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Castor de Andrade, um cartola suburbano

A história do jogo do bicho começa na última década do século XIX no Rio de Janeiro. Nesse período a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, nome à época da “cidade maravilhosa”, passava por um período de modernização.  O objetivo das reformas na cidade era modernizar, urbanizar e “embelezar” a capital federal ao estilo parisiense. Foi nesse contexto que o empresário João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond, resolveu criar no bairro de Vila Isabel, o primeiro Jardim Zoológico do país com o intuito de valorizar a região.

Para ajudar a manter a nova instalação, Drummond começou a vender aos domingos uma espécie de rifa. A cada ingresso comprado um bilhete com a gravura de um animal do zoológico era entregue ao visitante. No fim da tarde era realizado o sorteio do bicho escolhido e o ganhador levava pra casa valores em cerca de 20 mil réis (cerca de R$2.460,00). Além de ficar famoso no bairro, o primeiro sorteio foi veiculado nos principais jornais da cidade e isso fez que o zoológico ganhasse um público ainda maior, gerando cada vez mais lucros para o empresário. Contudo, a festa durou pouco. Em 1895, o 2° delegado da polícia civil da cidade decretou: “[…] posta em prática essa diversão [o jogo do bicho], se verifica que tem ela o alcance de verdadeiro jogo, manifestamente proibido” (MAGALHÃES, 2007). Com a impossibilidade de realizar a atividade a partir desse ano, o público do zoológico caiu drasticamente, até que em 1949 o primeiro zoológico do Brasil encerrou suas atividades.

A prática, mesmo que ilegal desde 1895, ganhou as ruas da cidade com pontos fixos após a proibição no zoológico, formando os primeiros banqueiros. O poder público, por ordem do prefeito da cidade, Furquim Werneck, foi em busca dos banqueiros que tinham lojas nas principais ruas dos bairros para fazer o jogo, a  polícia, sem sucesso, tentou cassar os alvarás. O jogo atraia um público cada vez maior. 

Os bairros mais afastados do centro da cidade eram os mais afetados pela loteria. Sempre na esperança de se conseguir um dinheiro a mais no fim do mês, as pessoas apostavam e os amigos dos bicheiros acabavam tornando-se novos membros do jogo. Os bicheiros vendiam fichas com números referentes aos 25 animais do zoológico de Vila Isabel e o sorteio era realizado duas vezes ao dia com vários ganhadores a cada rodada, enriquecendo o vencedor e o vendedor da ficha premiada.

O bairro Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro, não ficou fora do novo negócio lucrativo da cidade. Muitos eram os bancos de bicho na região. Entre os vários pontos havia uma casa de sapê onde Dona Eurídice fazia seu comércio e ganhava o dinheiro suficiente para pagar as contas e dar a que comer aos seus filhos. Um deles, Eusébio, quando mais velho, ficou conhecido no bairro e logo se candidatou à presidência do Bangu Atlético Clube. Zezinho, como era conhecido, tomou paixão de torcedor pelo clube que presidia e fez sua família inteira se tornar banguense. 

Bangu
Fonte: reprodução

Seu filho, Castor de Andrade, nascido em 1926, estudou no colégio no centro do Rio e depois ingressou na Faculdade Nacional de Direito. Bem quisto no bairro em que foi criado por ser filho do presidente, Castor conseguia se dar bem com todos. Comandou o ponto de jogo da família por ordens do pai que não conseguia administrar, ao mesmo tempo, o time e o dinheiro dos clientes. Poucos anos depois, em 1964, Castor também seguiria os passos do pai na política esportiva e se tornaria dirigente do Bangu, período em que o clube  começou a crescer na cidade e até  tornar-se uma potência no futebol carioca. Tudo isso sustentado com dinheiro da contravenção que foi proibido em todo território nacional a partir de 1941.

O Carioca de 1966, conquistado pelo time da zona oeste comandado por Castor, foi  um marco na vida dos moradores do bairro e virou até manchete nos principais jornais do Rio. Os anos passaram e as glórias do Bangu continuavam, o clube passou a ocupar um espaço na galeria dos principais times da cidade com a direção do maior bicheiro do país, que não abria mão do jogo que o fez mudar de vida e se tornar uma estrela nacional. Castor levou o Bangu para um patamar jamais visto pelos torcedores: “Eu não me promovo com o Bangu, meu prestígio que ajuda a promovê-lo” afirmou o dirigente em entrevista à revista Placar (BANGU, 1985). Prestígio esse que aumentava ao passar dos anos. Doutor Castor, como gostava de ser chamado, era sempre visto nos palanques como o centro das atenções. Dizia nas suas entrevistas que estava onde sempre gostava de estar: no poder. 

Em 1985, outro grande momento do Bangu: o time estava completamente consolidado no Campeonato Brasileiro. Atropelou todos seus adversários até a final contra o Coritiba. Semanas antes da final, a revista Placar publica a matéria “O time de Castor um título já ganhou:  campeão de simpatia”. Na semifinal do campeonato, Doutor recebe a ligação da empresa de tecidos do bairro que doará 10.000m² de tecido alvirrubro para a confecção de bandeiras para a torcida que estava presente no Maracanã, e para o deslocamento uma empresa de transportes do Rio doou 50 ônibus com destino ao Mário Filho. Isso fez de Castor o patrono não só do clube como do bairro e chegou até mesmo na Bahia, com sua nova empresa de pesqueiros. Castor era o benfeitor da cidade de Porto Seguro e dava 200 Cruzeiros a cada pescador que fazia parte de seu novo negócio, alguns jornais dizem que a empresa era utilizada para contrabando, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, mas nada foi confirmado até hoje. Castor era uma figura que todos mostravam respeito por onde passava. Tim Lopes escreve na revista Placar (BANGU, 1985) que o dirigente recebia presentes por onde ia e até havia sido pedido a ele que benzesse o filho de um fã.

Mas não só do povo mais humilde vinha o respeito pelo doutor. Em seu auge, Castor era visto em restaurantes com detetives, juízes, advogados, jornalistas e até mesmo o governador Nilo Batista, que tomou posse após a renúncia de Leonel Brizola. Castor se mantinha em meio aos mais poderosos cariocas. Uma mistura de egocentrismo com jogada de xadrez do advogado de fazer amizades com os principais nomes da área cível do Rio de Janeiro para não ser condenado por suas ações ilegais. A jogada foi tão bem feita que Castor faz amizade com o detetive  Fernando Próspero Gargaglione que posteriormente comandaria a Operação Mãos Limpas Tupiniquim (em alusão à operação Mani pulite feita na Itália a procura de mafiosos) que focava na busca e apreensão dos bicheiros da cidade na década de 1980.  Contudo, outros procuradores encontraram na casa de Castor a ficha de contabilidade que aparece o nome do detetive da operação e logo depois Gargaglione foi destituído do cargo.  Castor foi julgado com mais outros grandes nomes do jogo do bicho, mas ficou menos de dois dias preso devido a eficiência de seus advogados.

Castor além de respeitado passou a ser uma figura mítica no cenário nacional. Talvez por unir as duas grandes paixões dos cariocas em um mesmo lugar: futebol e carnaval. Na semifinal de 1985 a bateria da Mocidade Independente, campeã do carnaval, alegrou os torcedores que ecoavam o nome de Castor de Andrade, também presidente da escola, juntamente com o samba-enredo vencedor “Ziriguidum 2001”. 

Castor de Andrade
Foto: reprodução

Alguns jogadores do Bangu tinham uma intimidade a mais com o dirigente, viam nele uma figura até paterna em alguns casos. Marinho, por exemplo, ponta do time da década de 1980, considerava Castor como o pai que nunca teve. Todos podiam entrar em sua sala e pedir qualquer favor para ele, desde que fizessem o melhor em campo, e se o time ganhasse, a premiação por fora ia de 16,5 milhões até 40 milhões de Cruzeiros. Tudo isso para os jogadores darem um esforço a mais e reverberarem boa fama do bicheiro. Os ex-jogadores contam até hoje do carinho que têm por Castor de Andrade embora seja um contraventor. O dia a dia com ele era simples, como contava o técnico Moisés, peça chave na escalação do time da zona oeste.

Castor morreu em 1997. Seu velório, no pátio da Mocidade, trouxe muitos fãs que o homenagearam no desfile de 1998 fazendo um minuto de silêncio em todo o sambódromo, mostrando que Castor foi único e que todas as escolas de samba e times de futebol vão o levar nas lembranças de ser um dos maiores e bem vistos cartolas do Brasil. A contravenção não foi párea para parar o carisma de Doutor Castor, hoje muito mais lembrado pelas suas boas ações na periferia carioca do que no Supremo Tribunal de Justiça. Um verdadeiro companheiro do povo.

Referências bibliográficas

ALENCAR, Bruno Holanda Moura. Castor de Andrade e o Jogo do Bicho: Um ensaio sobre violência urbana na cidade do Rio de Janeiro. UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, Instituto de Ciências Sociais História e Filosofia, p. 1-39, 2017.

CASTOR, acima do bem e do mal. PLACAR, [S. l.], p. 12-15, 2 ago. 1985.

MAGALHÃES, Felipe. A Fuga dos Bichos: A origem da loteria mais popular do Brasil. Cidade nova, p. 53-67, 2007.

LUCENA, Felipe. História do Jardim Zoológico de Vila Isabel, o primeiro do Brasil. Acesso em: 26 mar. 2021.

ARAÚJO, Marco Antônio. Doutor Castor. Globoplay: Globo Filmes, 11/02/2021. Acesso em: 25 fev. 2021.

JUPIARA, Aloy; OTÁVIO, Chico. Os porões da contravenção: jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. 1. ed. rev. Record, 2015. 

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Lucas Ferreira Estillac Leal

Graduando em História pela PUC Minas.  Atleticano apaixonado pelo clube mas acima de tudo um amante do Futebol.

Como citar

LEAL, Lucas Ferreira Estillac. Castor de Andrade, um cartola suburbano. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 42, 2021.
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