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Caso Vinicius Junior: o sonho que virou pesadelo

Gianluca Florenzano 31 de maio de 2023

A barbárie volta a dar as caras na Espanha. Mais uma vez, o jovem atacante brasileiro do Real Madrid, Vinicius Junior, também conhecido como Vini Júnior, foi vítima de mais um ataque racista. A cena de ódio, dessa vez, foi protagonizada por uma parte da torcida do Valencia. Antes mesmo do jogo começar, ao redor do estádio Mestella, um grupo de torcedores do time da casa, sem demonstrar constrangimento e, até mesmo humanidade, gritavam que Vinicius Junior era um “mono” (“macaco” em espanhol).

No decorrer da partida, o cântico racista voltou a ser entoado. Revoltado, como não poderia ser diferente, o brasileiro pediu ao árbitro que o jogo fosse interrompido e, inclusive, chegou a confrontar um dos torcedores atrás do gol que imitava um macaco em sua direção. A sua indignação, no entanto, seria em vão. Na verdade, lhe renderia uma expulsão momentos mais tarde. Após uma confusão generalizada entre jogadores de ambos os clubes, Vini Junior, na tentativa de se desvencilhar de um mata-leão (golpe este aplicado por alguns policiais em suas abordagens com negros) que recebia do jogador do Valencia, Hugo Duro, acabou deferindo-lhe um tapa na cara. A equipe de arbitragem, contudo, ao chamar o juiz ao VAR, mostrou apenas o momento em que o atacante atingiu o seu adversário, ignorando completamente o mata-leão que ele recebia segundos antes. Resultado: Vini Junior saiu hostilizado mais uma vez pelos adeptos da casa e Hugo Duro permaneceu em campo para ver o seu time vencer a partida por 1 a 0.

Em seu desabafo, publicado nas redes sociais, o jovem atacante começou com as seguintes palavras: “não é a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira”. De fato, não era. Ao todo, desde que colocou os pés na Espanha, Vinicius Junior se viu no centro da fúria dos racistas ao menos 10 vezes. Ele mal podia adivinhar que o que parecia ser um sonho, aos poucos, viraria um pesadelo. Nascido em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, Vini Junior conseguiu transformar em realidade um dos maiores sonhos dos jovens espalhados pelo Brasil: se tornar um jogador profissional de futebol. Mais ainda. Conseguiu dar um passo além e ser contratado pelo – que é para muitos – o maior clube de futebol do mundo, o Real Madrid. Com a sua velocidade, a sua ginga e com os seus improvisos, não demorou muito para que o garoto de São Gonçalo conquistasse o carinho da torcida madrilenha e passasse a despontar como um dos principais jogadores de sua equipe.

Ao mesmo tempo em que a admiração pelo seu talento crescia, por outro lado, a ira dos racistas aumentava. O primeiro episódio em que foi alvo de xingamentos preconceituosos se deu contra o principal rival do Real Madrid, o Barcelona. Em 24 de outubro de 2021, no estádio do Camp Nou, em Barcelona, um torcedor fez ataques discriminatórios ao brasileiro e chegou a ser denunciado. Posteriormente, o caso foi arquivado pela polícia sob a justificativa de que não foi possível identificar o agressor. O que parecia ser um fato isolado, ao menos era tratado desta forma pelas autoridades espanholas, com o passar do tempo foi se intensificando. Em 2021 aconteceu apenas este episódio, mas em 2022 o número subiu para três e, em 2023, já são seis casos deste tipo.

O auge do ódio contra o atacante brasileiro se deu antes da partida contra o Atlético de Madrid pela Copa do Rei em janeiro de 2023. Torcedores “colchoneros” (como são conhecidos os torcedores do Atlético) penduraram um boneco negro vestido com a camisa de Vini Júnior com uma corda amarrada no pescoço para simular um enforcamento (maneira pela qual vários negros foram assassinados brutalmente durante os tempos de escravidão). Por mais que tenha gerado repercussão internacional e despertado a solidariedade da opinião pública de maneira geral, a resposta em relação ao ato de ódio de parte da torcida do Atlético de Madrid ficou restrita a notas de repúdio protocolares e a hashtag #BailaViniJunior.

Com a impunidade rolando solta e os casos acontecendo cada vez mais, em seu desabafo, voltando à disputa contra o Valencia, Vini Júnior afirmou que “o campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi hoje é dos racistas”. Palavras fortes. Porém, precisas. De fato, com esses casos sendo repercutidos cada vez mais a imagem que, através do futebol, a Espanha passava ao mundo era ser um país de racistas.

O racismo, importante esclarecer, está longe de ser um problema apenas espanhol. Além do mais, Vinícius Júnior não era o único a sofrer com os discursos de ódio vindo das arquibancadas. Casos de discriminação contra negros era algo que já fazia parte do histórico de La Liga (o campeonato espanhol). Em 2021, para pegarmos um exemplo emblemático dos muitos que poderíamos ter citado, o próprio Valencia passou por situação parecida. No primeiro tempo da disputa contra o Cádiz, o então zagueiro valentista, Mouctar Diakhaby, acusou o seu adversário, Juan Cala, de ter lhe dirigido de maneira preconceituosa. Em solidariedade ao colega de time, os jogadores do Valencia – vejam como as coisas são – abandonaram o campo de jogo. Sim, uma parte da torcida do Valencia que agora proferia xingamentos discriminatórios contra Vini Júnior, dois anos antes, via o seu time se recusando a continuar a jogar uma partida por conta de um ato racista.

O caso de Vini Júnior, no entanto, salta aos olhos. Nunca antes, pelo menos não recentemente, um jogador negro havia sido tão perseguido pelos estádios Espanha afora quanto ele. Mas, afinal de contas, por que o jovem atacante brasileiro está sempre na mira da fúria dos racistas?

Vinicius Jr. Rodrygo
Foto: vitaliivitleo/depositphotos

Uma das explicações por trás desses ataques é a de que Vinícius Júnior seria um provocador, por conta de seus dribles dentro de campo e pelas “dancinhas” na hora de comemorar os gols. Em primeiro lugar, nada justifica agressões racistas contra o jogador, mesmo se ele se enquadre no perfil de provocador. Em segundo lugar, isso não é algo novo no futebol espanhol. Ao contrário, antes de Vini Júnior outros brasileiros, como por exemplo, Ronaldinho Gaúcho e Neymar quando jogavam pelo Barcelona, apenas para ficar em um passado mais recente, se enquadravam bem mais neste perfil. Eles brilharam pelos gramados espanhóis com os seus dribles exuberantes e “bailavam” à vontade nas suas comemorações de gols. Sim, claro, poderiam ter recebido insultos racistas entre um jogo ou outro. Entretanto, nem de longe foram da mesma proporcionalidade do que o atacante do Real Madrid. Os torcedores do Barcelona, aliás, é um bom ponto para realizarmos uma análise. O que leva uma parte da torcida de um clube que tem Ronaldinho Gaúcho e Neymar como um dos principais ídolos de sua história, gritar cânticos racistas contra Vinicius Júnior?

Muitos dizem que o futebol se constitui como um mundo paralelo da sociedade. E, de fato, em alguns momentos parece ser. Enquanto que em todas as outras esferas sociais o racismo é cada vez mais combatido – ao menos é o que deveria ser -, no futebol, de certa forma, o racismo é tratado como algo folclórico, como uma mera provocação que faz parte da tradição e das regras não escritas do esporte.

Ao viajarmos para a Itália, temos um caso que ilustra perfeitamente este argumento. Em 2019, aos 27 minutos do segundo tempo, na disputa entre Cagliari e Inter de Milão, um pênalti foi marcado para a equipe da Inter. Quando o atacante belga, Romelu Lukaku, pegou a bola para bater o pênalti, uma parte da torcida do Cagliari começou a fazer gestos de macacos. Sem deixar se desestabilizar pelo show de horrores que o atingia, Lukaku conseguiu converter o pênalti, no entanto, em forma de protesto não comemorou o gol. Após a partida, o artilheiro belga cobrou ações das federações para combater a discriminação racial nos estádios. Além do mais, ele recebeu o apoio e solidariedade de jogadores ao redor do mundo.

Lukaku, contudo, só não recebeu apoio da Curva Nord, um dos principais grupos ultras (o equivalente à torcida organizada no Brasil) da Inter de Milão. Em uma carta endereçada ao jogador, os ultras da Inter de Milão afirmaram que os torcedores do Cagliari não foram racistas. Sim, isso mesmo. Eles entendiam que os gestos de macacos não passavam de uma maneira encontrada pela torcida adversária para tirar a concentração dele na hora de bater o pênalti. E, tem mais. Disseram também que já fizeram coisa parecida e que continuaram a utilizar este “artifício” contra os rivais.

No Brasil, temos o exemplo envolvendo Gerson do Flamengo e Índio Ramirez do Bahia. Em uma discussão acalorada de jogo, o então meio-campista do time baiano teria se dirigido ao flamenguista da seguinte forma: “cala a boca negro”. Gerson, após a partida, denunciou Ramirez e o STJD abriu um inquérito sobre o ocorrido. Entretanto, pouco tempo depois o caso acabou sendo arquivado. Os ex-jogadores Vampeta e Amaral, e o técnico Vanderlei Luxemburgo, ao comentarem sobre o episódio disseram que não viram nada de mais na suposta fala de Ramirez, que aquilo fazia parte da cultura futebolística de provocar e desestabilizar o adversário.

O folclore, no entanto, não explica totalmente o que há por trás do caso de Vini Junior, voltando agora para a Espanha. Na verdade, há questões político-sociais bem mais profundas. Ao contrário da época em que Ronaldinho Gaúcho e Neymar atuavam pelo Barcelona, hoje em dia, é inegável dizer que, infelizmente, a extrema-direita vem angariando apoios significativos ao redor do mudo. Movimentos ultraconservadores, como o Brexit no Reino Unido, ou retratados nas figuras de Donald Trump nos Estados Unidos, Marie Le Pen na França e Jair Bolsonaro no Brasil, chegaram ao poder com discursos de ódio voltados contra as minorias, em especial os negros, e contra a entrada de imigrantes que, supostamente, seriam uma ameaça para a identidade nacional desses países (dos citados, apenas Le Pen não chegou ao poder, no entanto, pela segunda vez em seguida ela ficou em segundo lugar na eleição presidencial francesa, portanto, não podemos ignorar o fato de que ela possui um capital político bem expressivo). Dessa maneira, legitimados, de certa forma, por esses movimentos ultraconservadores, parte da população vem reivindicando o direito de ser racista e, ademais, se sentem autorizados a cometerem atos discriminatórios.

Assim sendo, Vini Junior, simboliza tudo aquilo que estes grupos de extrema-direita abominam: um jovem negro, latino-americano (logo imigrante), de origem humilde e que, acima de tudo, conseguiu superar todos os obstáculos econômicos e sociais para se tornar um vencedor. Isso explica porque jogo sim e jogo não o brasileiro é hostilizado pelos estádios da Espanha. E para piorar ainda mais a sua situação, o atual presidente da La Liga, Javier Tebas, é um apoiador declarado do Vox, o partido de extrema-direita espanhol. Não à toa, Tebas não apenas minimizava os casos de racismo como responsabilizava o atacante do Real Madrid pelos episódios.

Voltando ao jogo entre Real Madrid e Valencia. Tão grave quanto o presidente de La Liga foi a cobertura de parte da imprensa espanhola. Eles não apenas buscavam negar os gritos racistas que, naquela altura, já haviam sido filmados e publicados nas redes sociais pelos próprios torcedores do Valencia, como também criaram uma narrativa para colocar Vinicius Junior como o vilão. Ao ser expulso de jogo, o jovem atacante saiu fazendo o número 2 para os adeptos rivais, em uma alusão ao fato de eles estarem brigando na tabela do campeonato para não serem rebaixados para a segunda divisão – esta sim, uma provocação que faz parte da cultura do futebol. Ao final do jogo e na zona mista (onde os jogadores concedem entrevistas aos repórteres), um jornalista perguntou a Vini Junior se ele “pediria perdão pelo gesto que fez à torcida do Valencia?”. Sim, para o jornalista espanhol, o gesto de número 2 do brasileiro foi mais grave do que o crime de racismo que alguns torcedores da equipe da casa haviam cometido.

O caso é complexo. E como todo caso complexo não há uma solução simples. Com toda essa humilhação e desumanização sofrida constantemente por Vinicius Junior, muitos defendem que ele deixe o Real Madrid e passe a jogar em outro clube, preferencialmente em um time inglês. Sem dúvidas, ao contrário da Espanha, dentro dos estádios do futebol britânico os casos de racismo são quase inexistentes. Além do mais, a Premier League (o campeonato do Reino Unido) possui parceria com a organização Kick It Out, uma iniciativa que busca conscientizar e implementar ações dentro das equipes britânicas para combater o preconceito racial. Além do mais, os próprios jogadores da liga apresentam uma consciência social bem significativa em relação a este tema. Desde que as manifestações antirracistas dominaram o globo após o caso de George Floyd e inspirados no ex-quarterback, Colin Kaepernick, muitos atletas da Premier League passaram a se ajoelhar antes da partida em forma de protesto contra o racismo.

Porém, alto lá. Não devemos nos enganar que a discriminação racial não está presente no Reino Unido. Como disse acima, os casos de racismo são quase inexistentes dentro dos estádios. Fora deles, no entanto, o assunto já é outro. Para se ter uma ideia, em resposta às manifestações antirracistas que afloravam mundo afora em 2020 depois da morte de Floyd, supremacistas promoveram um ato na Praça do Parlamento. Se descrevendo como patriotas, eles cantavam “Inglaterra, Inglaterra” e estavam todos vestidos com a camisa da seleção inglesa (sim, não era apenas no Brasil que a camisa da seleção era capturada pela extrema-direita). Posteriormente, na Trafalgar Square, uma das principais praças de Londres, os supostos patriotas e manifestantes antirracistas protagonizaram uma batalha campal que só foi encerrada após a chegada em massa da polícia de choque. Isso, claro, sem contar nos inúmeros casos de ataques racistas contra jogadores negros nas redes sociais.

De fato, não tem para onde correr. O racismo é um problema que atinge todos os países do mundo, em menor grau em uns e em maior grau em outros. Está cada vez mais perceptível que este mal só cessará a partir do momento em que o globo como um todo se unir e começar a implementar políticas que efetivamente combatam o preconceito racial.

O caso de Vinicius Junior contra torcedores racistas do Valencia, contudo, pode ser este ponto de partida. Após a repercussão internacional do caso, ao que tudo indica, novos ares estão por vir. O presidente da Federação Espanhol de Futebol, Luis Rubiales, criticou o comandante de La Liga pela sua postura e afirmou estar ao lado do brasileiro. O presidente Lula e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, irão conversar com as autoridades espanholas sobre os episódios racistas. E, até mesmo a ONU se manifestou sobre o caso. Esperamos, porém, que esses pronunciamentos resultem em ações concretas e não fiquem apenas em palavras.

Entretanto, como não poderia ser diferente, a manifestação mais incisiva partiu do próprio brasileiro. Ainda recorrendo ao seu desabafo feito nas redes sociais após a partida contra o Valencia, ele escreveu a seguinte frase: “mas eu sou forte e vou até o fim contra os racistas”. Em outros termos, o veneno destilado pelos racistas contra o jovem atacante se voltou contra eles. Na tentativa de desumaniza-lo, diminuí-lo e cala-lo, eles acabaram criando mais um símbolo de resistência da causa negra.

Ninguém sabe ao certo se Vini Junior continuará atuando pelo Real Madrid ou não. Entretanto, duas coisas são certas. A primeira é que o show de horrores visto em Valencia serviu para mostrar ao planeta que a luta contra o racismo não pode parar. E a segunda é que o lado antirracista agora conta com mais um guerreiro negro. E o nome dele é Vinicius José Paixão de Oliveira Junior.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gianluca Florenzano

Escritor, mestre em ciências sociais, jornalista e pesquisador. Autor do livro "O jogo das ruas: movimento de atletas contra o racismo". Formado no curso de mestrado em Ciências Sociais pela PUC-SP em 2023 e no curso de jornalismo também na PUC-SP em 2019. Apaixonado por esportes e pela arte de escrever e ler.

Como citar

FLORENZANO, Gianluca. Caso Vinicius Junior: o sonho que virou pesadelo. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 32, 2023.
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