48.4

Carência de modelos para a prática do futebol feminino

Giovana Capucim e Silva 12 de junho de 2013

Exatamente a que sentido da palavra modelo me refiro nesse título? À décima dada pelo dicionário eletrônico Houaiss: “exemplo dado por uma pessoa, uma coisa, que possui determinadas características em mais alto grau”. Lembro-me que ao longo da década de 90 quando jogávamos futebol e alguém fazia um golaço, este sempre gritava o nome do ídolo, que muitas vezes trazia na camisa. Mais comuns eram os goleiros que pulavam na bola (às vezes num lance simples), rolavam pelo chão ovacionando o nome do goleiro do time, numa imitação dos narradores de futebol. Quem nunca narrou o próprio lance durante um jogo entre amigos?

Esse processo, no entanto, não é apenas de imaginar-se como profissional, ocupando o lugar do ídolo. É uma busca por um estilo, uma forma de jogar a ser copiada. Palmeirense, lembro-me que observava minuciosamente a forma como o Alex, mas principalmente o Arce, destro como eu, batiam as faltas. Evidentemente, buscava repetir o estilo deles em minhas cobranças. Tentava imitar o “exemplo dado por uma pessoa em mais alto grau”, conforme a definição do dicionário.

E o que isso tudo tem a ver com o futebol feminino? Acredito já estarmos todos cansados (eu já estou, pelo menos) de afirmar os reconhecidos problemas de estrutura do futebol feminino. Não tem patrocínio porque não tem visibilidade. Não tem visibilidade porque a audiência é baixa, critica-se a qualidade. A qualidade e o interesse não aumentam porque não há patrocínio e estrutura. Estou, evidentemente, expondo um problema um tanto complexo de forma simplificada. Isso porque não é este o assunto de interesse central deste texto, mas passa por ele.

Vejamos: quando uma moça começa a jogar futebol, deve ela gritar Neymar, Oscar, Pato ou Diego Cavalieri, ao protagonizar uma grande jogada? O problema das mulheres no futebol vem muito antes da chegada delas nos poucos clubes que promovem a modalidade. Ele começa nas práticas mais simples e marginais do jogo, aquela simples “pelada com os amigos”. Todos fazem um gol e gritam o nome do ídolo. A moça se vê obrigada a apelar para um nome masculino. Alguns dirão: não, ela pode gritar Marta , Cristiane ou…

Cristiane e Marta comemora o gol do Brasil contra Camarões nos Jogos Olímpicos de Londres de 2012. Foto: Mowa Press.

É daí que quero partir: da carência de modelos para a prática do futebol feminino. É evidente que as duas atletas citadas são grandes jogadoras. Mas em ambos os casos o auge de suas respectivas carreiras está no passado. A idolatria é veloz e efêmera. Assim, como se dará a produção de novos ídolos? Bem, comecemos assim: como se formam os modelos? Quem é responsável por criá-los? A resposta não é difícil: em última instância, os grandes meios de comunicação. É a visibilidade e a produção de discursos sobre determinado(a) atleta que gera a idolatria. No entanto, como se viu, o futebol feminino se encontra num patamar de invisibilidade. Como, então se geram modelos para este esporte? Aí é que está o problema: eles não são produzidos e as praticantes do esporte se veem carentes de referências de quem possam emular os movimentos em sua própria prática esportiva.

Voltamos então ao velho problema: se não temos visibilidade, não temos patrocínio e assim por diante, como já sabemos. Essa questão é chave não apenas para o desenvolvimento de uma estrutura de qualidade para o trabalho das atletas, mas também para o desenvolvimento do esporte em outros níveis. Quando existem ídolos a serem imitados a tendência é que a busca por aquela prática entre os jovens aumente consideravelmente. Basta olhar para o fenômeno do MMA, apenas para se referir a algo atual. Se voltarmos no tempo cerca de 20 anos observaremos o mesmo fenômeno ocorrendo no vôlei (geração de 92) e no basquete (com Oscar, Paula e Hortência) que inspirou e produziu um grande aumento no número de praticantes em escolas e clubes.

Quando a moça inicia a prática do futebol, principalmente se ela ocorre em formações mistas, ela verá os colegas imitando, narrando e afirmando o nome de seus ídolos. Então ela se vê diante das seguintes opções: afirmar o nome de Marta, maior referência do futebol feminino brasileiro, hoje em baixa, tomar um modelo masculino ou, ainda, permanecer calada. Caso tome a primeira atitude, corre o risco de ouvir coisas que se dizem de grandes atletas que já não mais apresentam o futebol de outrora, um certo desdém. A afirmação de um modelo masculino causa problemas tanto dos olhares de repreensão (do tipo “você quer ser um homem?”), quanto problemas para a própria moça que se vê afirmando uma identidade masculina, o que não é socialmente aceito, principalmente entre adolescentes. A terceira opção deixa a atleta, digamos, desmotivada: todos podem afirmar que são Neymar, Pato, Ronaldinho e ela? Resta permanecer calada.

Treino da Seleção Feminina Sub-15 – Granja Comary. Foto: Rafael Ribeiro – CBF.

É evidente que não é absoluto esse processo. Ele possui períodos de brecha, especificamente a cada quatro anos, durante os Jogos Olímpicos. É nesta competição que as mulheres do futebol (assim como tantas outras modalidades olímpicas marginalizadas no Brasil) assumem um papel com um pouco mais de destaque. É bastante claro na imprensa brasileira que até mesmo nas Olimpíadas, para onde sequer vão os grandes ídolos do futebol masculino, esse esporte ainda é protagonista.

A maior parte dos esportes no Brasil passa por esse mesmo processo, então, por que minha insistência com o futebol feminino? Por que nisto há uma questão de gênero clara que, creio eu, não pode continuar ignorada pela sociedade. O handebol, o vôlei, a natação, o judô são esportes bem menores do que o futebol masculino em termos de visibilidade (que como apontei, é a chave de toda a questão de estrutura esportiva). Entretanto a visibilidade na imprensa desses esportes em suas versões masculina e feminina são bastante parecidas. Nenhuma modalidade esportiva possui o abismo de visibilidade que há entre o futebol masculino e o feminino. Não é necessário ser sociólogo para perceber que o futebol masculino é o esporte mais importante do Brasil. Talvez menos pelos títulos que conquistou e mais pelo espaço que ocupa em nossa cultura. Fato é que o futebol é um espaço de poder importantíssimo no qual as mulheres ainda não foram autorizadas a adentrar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Giovana Capucim e Silva

Mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP) e é integrante do GIEF (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol) e do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas-USP).

Como citar

SILVA, Giovana Capucim e. Carência de modelos para a prática do futebol feminino. Ludopédio, São Paulo, v. 48, n. 4, 2013.
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