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A história contada pela Carvoeira, a nova camisa do Criciúma

Lançamento da Carvoeira, nova camisa do Criciúma
Lançamento da nova camisa do Criciúma E.C.: contar uma história por meio da camisa tem sido estratégia de marketing eficiente. Mas que história é contada? Foto: Reprodução/www.tigremaniacos.com.br

Qual a história contada pela Carvoeira, a nova camisa do Criciúma? Uma das questões que menos pesquisamos no futebol no Brasil é a maneira com que as instituições trabalham o seu passado, a sua história. Vemos que os chamados “usos públicos do passado” estão na ordem do dia na nossa sociedade. Que estátuas devem ficar de pé, que ruas devem mudar de nome? Como está sendo contada a história da ditadura a públicos mais amplos? De que maneira o passado do império brasileiro tem sido mobilizado por movimentos monarquistas e de extrema direita?

Essas e outras perguntas poucas vezes são feitas no contexto do futebol. No entanto, os clubes de futebol e as seleções são pródigas na construção de um determinado passado. O Corinthians, o Inter-RS, o Atlético-MG e o Cruzeiro se denominam “times do povo”. E trabalham suas histórias (em livros, no site oficial, em produtos licenciados, em seus memoriais, museus e outros lugares de memória) no sentido de mostrar a validade desta identidade. Neste texto, procuro explorar um caso recente. A história contada pela Carvoeira, a nova camisa do Criciúma.

Algumas pesquisas sobre o tema

Sobre esta temática, cheguei a publicar três artigos, com objetivos diferentes. Um deles foi pensando justamente na questão do “time do povo”: Publiquei em parceria com o Prof. Ary Rocco, da Escola de Educação Física e Esporte da USP na revista uruguaia Estudios Históricos, com o título “O “time do povo”: vantagem competitiva na construção e na manutenção da identidade de uma organização esportiva”. A ideia foi investigar como o clube foi se afirmando como aquele identificado com as camadas mais populares e como foi apresentando fatos de sua história neste sentido. Por fim, tentamos mostrar como o uso mais intenso desta identidade em estratégias de marketing do clube alavancaram suas receitas e até mesmo o seu número de torcedores.

Corínthians: camiseta Time do Povo
Camiseta do Corínthians “Time do Povo”. Foto: Reprodução/www.shoptimao.com.br

O segundo artigo foi publicado com Alex Lopes Granja, que orientei no mestrado da Uninove. Publicamos na revista Cadernos de Pesquisa CDHIS, um artigo com o título “Maloqueiro e sofredor: memórias, identidades e oralidades de uma torcida de futebol”. A ideia do artigo era mostrar como as memórias dos torcedores do Corinthians estavam ligadas às características cantadas em uma famosa música da torcida: Corinthiano, Maloqueiro e Sofredor. Por meio de entrevistas a torcedores em dias de jogos, reforçava-se o papel da memória na construção de uma identidade do torcedor com as camadas populares.

O último deles também foi publicado em parceria com Alex Lopes Granja, “O Poder do Passado: A Utilização da Memória Organizacional na Construção da Identidade de Clubes de Futebol”, fruto de sua dissertação de mestrado. Neste trabalho, foram feitas entrevistas a torcedores nos estádios de São Paulo. Tentamos compreender como os torcedores identificavam seus clubes e que momentos da história do clube eram os mais significativos para aqueles torcedores.

Internacional-RS: Camiseta Clube do Povo.
Camiseta do Internacional-RS: Clube do Povo. Foto: Reprodução/www.netshoes.com.br

As conclusões a que chegamos foram as seguintes: “O  passado  das  organizações  esportivas, e  particularmente  dos  clubes  de  futebol no Brasil, estão muito presentes nas memórias dos torcedores. Suas memórias estão repletas de momentos nostálgicos, de momentos que evocam aspectos tradicionais e de identidade de seus clubes, que os diferenciam dos outros. As ações de retromarketing podem ter um poder triplo: o de auxiliar no processo de elaboração da memória organizacional, o de promover a identidade  organizacional  através  do  reforço  de  aspectos  do  passado  e  o  de  servir  como potencial fonte  de  receita  através  da  comercialização  de  produtos  que  fazem  alusão  ao passado”.

A partir deste estudo é que gostaria de apresentar a interessante estratégia de marketing adotada recentemente pelo Criciúma Esporte Clube. A equipe, que foi rebaixada para a série C no ano passado, apresentou no dia 31 de julho de 2020 o seu novo uniforme. As novas peças procuram fazer alusão não à história do clube, mas à história da cidade: sua origem ligada às minas de carvão.

O lançamento da “Carvoeira”

Carvoeiro com Carvoeira
Foto da campanha de lançamento da camisa do Criciúma 2020. A busca da “identidade carvoeira”. Foto: Reprodução/www.tigremaniacos.com.br

A série de vídeos lançados no canal oficial do Youtube do clube buscam exatamente o que Sutton, McDonald, Milne e Cimperman (1997) apontam no artigo “Creating and Fostering Fan Identification in Professional Sport” como a estratégia fundamental para aumentar a identidade dos torcedores com seus clubes: reforçar a história do clube na sua comunidade. Esta é uma estratégia usada, e analisada, há bastante tempo por organizações esportivas nos Estados Unidos e por pesquisadores da área do esporte neste país. Os autores deste artigo, por exemplo, são professores universitários que pesquisam marketing junto do vice-presidente de marketing do Los Angeles Kings, equipe de hóquei no gelo da NHL.

Os vídeos da campanha de lançamento das novas camisas do Criciúma tentam mostrar a importância das minas de carvão (e de seus trabalhadores e trabalhadoras, porque não?) na construção da cidade. E procuram vincular esta história à importância do clube Criciúma para a cidade.

Vale ressaltar que o Criciúma é uma das equipes que está apostando em uma marca própria de uniformes, a Garra 91. Ou seja, a ação de marketing foi de responsabilidade da fornecedora própria do clube. Destacam-se a qualidade dos vídeos, das imagens e do roteiro.

Dias antes do lançamento da camisa, o canal oficial do Criciúma no Youtube, a TV Tigre, passou a postar vídeos que preparavam o clima da chegada do novo uniforme. O primeiro vídeo (“Origens“) apresenta algumas imagens do que parecem ser vídeos oficiais de propaganda das minas de carvão da cidade e de noticiários antigos. O carvão é colocado como elemento que deve cumprir “sua elevada missão” na cidade. Um breve passagem mostra caixas de dinamite, usadas nas minas, com uma voz em off com a frase “acompanhamos os dramas e aflições dos mineiros de carvão de Criciúma, em Santa Catarina”. A partir daí, imagens vagões de trem e de um mineiro trabalhando encerram o vídeo. Ao final a hashtag #soucarvoeirosimsenhor, em alusão a uma das músicas entoadas pela torcida do Criciúma.

O segundo vídeo (“Carvoeiro sim senhor!“), postado no dia seguinte, traz imagens de fundo das minas de carvão e de seus trabalhadores. Por cima, vídeos de momentos importantes do clube e vozes em off de personalidades ligadas à história do clube falam da ligação do clube com a cidade. São falas de Paulo Baier, Levir Culpi e outros. A de Dejair, uma das últimas do vídeo, deixa clara a intenção: “Da terra do carvão para o mundo”.

O terceiro vídeo (“Nossas raízes“) foi postado no mesmo dia em que o segundo. Um vídeo atual foi filmado na Mina de Visitação Octávio Fontana, em Criciúma. São mostrados três atores vestidos como operários das minas e sujos de carvão: um homem branco, um homem negro e uma mulher branca. Uma frase aparece na tela “Em algum lugar debaixo da terra” e anuncia uma data e horário: sexta-feira, 10h. Indicava assim o momento em que seria lançada a nova camisa

Eis que na sexta-feira, dia 31 de julho de 2020, às 10h, o vídeo com a nova camisa foi lançado (“Camisa Carvoeira“). O vídeo inicia com a explicação das cores do clube: “Do amarelo, vem nossas riquezas. Do branco nossa união. Mas é preto que conta nossa história”. A narração segue: “O preto da luta, da honra, o preto do carvão”. Afirma que poucos têm o privilégio de torcer para um clube que representa uma região de tanta gente “guerreira e trabalhadora”. “Somos diferentes” é a frase que busca marcar essa identidade do clube. “Somos quentes na arquibancada e frios para enfrentar nossas maiores batalhas: como uma mina a 100 metros da terra”.

Percebam a frase que segue: “Torcida do Criciúma: está materializado todo o nosso sentimento de pertencimento e orgulho das nossas origens. Apresentamos a camisa mais pesada de Santa Catarina. E ela tem nome. Seja bem-vinda, Carvoeira”. Com esta frase, é mostrada em detalhes a belíssima nova camisa do Criciúma.

Detalhe da Carvoeira, nova camisa do Criciúma
Detalhes da nova camisa do Criciúma. Foto: Reprodução/www.tigremaniacos.com.br

Mas e nós, pesquisadores ou observadores mais atentos dos processos relacionados aos usos públicos do passado no esporte, o que devemos observar nestes processos?

Aqui deixo claro minha imensa simpatia e torcida para o Criciúma nos últimos cinco anos. Nesse período, passei a viver em Santa Catarina, depois Rio Grande do Sul, e adotei o Criciúma como equipe que posso acompanhar e ir no estádio. Não canso de citar meu amigo Vitor Justino, um apaixonado do Criciúma e que me faz gostar cada vez mais do clube a cada visita, a cada jogo que tenho a oportunidade de ir ao estádio. Palmeirense fanático que sou, abri um belo espaço para o Tigre no meu coração nesses anos.

Tentarei aqui esquecer um pouco esse lado torcedor. Farei um elogio e uma crítica à referida ação. O elogio vai justamente para o departamento de marketing do clube, que procurou realizar uma ação que valorize a história da comunidade e que coloque o clube nessa história. Uma ação que, quando mostra “os carvoeiros”, o faz em referência aos trabalhadores e trabalhadoras das minas de carvão. Não deixou as mulheres de lado, não deixou o trabalhador negro. Conseguiu fazer com que seus torcedores se orgulhassem do clube às portas de uma penosa série C que se avizinha.

Detalhe da Carvoeira, nova camisa do Criciúma
Detalhe da camisa: #soucarvoeirosimsenhor. Foto: Reprodução/www.tigremaniacos.com.br

No entanto, é preciso também fazer uma crítica. Uma crítica no sentido de potencializar ainda mais os laços de identidade do clube com a chamada “massa carvoeira”. Essa história contada, das minas de carvão, deixa de lado uma série de questões problemáticas do passados de quem trabalhou nas minas de Criciúma. A despeito da brevíssima passagem no primeiro vídeo fazendo referência aos “dramas e aflições dos mineiros de carvão de Criciúma”, pouco mais se faz para relembrar o sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras das minas de carvão daquela cidade.

Minas de carvão de Criciúma: as histórias que não se contam

Citarei aqui apenas uma das muitas pesquisas feitas sobre o passado das minas de carvão em Criciúma, escrito por Gerson Philomena, José Follmann e Teresinha Gonçalves (2012), de título “Aspectos da cultura do carvão em Criciúma (SC): a história que não se conta“, publicado na Revista de História da Unisinos. As histórias dos trabalhadores das minas de Criciúma, colhidas de entrevistas com os mesmos em um interessante trabalho de história oral, é de muito sofrimento. Excesso de jornada de trabalho, pouco tempo para a família, perigos nas minas, doenças pulmonares, poucos aumentos de salários, greves, danos ambientais, acidentes trágicos e mortes. Muitas mortes.

Essas histórias, como o próprio título do artigo coloca, não se contam. E não foram contadas na ação de marketing do Criciúma. Desta forma, como está no artigo, os vídeos reforçam uma “cultura do carvão em Criciúma” que “sempre foi  sustentada  pela  ideologia  de  que  o  carvão  trouxe e traz muito progresso. Isto está no imaginário da população, de empresários do setor, da grande mídia e de intelectuais do mundo acadêmico de Criciúma (SC)”.

Detalhe da Carvoeira, nova camisa do Criciúma
Detalhe da Carvoeira. Foto: Reprodução/www.tigremaniacos.com.br

Assim, fica uma pergunta: como um clube de futebol poderia articular essas histórias que não se contam? Como contar também a história de sofrimento e das péssimas condições de vida dos trabalhadores das minas de carvão que, em última análise, ajudaram a formar a massa torcedora do Criciúma?

Talvez eu tenha algumas sugestões. Sugestões que procuram unir o meu lado crítico ao meu lado de torcedor. E que procuram ainda levar em conta a realidade do clube, que precisa vender camisas para poder arrecadar receitas. Referências nominais a esses trabalhadores e trabalhadoras que foram torcedores do Criciúma e que sofreram em sua vida com o trabalho nas minas do carvão. Um memorial no clube e no site com seus nomes. Uma referência nas camisas. Um hotsite sobre histórias de vida como as do Sr. Loro, um dos entrevistados no artigo citado. São várias as possibilidades.

Ao se citar os nomes desses trabalhadores e dessas trabalhadoras e ao contar um pouco de suas histórias, dos horrores que viveram e das muitas mortes causadas pelas condições insalubres das minas, o clube poderia até mesmo reforçar o que pretende com sua ação: rememorar e se identificar com uma “região de gente batalhadora e guerreira”, como é colocado no vídeo de lançamento da camisa. Creio que estamos na hora de dar mais um passo no sentido de contar as histórias que não se contam no futebol. Os clubes também podem ajudar a construir uma história mais crítica e menos romantizada do seu passado e do passado de suas comunidades. O trabalho de historiadores e historiadoras poderia ajudar neste sentido. Acredito que este tipo de ação identifica ainda mais o clube com quem realmente interessa: sua torcida.


PS: Afirmo que, apesar da crítica, a camisa ficou linda e vou comprá-la. E não vejo a hora de estar no Heriberto Hulse com a massa carvoeira.

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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. A história contada pela Carvoeira, a nova camisa do Criciúma. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 6, 2020.
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