39.4

Casa, automóvel e televisão

Marcos Alvito 14 de setembro de 2012

Nunca mais o futebol atrairia tanto público quanto nos três ou quatro anos depois do término da Segunda Guerra. Durante a década de 1950 o público total cairia quase todos os anos, para sofrer um grande baque logo no início da década de 1960: na temporada 1960-1961, há uma diminuição de 12%. O público total da Football League, que já fora de 41 milhões em 1948-1949, caíra para cerca de 28 milhões. Não era um fenômeno restrito ao futebol: o público do Rugby League (uma variação do Rugby Football jogada por profissionais desde 1895), cairia de quase 5 milhões em 1949-1950 para menos de 2 milhões em 1963-1964. O que estava acontecendo?

Estava em curso um processo de transformação da sociedade no pós-guerra. Após anos de austeridade e restrições, a economia européia e a inglesa em particular entrariam em uma época de prosperidade que duraria até meados da década de 1970. Sobe o valor real dos salários e aumenta enormemente o consumo de bens e mercadorias.

Na Inglaterra, cada vez mais as pessoas eram proprietárias de suas casas. O número de automóveis particulares nas ruas multiplica-se, passando de pouco mais de 2 milhões em 1950 para mais de 9 milhões em 1965. Em 1950, era raro alguém ter televisão em casa, mas em 1961 ela já estava presente em 75% dos lares. Maior renda significava a possibilidade de outras formas de passar o sábado à tarde, antes reservado ao futebol. E os avanços da condição feminina também exerciam pressão sobre os homens para ficarem em casa, um espaço cada vez mais confortável, ou pelo menos para passarem o fim-de-semana junto à família em uma atividade conjunta.

Durante a décadas de 1950 e boa parte da década de 1960, a cobertura televisiva do futebol foi mínima. O único jogo a ser transmitido em sua totalidade e ao vivo era a final da Copa da Inglaterra. Em 1950 ela foi assistida por mais de um milhão de pessoas e três anos depois, esse número sobe para 10 milhões. O sucesso foi tão grande que na temporada seguinte a final passou a ser realizada uma semana após o encerramento do campeonato da liga para evitar  a queda do público presente aos jogos.

Esse dano às bilheterias era o principal medo dos clubes, fator que explica o porquê das transmissões ao vivo dos jogos da Football League só terem sido autorizadas pela primeira vez em 1983. Na verdade, a televisão “roubava” público do futebol por conta das suas outras atrações. Ela fazia parte de um processo de “privatização do lazer” que afetou outras diversões de massa, como o cinema, por exemplo. De qualquer forma, após 1964, a BBC começa a apresentar nos sábados à noite um dos programas mais famosos da TV britânica: Match of the Day, contendo os gols e os melhores momentos dos jogos daquela tarde. Ele vai ao ar até hoje.

Durante a década de 1950, o sistema de transferências e o rígido teto salarial começaram a ser percebidos como anacronismos. Em uma época de crescente mobilização operária, a Football Players Union, o sindicato dos jogadores profissionais, descrevia o jogador de futebol como “um escravo do clube, que pode fazer o que quiser com ele”. Às vezes os jogadores sofriam cortes salariais contra os quais nada podiam fazer. Seus pedidos de transferência muitas vezes eram negados ou estabelecia-se um valor acima da realidade que na prática impedia o outro clube de contratá-lo. As relações entre os diretores e os atletas, lembrando que muitos dos primeiros eram homens de negócios, às vezes assemelhavam-se às de um rígido patrão diante dos seus operários. Em muitos clubes o presidente evitava dirigir a palavra aos jogadores e quando viajavam de trem para os jogos, os diretores iam na primeira classe, separados dos jogadores. Em uma época de crescente “democratização”, em que a classe operária e a juventude punham em xeque a disciplina e a hierarquia social, esse tipo de comportamento não tinha mais lugar.

O futebol era um negócio relativamente próspero e os grandes clubes começam a fazer bastante dinheiro. O teto salarial de 20 libras por semana em 1960 era pouco mais do que as 15 libras que ganhava um operário especializado.

É lógico que alguns dos melhores jogadores recebiam pagamentos ilegais, na forma de “luvas” pela transferência, bônus de diversos tipos e pagamentos indiretos, como presentes às suas mulheres, uso de casas ou de carros do clube e coisas do tipo. Mas esse era um jogo arriscado, porque a Liga impunha duras penalidades aos que fossem pegos cometendo este tipo de irregularidade: em 1957, vários diretores do Sunderland foram banidos para sempre e cinco jogadores foram suspensos sine die.

Em abril de 1960, o sindicato dos jogadores, desde 1958 rebatizado como Professional Footballers Association (PFA), pede o fim do teto salarial e uma reforma no sistema de transferência, dando maior liberdade aos jogadores e permitindo que eles usufruíssem de uma parcela das quantias pagas pelos clubes para contratá-los. A primeira grande vitória só foi conseguida em 1961 após uma ameaça de greve por parte dos jogadores, com o apoio de vários sindicatos de trabalhadores. A partir daquele momento estava abolido o teto salarial, que durara mais de seis décadas.

O sistema de transferências resistiu um pouco mais, começou a mudar em 1964, mas só caiu totalmente por terra em 1978. Essas duas mudanças, justíssimas do ponto de vista das condições de trabalho e dos direitos dos jogadores de futebol, tiveram também consequências para o funcionamento do sistema estabelecido pela Football League desde o século XIX.

Com salários livres e cada vez menos presos aos clubes, os melhores jogadores tendem a ser contratados pelos clubes mais poderosos, normalmente das grandes cidades. Os jogadores, por sua vez, começam a ser transformados pela televisão e pelos jornais e revistas em “estrelas”, ajudando a vender produtos. Antes heróis da classe operária, encarnando os valores coletivos da classe, os jogadores passam a ser representados como indivíduos ligados à riqueza e ao consumo hedonista.

Antes o ídolo era uma figura com Stanley Matthew, o lendário ponta-direita que jogou até os 50 anos, não bebia, era um decente e respeitável pai de família. Agora a imprensa cultivaria George Best, cuja única semelhança com Matthews era a posição em que jogava. Best, um gênio com a bola no pé, era tão famoso que chegou a ser chamado de “o quinto Beatle”. Esse apelido associa-se a duas características: o estilo jovem rebelde dos cabelos compridos e um ritmo de vida próximo de um rockeiro. Conforme ele mesmo teria dito: “Gastei quase todo o meu dinheiro com bebida, mulheres e carros. O resto eu desperdicei…”

A par da diminuição significativa, a composição do público e sua forma de comportamento também estavam mudando na década de 1960. A juventude cada vez menos se conformava ao papel antes a ela reservado. Há todo um “estilo” jovem que busca acentuar as diferenças através de um uso de formas particulares de vestuário, uso da linguagem, apresentação pessoal, gostos musicais e comportamento em geral.

Esse “poder jovem” começa a estar presente também nos estádios de futebol, um teatro perfeito para encenar atos de diferenciação e de rebeldia. Até meados da década de 1950, o público dos estádios podia ser dividido em dois grandes grupos: nos terraces atrás do gol e nas laterais, ia a classe operária, assistindo aos jogos de pé.

Nas arquibancadas cobertas e com assentos localizadas junto ao centro do gramado, a classe média e os diretores (na tribuna de honra). Não havia até então espaços distintos para os torcedores das duas equipes, não eram segregados, separados por cercas ou pela polícia. Misturavam-se sem problema por todas as áreas.

Um inveterado torcedor do Manchester City descrevia da seguinte forma a composição variada e tradicional do público na década de 1940:           

“Era uma multidão muito misturada. Havia uma porção de coroas, e mulheres, algumas até mais velhas. Ficávamos todos juntos de pé. Você conhecia todo mundo! Você nunca encontrava com eles entre os jogos. Mas nós sempre ficávamos mais ou menos no mesmo local e conhecíamos as quarenta ou cinquenta pessoas à nossa volta porque elas estavam sempre lá.”

Havia brigas eventuais, normalmente causadas por bebida e quase sempre sem relação com a disputa clubística, afora um ou outro encontro de torcedores rivais em um pub. Mas tudo isso começa a mudar.

Os jovens, que começam a frequentar viajar em grandes grupos para as partidas, normalmente de trem, revolucionam a ecologia do estádio. Escolhem os terraces atrás do gol, os chamados ends,  como seu espaço particular. Ali começam a torcer de uma maneira bem mais expressiva e fanática ou, na visão dos mais velhos, de uma forma menos respeitável e educada. Começam a usar canções da música popular e logo começam a desafiar o grupo de jovens que vinha torcer pelo time adversário. Ciosos do seu território, esses grupos de jovens começam a se comportar de forma tribal, o que passa a incluir as tentativas de tomada do end oposto, resultando em conflito e violência.

Entre as décadas de 1960 e 1980, esse processo seria agravado por uma série de fatores, resultando na pior crise já enfrentada pelo futebol inglês em toda a sua história.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. Casa, automóvel e televisão. Ludopédio, São Paulo, v. 39, n. 4, 2012.
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