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Carreira de curto ciclo: atleta profissional de futebol

Luciana Ferreira Angelo 26 de maio de 2014

Rolando a bola com destreza e jogo de cintura, fazendo um desenho no gramado, apresentando suas formas de ser, de sentir e fazer futebol. É possível num campo como este encontrarmos as nossas aspirações para marcar um gol, acertar o drible e participar da vida ativa, viva e entusiasmada extra campo, com muitas atividades e ainda pouco conhecimento da rotina de treino e repetição.

O famoso “jogador de futebol”. Considerado atleta profissional de futebol, protagonista do espetáculo esportivo que segundo Damo (2007) gasta por volta de 5.000 horas durante 10 anos de treinamento físico, e quase nada em aprendizado intelectual. A quantidade de horas gastas sugere três fases no processo de formação de um atleta de futebol: endógeno (o clube promove os jogadores vindos das categorias de base estimulando a economia e os vínculos de identidade clube/atleta), exógeno (empresas mentoras do projeto que forma os “pés de obra” lucrando com a venda dos passes) e hibrido (conciliando a formação afetiva das “pratas da casa” com a produção do mercado).

E tendo a oportunidade de conhecer atletas de diversas gerações por meio das entrevistas realizadas para o projeto de pesquisa “Memórias olímpicas por atletas olímpicos brasileiros”, que estuda a história de vida de todos os atletas brasileiros que já participaram de Jogos Olímpicos, o que surpreende é a repetição histórica das formas de construção da carreira dos atletas.

Importante compreender que a carreira não se limita a uma posição ou ocupação profissional, ela diz respeito à trajetória de vida de uma pessoa, especificamente àqueles momentos vinculados ao trabalho (Hughes, 1996). Porque a carreira é, ao mesmo tempo, um fenômeno individual e coletivo; os indivíduos a experimentam, mas eles o fazem a partir de possibilidades definidas contextualmente. A carreira oferece mudança de status (ritos de passagem e de transição) ao longo do tempo, e gera mudanças nos papéis sociais e nas identidades, pois a mesma implica em uma posição social que é fonte de poder, pois a partir dela nos relacionamos com as estruturas sociais.

A noção de carreira no século XX imprimia a ideia de proliferação e da diversificação de profissões. No conflito indivíduo e coletivo, as práticas de gestão de carreira apresentavam certa passividade e ausência de identificação com o trabalho. As categorias sociais (Goffman, 1990) passaram a fazer parte da sociedade industrializada e consolidada em bases de formação e manutenção do estereótipo do indivíduo vencedor. Em um contexto de culto à performance, a resposta à questão “ O que é ser bem-sucedido?” é simplificada pelos “especialistas em sucesso” (Ehrenberg, 2010). Para ser bem-sucedido, o indivíduo tem que ambicionar “tornar-se melhor”! Para reconhecer-se como tal, precisa ser reconhecido desse modo pelos outros. Segundo Casado & Borges (2013), a busca por tornar-se alguém – o melhor – confunde a esfera privada e a esfera pública, visto que a conquista de uma identidade pessoal depende da capacidade e da habilidade para incorporar um modelo público de performance associado a uma identidade profissional.

As novas formas de trabalho praticadas desde o final do século XX mostram uma forma de governo próprio das carreiras: o autogerenciamento. Para Grey (2005), o autogerenciamento é um mecanismo sofisticado de vigilância para disciplinar a subjetividade. Segundo o autor significa que os indivíduos tornam-se empreendedores do self, que passa a ser construído como uma entidade para um sistema caracterizado por aqueles que se autogovernam. A medida que o autogerenciamento é feito ocorre a sublimação de papéis de sua vida para desenvolver a sua carreira; os amigos são transformados “em contatos”, a atividade social se torna networking, o casamento e a escolha do cônjuge tornam-se um trunfo ou um problema. Assim, a vida profissional invade a vida privada!

Esta invasão não permite o crescimento substantivo do sujeito e ainda compromete a construção de identidade, visto que o espaço do trabalho e o espaço do não trabalho se confundem; como consequência, os momentos para a reflexão de cada espaço são reduzidos. No século XXI, as competências individuais são essenciais para que novas aquisições e novas aprendizagens possam ocorrer. Porém, fato é que a eliminação de autogerenciamento para autoconhecimento necessita do desenvolvimento do pensamento crítico, pois é o único gerador de capital intelectual.

Na história do esporte, considerando a importância da concepção do amadorismo no século XIX e ao longo de mais da metade do século XX, Elias e Dunning (1992) citam que a competitividade da sociedade contemporânea levou a um inevitável abandono das atividades tidas como amadoras, que na essência do termo seriam aquelas feitas por amor, em detrimento das ações especializadas, passíveis de serem desenvolvidas dentro de uma estrutura profissional que leva à especialidade máxima, e isso não ocorreria somente com o esporte. Assim, o amadorismo foi, no passado, considerado uma virtude humana e condição sine qua non para qualquer atleta olímpico. Mas, mais do que um valor ético essa imposição era um qualificador pessoal e social dos atletas que se dispunham a seguir a carreira esportiva (Rubio, 2003).

Brasil
Jogadores da seleção brasileira que disputarão o Mundial de 2014 representam o sucesso da carreira de jogador de futebol. Foto: Rafael Ribeiro – CBF.

Da forma como se estruturou, o Esporte Moderno apresenta os mesmos valores da sociedade capitalista, como a necessidade de mensuração dos resultados, a competitividade e a seriedade (Elias e Dunning, 1992). Segundo Ardoino e Brohm (1995), a partir da necessidade de quantificar a performance surge a tecnologia corporal, a regulação burocrática, as competições, a espetacularização e a mercadorização das práticas esportivas. E para que se dê sustentação a essa estrutura, o sistema hierárquico é criado para gerir o mundo do esporte: COI (Comitê Olímpico Internacional) que controla os esportes olímpicos e a FIFA (Federação Internacional de Futebol) que controla especificamente tudo o que se refere ao futebol (Giglio, 2013).

A profissionalização alterou a organização esportiva, tanto do ponto de vista profissional quanto institucional. O esporte se tornou carreira profissional cobiçada, um meio de ascensão social e uma opção de vida. A competição atlética ganhou visibilidade e complexidade ao se tornar espetáculo esportivo e produto da indústria cultural. (Giglio, 2013).

O esporte é entendido por Guttmann (1978) como uma forma genuína de adaptação à vida moderna e pode ser entendido como um tipo de trabalho disfarçado e desmoralizante. Apresenta características como disciplina, autoridade, iniciativa, perfeição, destreza, racionalidade, organização e burocracia, provas do mimetismo e da dependência existentes entre o esporte e o capitalismo industrial.

Em especial no futebol, com a amplitude de fronteiras, aumento de público e número de eventos relacionados à modalidade, as federações perceberam que administrar o jogo significava mantê-lo sob o controle e divulgá-lo, e que os custos disso implicavam sem estratégias de gerenciamento para a sua manutenção. A mercantilização do futebol fez com que a modalidade passasse de status de esporte para a condição de serviço ou bem comercial, pois já se apresentava como atividade lucrativa (Pereira, 2008).

Se verificarmos a estrutura hierarquizada, a FIFA possui domínio total em relação ao futebol profissional, sendo que não existe futebol profissional fora do sistema FIFA (Damo, 2006). Diante desta estrutura que coloca os jogadores como base dessa hierarquia, Damo (2008) desenvolve o argumento sobre a necessidade de entendimento dos jogadores a partir de seu duplo estatuto, o de pessoa e mercadoria. Giglio & Rubio (2013) apontam que segundo o conceito de comodificação desenvolvido por Giullianotti (2007, p.13), o jogador que tiver a sua força de trabalho corporal reconhecida no meio futebolístico aumenta as chances de transformar seu saber corporal em maior rendimento financeiro. Porém, o mercado do futebol tem pouca mobilidade dos atletas para clubes de diferentes divisões. Esse valor de uso, que atesta quanto vale cada atleta, só será materializado quando são consumidos (vendidos). Caso contrário, o jogador poderá ter o seu valor fixado, mas se não for negociado o valor estipulado nada vale.

Joseph Blatter
Joseph Blatter, presidente da Fifa. Foto: Tânia Rêgo – Agência Brasil.

Uma das questões desafiadoras da sociedade contemporânea é o desenvolvimento de uma identidade profissional concomitante ao processo de construção da carreira. O desenvolvimento dessa identidade corresponde a um complexo conjunto de escolhas individuais e de determinações públicas presentes na cultura de uma sociedade.

Um indivíduo que assume uma ocupação desenvolve atitudes profissionais que têm diferentes dimensões técnicas, políticas, emocionais e estéticas. A dimensão técnica refere-se às atividades e aos objetivos da profissão. A dimensão política diz respeito à posição que o indivíduo irá ocupar num determinado sistema social e às relações deste com a comunidade. A dimensão emocional trata das regras de sentimento que irão orientar o comportamento do indivíduo e da carga de trabalho emocional a que ele estará sujeito no exercício da profissão. A dimensão estética abrange a mobilização do capital físico e o desenvolvimento de uma aparência estabelecida como adequada para o desempenho da profissão. Essas quatro dimensões existem dentro de limites gerais colocados pela cultura da sociedade (Casado & Borges, 2013).

O desenvolvimento de uma identidade profissional corresponde, a um processo de incorporação de (pré) definições de natureza técnica, política, emocional e estética que dizem quem esse profissional deve ser: identidade prescrita. E, ao mesmo tempo, é um processo que se inicia, em geral, com a idealização e segue em busca por realização da profissão imaginada, sonhada e desejada; processo marcado pelo enfrentamento de desafios e limites à questão de quem o indivíduo está se tornando: identidade real. Esses dois processos indicam, respectivamente, a centralidade da objetividade e da subjetividade no desenvolvimento da identidade profissional (Casado & Borges, 2013).

A emergência de uma nova profissão, além de ser resultado de transformações sociais mais amplas, representa uma maneira específica de fazer, ser, sentir, agir, vestir, beber, comer e de definição de lugares para morar e se divertir. Essa maneira é criada, mantida e transformada pelos indivíduos em seu esforço para demarcar uma posição distinta na sociedade e para consolidar o seu pertencimento a um grupo profissional. Ela é, ao mesmo tempo, vivida e imaginada individual e coletivamente, pois influenciada pelo contexto histórico, econômico, cultural e político. Trata-se de um longo processo de autogerenciamento, gerenciamento das impressões dos outros sobre si mesmo e de adequação às sanções publicas que perpassa a vida cotidiana.

A vida profissional é vivida por atores mais ou menos conscientes de seus projetos de carreira, porém, eles estão sujeitos aos riscos advindos dos desencontros e julgamentos dos outros, independente das suas próprias escolhas: recusar ou aderir a uma identidade profissional prescrita.

Referências

ARDOINO, J. ; BROHM, J. M. Repères et jalons pour une intelligence critique du phénoméne sportif contemporaisn. In: Baillette, F. & Brohm, J. M. (Eds), Critique de la modernité sportive. Paris: Les Éditions de la Passion, 1995.

BORGES, J. F. & CASADO, T. Identidade profissional. In: DUTRA, J. S. & VELOSO, E.F.R. (orgs) Desafios da gestão de carreira. São Paulo: Atlas, 2013.

DAMO, A. S. Dom, amor e dinheiro no futebol de espetáculo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Campinas, v. 23, n. 66, p. 139-150, 2008.

______. Do dom à profissão. A formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Ed.; Anpocs, 2007.

______. O ethos capitalista e o espírito das copas. In: GASTALDO, Édison; GUEDES, Simoni L. (orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niteroi: Intertexto, 2006.

ELIAS, N.; DUNNING, J. A busca da excitação. Lisboa: Diefel, 1992.

EHRENBERG, A. O culto da performance. São Paulo: Ideias & Letras, 2010.

GIGLIO, S.S.; RUBIO, K. Futebol profissional: o mercado e as práticas de liberdade. Revista Brasileira de Educação Física e Esportes, 27 (3), 387-400, 2013.

GOFFMAN, E. Stigma. London: Penguin Books, 1990.

GREY, C. Career as a Project of the self and labour process discipline. In: Pullen, A.; Linstead, S. (Ed). Organization and identity. New York: Routledge, Taylor & Francis Group. 2005, p. 107-126.

GIULIANOTTI, R. e ROBERTSON, R. (2007) “Forms of Glocalization and the Migration Strategies of Scottish Football Fans in North America”. Sociology, vol. 41

GUTTMANN, A. From ritual to record. New York: Columbia University Press, 1978

HUGHES, E. C. Le regard sociologique. Paris: Éd. De L´Ecole des Hautes Études em Sciences Sociales, 1996.

PEREIRA, A. B. A construção social do tipo “jogador de futebol profissional”: um estudo sobre os repretórios usados por jogadores de distintas categorias etárias e por integrantes de suas matrizes. 2008. 196 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social)- Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

RUBIO, K. The professionalism legacy; the impact of amadorism transformation among brasilian olympic medalists. In: MORAGUAS, M.; KENNET, C.; PUIG, N. (eds) The legacy of the Olympic Games 1984 – 2000. Barcelona/ Lausanne: Olympic Studies Centre of the Autonomous University of Barcelona| Olympic Studies Centre of the International Olympic Committee, 2003.

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Luciana Angelo

Doutora em Ciências pela Escola de Educação Física e Esporte da USP.

Como citar

ANGELO, Luciana Ferreira. Carreira de curto ciclo: atleta profissional de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 59, n. 8, 2014.
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