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“A brecha que o sistema queria”: o caso Pacaembu 22 anos depois (Parte II)

Fabio Perina 25 de outubro de 2017

Na manhã de um domingo, 20 de julho de 1995, foi marcada para o Pacaembu a final da Supercopa de Juniores. O jogo reuniu as torcidas rivais de Palmeiras e São Paulo, com um histórico de grandes confrontos na época. Havendo, porém, um agravante para o encontro destas torcidas. Havia no estádio muito entulho de construção disponível a ser transformado em arma e um efetivo policial muito baixo.

Que público queremos abolir…

A tragédia do Pacaembu/95 guarda incríveis semelhanças com a tragédia inglesa de Hillsborough/89. Uma vez criado um clamor midiático em que os discursos sobre os hooligans somente mencionavam sua violência. Quem se interessava em proibir as organizações torcedoras (daqui e de lá) necessitava ainda de uma tragédia de grande comoção pública para autorizar um novo pacote de medidas que impusesse “tolerância zero” contra a violência. Eles geram a indignação na massa, em geral, como o pretexto para implantar alguma medida punitiva imediata que afetaria apenas os envolvidos no dia a dia dos estádios somente para “dar uma resposta rápida à sociedade”.

A tendência penal nos países até mesmo tidos como mais ‘civilizados’ é a produção da nova figura do ‘cidadão de bem’ exemplar; e paralelo a isso a produção de seu oposto: tipos desviantes e indesejáveis. Querem resolver a questão social sem o social e só com o penal. Isso se vê na prática numa ‘segurança pública’ cada vez mais preparada para a guerra. Não tem por finalidade prevenir o crime nem a reabilitação, mas gerenciar custos e controlar populações “perigosas”.   Estigmas tão presentes que obscurecem a distinção entre o crime verdadeiro e o que é incomodo e ofensivo[1]. Levando as pessoas a trocarem sua preciosa liberdade pela falsa sensação de segurança.

Procurei trazer reflexões bem resumidas de um conjunto de autores do campo jurídico (Ferrajoli e Zaffaroni) e das ciências sociais (Foucault, Beck, Wacquant e Garland) para entender como o punitivismo (ou o ‘direito penal do inimigo’) tem sido aplicado no futebol contra as Torcidas Organizadas e os torcedores de uma forma geral. Em linhas gerais, o punitivismo se caracteriza por relativização ou até supressão de garantias individuais; antecipação de punições aos suspeitos somente pelo ‘risco’ que representam mesmo sem terem cometido nenhum delito; e punições proporcionalmente altas para delitos de baixa lesividade (nesse aspecto foi possível encontrar em estudo a crítica que, ao se aumentar tanto as penas por delitos menores a ponto de serem quase iguais aos dos delitos maiores, acaba tendo o efeito inverso de incentivar os segundos).

Segundo os autores, essa tendência penal, é levada por emoções e estereótipos ao invés de estudos científicos tendo como resultado a sobreposição dois sistemas: punir porque há uma lei e corrigir os ‘desvios’ por se cobrar da justiça como se fosse a ‘terapeuta’ do corpo social. Em nome de maior celeridade (nome técnico equivalente a agilidade) e de dar uma satisfação mais rápida para a sociedade para tentar dissipar a sensação de impunidade, essa corrente vai marginalizando tantas outras soluções por parte do poder público que deixariam o direito penal mínimo apenas como último recurso na resolução de conflitos (quando esgotados os anteriores recursos) para privilegiar o direito penal máximo como a gestão ordinário dos ‘riscos’ dos ‘perigosos’.

De tantas contribuições que os autores nos permitiriam, termino por aqui com essa última: o direito clássico foi sendo invadido por categorias extrajurídicas como ‘risco (Beck) e ‘perigo’ (Foucault) a tal ponto que não consegue mais distinguir entre a lesividade e o medo, bem como anula a presunção de inocência de uma série de indivíduos somente por estarem em grupo. Mesmo que cada nova medida punitiva pudesse realmente acabar com os ‘bandidos’ que ela alega combater, como justificar que os ‘não-bandidos’ se submetessem aos controles policiais?

Voltando ao futebol, no campeonato inglês a solução mais simples foi a rápida reforma dos estádios em arenas cujo conforto encarecia os ingressos e com isso impedia as classes trabalhadoras (como um todo e não apenas as firmas hooligans) de se reunirem no estádio e praticarem esse tradicional lazer popular.

hillsborough
Memorial das vítimas de Hillsborough 1989. Foto: Edmund Gall (CC BY-SA 2.0).

Durante décadas o governo inglês conseguiu criar uma propaganda eficaz de que a modernização do futebol seria a solução para acabar com os hooligans de lá. Infelizmente uma propaganda tão enganosa que muitos que se envolvem com futebol, sobretudo a maioria de atletas e jornalistas, seguem afirmando de modo inquestionável quase como “dando a última palavra” que o modelo inglês de ‘tolerância zero’ para os estádios deve ser sumariamente copiado. O que se reflete quando se cobra um Estado penal máximo que não somente banisse torcedores dos estádios, mas os obrigasse a se apresentar durante horas em uma repartição policial enquanto o time dele estivesse jogando. Nesse sentido a Premier League representou um marco na formação do futebol moderno ao colocar clubes, jogadores e torcedores articulados numa mesma engrenagem de um modelo de negócios supostamente perfeito. Quem ousa questioná-la?

O que dificilmente consegue ser noticiado e levado ao debate é que os grupos hooligans não acabaram. Mas, jogados na clandestinidade, tiveram que aperfeiçoar suas táticas para se encontrarem longe dos estádios. Bem como outro fato crucial que deve ser levantado para não deixar esse perverso ‘discurso único’ seguir unanime é que o governo inglês somente no ano 2012 reconheceu que antes da tragédia houve irresponsabilidade por permitir que ocorresse um jogo sem condições de segurança; e após a tragédia tampouco se procurou investigar o que de fato ocorreu. Ficou mais fácil culpar exclusivamente os hooligans.[2]

É importante reconhecer que as estratégias punitivas “anti-hooligans” dos últimos 20 anos foram, no geral, ineficazes. A maior segurança do consumidor de futebol foi conseguida às custas de maior repressão policial e sistemas tecnológicos de controle e instalações modernas de conforto (segundo um conceito para atração de turistas e não da população que vive do futebol no seu dia a dia), porém por outro lado sob o preço de ter aumentado a organização dos hooligans. No limite, os hooligans se adaptaram e os espectadores “comuns” é que tiveram o preço a pagar por mais restrições.

Miraram na violência, mas atingiram a festa popular.

Voltando ao caso brasileiro, cujas consequências imediatas foram: a proibição somente no estado de São Paulo de bandeiras de mastros nas arquibancadas; a extinção das Torcidas Organizadas; proibição das bebidas alcoólicas, campanhas que semearam uma ‘cultura do medo’ de “não vá aos estádios”; encarecimento do preço dos ingressos supondo que assim as famílias pudessem voltar a ir aos estádios.

Juca Kfouri, no conhecido artigo ‘’violência barata’’ de 21/08/1995, defendeu a elitização do espetáculo argumentando, com base na desonesta ‘criminalização da pobreza’, que o torcedor comum e mais abastado é que merece desfrutar o espetáculo e pode pagar mais caro por ele.

 

[1] Wacquant, Loïc. “Punir os pobres.” A nova gestão da miséria nos Estados Unidos 2 (2003).

[2] https://revistarever.wordpress.com/2014/03/13/o-hooliganismo-realmente-morreu-ou-as-intencoes-sempre-foram-outras/amp/

http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/hillsborough-28-anos/

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “A brecha que o sistema queria”: o caso Pacaembu 22 anos depois (Parte II). Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 25, 2017.
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