusionistas do mundo. Na escrete do Flamengo de 1981, Cantareli também figurou como melhor do mundo. Ele fez parte da equipe campeã do Mundial de Clubes daquele ano, sendo este o seu maior título com a camisa do Fla. Porém, ganhou tantos outros campeonatos: foram seis títulos cariocas (1974, 1978, 1979, 1979 (especial), 1981 e 1986); quatro Campeonatos Brasileiros (1980, 1982, 1983 e 1987) e a Copa Libertadores da América de 1981.

Falar de grandes mágicos é lembrar de David Copperfield (1956). Esse é outro personagem do ilusionismo que tem poderes parecidos com os de Cantareli. Copperfield já fez desaparecer a estátua da liberdade em uma de suas apresentações. Um dos truques mais famosos dessa lenda da magia era o “Lucky 13”. Com um estalar de dedos, Copperfield fazia desaparecer 13 pessoas de sua plateia. Com a mesma destreza, Cantareli fazia desaparecer a taça de campeões de seus oponentes, a bola não entrava em sua meta e o título ia para a Gávea. Muitas vezes, a torcida adversária sumia do estádio antes de o jogo terminar, pois “os Flamengos” de Cantareli eram sempre mágicos e imponentes. Em 1981 no Japão, por exemplo, fez sumir 11 jogadores do Liverpool.

Quem se lembra do “Mister M”? O Masked Magician (Mágico mascarado) foi traduzido para o Brasil como “Mister M”. Era um personagem do mágico estadunidense Val Valentino (1956), criado com a função de desvendar os segredos da mágica para a população. Ele foi repudiado pelos outros colegas de profissão, pois estes não aprovavam suas apresentações que tinham como fim “desmascarar” os truques do mundo do ilusionismo. Por tal motivo, muitos mágicos lhe processaram, o levaram a júri. Cantareli, após encerrar sua carreira, também se dedicou a repassar os “truques de suas defesas”. Por vários anos, e por mais de uma vez, foi preparador de goleiros do Flamengo. Porém, como treinador de goleiros também trabalhou no Kashima Antlers (Japão), Fenerbahce (Turquia), Corinthians e Palmeiras. Cantareli integrou a comissão técnica da seleção japonesa para a Copa do Mundo de 2006, disputada na Alemanha. Na ocasião, Zico era o técnico da equipe do sol nascente.

Se o “Gênio da Lâmpada Mágica” aparecesse hoje em nossa frente e nos propusesse três petições, de certeza o primeiro pedido seria: que Cantareli voltasse para o gol do Flamengo. E quais seriam os outros dois? Com Cantareli no gol, o mago podia pegar sua lâmpada e ir-se embora.

Notas

[1] O argentino Ubaldo Matildo Fillol jogou no gol do Flamengo entre os anos de 1984-1985. Ele foi goleiro da seleção argentina campeã do mundo, em 1978.

[2] Harry Houdini era o nome artístico de Ehrich Weisz. Os truques ilusionistas de Houdini eram classificados de escapologistas, o que no mundo da mágica é a arte de escapar de amarras e armadilhas.

[3] A “brincadeira” com a palavra é para fazer alusão à mescla do extraordinário “Assis” com “cisco”. Benedito de Assis da Silva foi um dos maiores goleadores a vestir a camisa do tricolor das Laranjeiras. Por marcar gols decisivos nos “Fla-Flu” ficou conhecido como o “carrasco do Flamengo”. Literalmente, Assis foi por anos um “cisco” nos olhos dos goleiros do Flamengo.

[4] Helicóptero era o apelido do artilheiro Dadá Maravilha, um exímio cabeceador. Reza a lenda que só três coisas param no ar: beija-flor, helicóptero e Dadá Maravilha.

[5] Nesse período, Júlio César da Silva Gurjol foi também emprestado a outros clubes pelo Flamengo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Como citar

ZOBOLI, Fabio; RIBEIRO, Sérgio Dorenski Dantas. Cantareli, o mago da meta do Mengão. Ludopédio, São Paulo, v. 165, n. 13, 2023.
Leia também:
  • 177.28

    A camisa 10 na festa da ditadura

    José Paulo Florenzano
  • 177.27

    Futebol como ópio do povo ou ferramenta de oposição política?: O grande dilema da oposição à Ditadura Militar (1964-1985)

    Pedro Luís Macedo Dalcol
  • 177.26

    Política, futebol e seleção brasileira: Uma breve reflexão sobre a influência do futebol dentro da política nacional

    Pedro Luís Macedo Dalcol