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Cartografia da várzea em Belo Horizonte

Raphael Rajão Ribeiro 24 de janeiro de 2020

Na série de textos que tenho publicado na seção Arquibancada, compartilho com os leitores alguns dos resultados do estudo integrante do Inventário do Futebol Amador em Belo Horizonte realizado entre 2016 e 2018. Em artigos anteriores, apresentei o projeto que originou a pesquisa e, em duas partes, tratei da cultura esportiva popular, primeiro falando sobre amistosos e excursões e, depois, sobre festivais, jogos festivos e torneios avulsos. Neste artigo, examinarei a trajetória espacial dos campos de várzea na cidade, uma questão importante para o significado social da prática.

A trajetória do futebol em Belo Horizonte sempre foi marcada pela necessidade de criação de campos de jogo. Por mais que, no plano da nova capital, houvesse uma preocupação com a instalação de áreas para a prática esportiva, a exemplo da previsão de um hipódromo, no atual bairro Prado, e de um velódromo, no Parque Municipal, terrenos destinados à nova modalidade não foram considerados[1].

Planta Geral da Cidade de Minas, 1895. Foto: Acervo APCBH.
Em detalhes, Hipódromo e Parque Municipal, 1895. Foto: Acervo APCBH.

Nessa medida, desde os primeiros anos, o desenvolvimento do futebol pressupôs a reconfiguração de espaços para a experimentação da prática. No caso dos clubes vinculados às camadas médias e altas da cidade, foi a área central do plano da nova capital o local preferencial. Especialmente terrenos desocupados, convertidos em campos de jogo. Enquanto o Club Sports Hygienicos ocupou o Parque Municipal, Athletico, America, Yale e Palestra Itália concentraram-se na Avenida Paraopeba, atual Augusto de Lima, onde hoje se situam, respectivamente, o Minascentro, o Mercado Central, o Fórum de Justiça e a Sede Social do Cruzeiro[2].

Projeto de Arquibancadas do América Futebol Clube, situado onde hoje está o Mercado Central de Belo Horizonte. Foto: Reprodução/Acervo APCBH.

A exemplo do que ocorria em relação à filiação às entidades diretivas, no que se refere à ocupação espacial, uma clara distinção se construía entre o futebol profissional e o varzeano. Essa diferenciação se demonstra pela percepção dos dois tipos de área de jogo pelo poder público, o que pode ser observado em plantas cadastrais e restituições de levantamentos aerofotogramétricos. Enquanto os campos das agremiações tradicionais eram registrados, os das populares eram tratados como vazios urbanos.Da mesma forma, os clubes da região suburbana empreenderam a criação de campos em áreas disponíveis, que permitissem um beneficiamento sem grande esforço para a conversão em espaço de jogo. Ao contrário das agremiações de elite, que conseguiram concessões dos terrenos desde os primeiros anos, o que garantia a oferta de alternativas e generosas indenizações no momento em que o local era requisitado, as entidades de extração popular não contavam com os mesmos benefícios, seja por falta de conhecimento dos trâmites, seja pelo não reconhecimento da ocupação que realizavam.

Essa situação impactou, em diversos casos, as trajetórias dos espaços de jogo e das entidades, pois, como se tentará demonstrar, a articulação entre os dois é uma condição fundamental da manutenção dessa cultura esportiva popular.

Ao se observar a atual distribuição de campos de futebol de várzea em Belo Horizonte (vide mapa abaixo), observa-se sua total ausência da área circundada pela Avenida do Contorno, bem como sua escassez no entorno imediato, no que seria a antiga zona suburbana da capital. Percebe-se que os poucos exemplares próximos ao Centro são fruto de permanência ou renovação incipientes. A tendência recente é de ocupação das franjas do município, em locais afastados das principais vias de circulação, o que explica que, apesar do bom número de espaços de jogo, pouco mais de 150, haja sensação de ausência desses equipamentos esportivos na capital mineira.

Levantamentos aerofotogramétricos do Município de Belo Horizonte 1953, 1967, 1981 e 1989 e imagens de satélite Google Earth. Foto: Acervo do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte – APCBH; Empresa de Processamento de Dados do Município de Belo Horizonte – PRODABEL; Google Earth. Elaboração: Raphael Rajão.

Tal distribuição relaciona-se a processos de desaparecimento de campos que foram narrados pelos envolvidos com a prática, os quais ajudam a compreender a dinâmica de criação e manutenção desses espaços esportivos e os riscos que incidem sobre a sua continuidade.

Conquista, manutenção e perdas de campos de jogo são temas centrais nos depoimentos dos envolvidos com o futebol amador entrevistados para a composição do inventário. Tal destaque pode ser rapidamente compreendido quando se observa que do universo de 41 entidades pesquisadas, ou seja, que superaram a barreira dos cinquenta anos de atividade, 30 delas administram um campo, enquanto, apenas 11, não o fazem. Nesse último caso, 5 dos 11 clubes passaram por interrupção de suas atividades durante vários anos, o que não se identifica nas agremiações estabelecidas, durante todo o tempo, no território.

Nessa perspectiva, a vinculação e a posse de um campo, seja definitiva, seja como concessionário, são quase que determinantes para a longevidade de uma agremiação varzeana. Não é por acaso que as conquistas de espaços de jogos ganham tons épicos nas narrativas dos envolvidos. A transformação da paisagem natural, o engajamento dos membros do time, a esperteza na articulação de apoios para o beneficiamento do terreno são temas recorrentes. Exemplo disso é a narrativa de Marco Antônio Coelho, mais conhecido como Grapete, pertencente ao Inconfidência Esporte Clube, do bairro Concórdia:

Eu lembro que na época que eles conseguiram abrir aqui, foi coisa bonita que eles fizeram. Eu era menininho, mas eu lembro. Era carroça demais, eles conseguiram na base de umas trinta carroças. Os caras chegavam aqui e jogavam terra aqui embaixo, aqui do lado do grupo. O barranco, lá de cima, vinha até quase aqui no meio do campo, foi terra demais que eles tiraram, ficou mais de três meses… A minha tia Pascoalinda que trazia água pra eles na bilha desse tamanho, pra eles beber água de noite aí ó. Os caras chegavam, trocavam de roupa e já vinham trabalhar aqui.[3]

A possibilidade de manter um espaço de jogo é central na organização de um clube de várzea. Significa a independência de arcar com ajudas de custo em campos alheios, de ter que se deslocar para fora de seu bairro de origem, de não cativar uma base de apoiadores. Não por acaso, as narrativas de perda dessas áreas assumem tons tão trágicos. Como se vê no depoimento de Eliana da Conceição Costa, ex-secretária do Avante Futebol Clube, do Aglomerado da Serra, filha da então presidente Maria da Conceição Silva:

Sem mais nem menos, eu estava aqui, fazendo almoço, que eu trabalhava à tarde, aí chegou uma menina aqui correndo e gritando: “Eliana, Eliana, estão arrancando as traves do Avante”, nessa época as traves já eram de ferro. […] Aí eu peguei e falei: “Meu Deus, quem é que eu vou chamar agora, tio Ivo não tem jeito, quem é que eu vou chamar?”, tio Ivo já tinha até morrido, não, tinha não, tio Ivo adoeceu por causa disso, ele ficou doente por causa disso. Aí é, mandei ir correndo chamar o Silas, o Silas tinha uma banquinha de verduras ali em baixo, aí mandei ir correndo chamar o Silas, aí o Silas veio correndo, desceu correndo atrás do tio Ivo, foi atrás do tio Ivo, tio Ivo veio, eles foram atrás da Prefeitura, porque perguntaram os caras, os caras disseram que eram da Prefeitura. Foram lá, e tudo, tentaram trazer de volta, ia até pra polícia, mas não adiantou nada, a polícia também não adiantou nada, a Prefeitura mandou tirar e levar e falou: “oh, as traves vão ficar guardadas aqui, se vocês arrumarem um outro terreno pra fazer o campo a Prefeitura cede e devolve as traves pra vocês”. Só que aí, arrumou aquele da rua [inaudível] lá, que começou a passar o trator e ficou por isso mesmo, só passava um pedaço também, né? [4]

A situação fundiária dos campos de várzea em Belo Horizonte alterou-se com o tempo. Num contexto de expansão da cidade, em meados do século XX, havia grande disponibilidade de terrenos. A ocupação de lotes em comum acordo com os proprietários era recorrente, já que a presença do equipamento esportivo prevenia o risco de invasão. Grandes especuladores, a exemplo de Antônio Luciano, proprietário da construtora FAIAL, incentivavam a prática, mantendo suas portas abertas às equipes e, em alguns casos, oferecendo a construção de vestiário para as agremiações, com a condição da desocupação quando ocorresse o loteamento do lugar.

Com o avanço da urbanização e a pressão por terras, muitos dos campos mantidos nessa situação desapareceram. Contudo, o surgimento da previsão legal de reserva de área institucional em novos loteamentos, fez com que alguns campos fossem preservados, justamente nesse espaço de uso comunitário, com a consequente transferência da posse para a Prefeitura e posterior concessão de permissão de uso às entidades.

Planta CP de parte do bairro Alto dos Pinheiros, com previsão de área institucional em terreno ocupado pelo Reunidos Esporte Clube, 1997.

Dada essa situação, hoje, a maioria dos campos localiza-se em áreas pertencentes ao município, seja pelo mecanismo da reserva de área institucional, seja pela concessão de permissão de uso de áreas que já pertenciam à Prefeitura. Nesse último caso, vale destacar a política implantada pela Secretaria Municipal de Esportes, nos anos 1980, que assinou inúmeros contratos de cessão com as agremiações, o que garantiu estabilidade de utilização dos espaços. Normalmente com prazo de 20 anos, os termos expiraram e, agora, são renovados individualmente.

Feito esse panorama da distribuição espacial dos campos na cidade, é hora de compreender de que forma eles articulam uma cultura esportiva popular à comunidade do entorno. Esse será o tema do próximo texto da série.


Notas

[1] RIBEIRO, Raphael Rajão. A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal. Rio de Janeiro: Drible de Letra, 2018, p. 39.

[2] RIBEIRO, op. cit., p. 112-113.

[3] COELHO, Márcio Antônio [62 anos]. [mai. 2016]. Entrevistador: Raphael Rajão Ribeiro. Belo Horizonte, MG, 2 mai. 2016.

[4] SILVA, Maria da Conceição [89 anos] e COSTA, Eliana da Conceição [62 anos]. [mar 2017]. Entrevistador: Raphael Rajão Ribeiro. Belo Horizonte, MG, 10 mar. 2017.

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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão. Cartografia da várzea em Belo Horizonte. Ludopédio, São Paulo, v. 127, n. 25, 2020.
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