Carnaval e futebol: paralelos que se cruzam
Em geral, o mês de fevereiro está associado a uma importante manifestação da cultura brasileira: o Carnaval, cancelado nos dois últimos anos em praticamente em todo o país devido à pandemia. Já o mesmo não tem ocorrido com o futebol, outro símbolo nacional, que, mesmo com a contaminação viral de jogadores e estádios sem sua capacidade total permitida ao público, prossegue incólume.
Carnaval e futebol têm uma relação íntima, nem sempre explícita. Talvez no Rio de Janeiro, mas também em outros rincões do Brasil, é sintomático haver uma associação entre a folia pagã e o mundo da bola. Há tempos pesquisadoras e pesquisadores investigam as relações entre os dois universos, algo que rende bons debates socioantropológicos.
O antropólogo Roberto DaMatta, um dos importantes estudiosos de tais assuntos, versa sobre esse binômio de nossa cultura em sua produção acadêmica, referindo-se a essas duas manifestações como parte constitutiva do que nomeia “identidade nacional”.
As esferas que envolvem o futebol e o Carnaval se interseccionam. No meio delas, numa zona de encontro, há dimensões intercambiáveis que envolvem sentimentos de pertencimento grupal, de júbilo, alegrias incontidas, catarse, gozo farto. O Carnaval e o futebol, de modos não muito distintos, tomam o corpo como central.
E as sexualidades e expressões de gênero afloram e se contorcionam, ora fazendo rir ao deslocar identidades heteronormativas, ora propondo novos e distintos estilos de vida. O “viado”, a “puta”, o “garanhão”, a “popozuda” e afins são, ao mesmo tempo, fantasias e realidades, que zombam do cotidiano e suspendem certezas.
Mais especificamente em termos futebolísticos, seja por meio de escolas de samba, blocos ou outra forma de expressão cultural carnavalesca, grande parte dos brasileiros teve, em certo momento, algum tipo de contato com a folia.
Até mesmo intersecções entre os dois universos já ocorreram em desfiles de Escolas de Samba, que há mais de 40 anos vez ou outra trazem enredos sobre clubes de futebol.
Assim aconteceu no centenário do Flamengo, em 1995, quando o clube foi homenageado pela Estácio de Sá com o enredo “Uma vez Flamengo”; ou com o Vasco da Gama, em 1998, quando o samba-enredo da Unidos da Tijuca, que comemorando o centenário do clube, se tornou um dos cânticos mais populares entre os torcedores vascaínos a partir do desfile daquele ano; com o Corinthians, em 2010, a Gaviões da Fiel prestigiou o aniversário de 100 anos do clube com uma letra que levava o grito da torcida para a avenida (“Corinthians… o meu orgulho de ser Gavião”); e até mesmo com o Grêmio, que foi enredo da escola gaúcha Unidos de Vila Isabel no carnaval de Porto Alegre, em 2013.
A “Passarela do Samba”, da Marquês de Sapucaí, também se torna recanto dos boleiros durante os dias de apresentação das escolas: é comum ver, por exemplo, jogadores transitando nos intervalos entre desfiles, indo e vindo com lindas mulheres e conhecidos(as) famosos(as). Já vimos fazer isso Neymar, Ronaldinho Gaúcho e vários outros.

Até o esporte LGBTIQA+ pode comemorar sua participação mais que exitosa naquele considerado por muitos “o maior espetáculo da Terra”. Em 2018, segundo ano de boom do movimento de equipes esportivas nascidas sob dita sigla, BeesCats e Alligaytors, do Rio de Janeiro, foram convidadas para desfilar pela Paraíso do Tuiuti, escola de samba do bairro de São Cristóvão, na zona norte da cidade.
Muitos dos integrantes jamais haviam colocado os pés no Sambódromo, muito menos vestidos com fantasias mais robustas do que aquelas usadas nos blocos de rua. Os ensaios semanais retrataram o empenho para aprender o samba e, principalmente, a coreografia. E havia um requinte de desafio: a ala era coreografada, fator que trazia uma responsabilidade a mais – afinal, qualquer erro poderia resultar em pontos descontados da escola.
O enredo, de temática afro, algo comum no Carnaval, questionava se a escravidão estava realmente extinta no Brasil. Além de toda a representatividade, levava adiante uma polêmica por ter reverberação política, trazendo uma figura de um vampiro, em um carro alegórico, com aparência similar ao então presidente Michel Temer.
E as equipes podem ser consideradas “pés-quentes”: se a Tuiuti sofria com rebaixamentos durante a década e não alcançava um lugar no desfile das campeãs, foi naquele ano que veio o resultado mais destacado da agremiação, qual seja, um vice-campeonato, apenas um décimo atrás da campeã Beija-Flor. O desempenho ainda rendeu um título informal nas redes sociais: tocando numa das feridas sociais do Brasil, a Tuiuti foi considerada a “campeã do povo”.
Carnavalescos, passistas, sambistas, profissionais, foliões que fazem a festa acontecer, LGBTIQA+ ou não, dão vida aos desfiles. Todos se encontram em um ambiente consideravelmente democrático, sobretudo se comparado ao esporte. No carnaval todes são bem-vindes para celebrar seu amor pela agremiação pela qual torcem, assim como deveria ser no esporte (ou no futebol) e em seus espaços, sem constrangimentos ou violências de quaisquer naturezas.
Vinculados umbilicalmente, Carnaval e futebol são paralelos que se cruzam e se enveredam nos paradigmas da diversidade. Se para o primeiro a diversidade está em seu DNA, ao segundo resta se apropriar dela para se melhorar, ou talvez se reinventar. Neste sentido, o futebol LGBTIQA+ pode ser uma inspiração.