Catar 2022: violações de direitos humanos geram ameaças de boicote
Em dezembro de 2010, ainda com Sepp Blatter na presidência, a FIFA anunciou o Catar como sede da Copa do Mundo de 2022. Seria o primeiro país árabe a receber um Mundial, e a menor sede da história do torneio, com um território de algo em torno de 11.600 km².
No entanto, denúncias de corrupção e subornos a membros da FIFA para que escolhessem o país para organizar a Copa do Mundo de 2022 circulam desde então, com a própria entidade conduzindo investigações sobre o tema. Após deixar a FIFA, mesmo Blatter admitiria que o Catar é “incapaz” de receber o Mundial.
Este texto, diferentemente dos demais produzidos pelo Copa Além da Copa para o Ludopédio, não é complemento de um episódio do podcast. Em breve, voltaremos com os textos associados aos episódios.

Um pouco de história
Há poucos registros históricos sobre o Catar antes do século XVII, quando a população local consistia em beduínos nômades e alguns pescadores que viviam em vilas pequenas. No século XIX, a região se tornou parte do Império Otomano e, depois disso, converteu-se num protetorado britânico em 1916.
Até os anos 30, o local era conhecido pelo comércio de pérolas, mas no final daquela década foram descobertas reservas de petróleo generosas em seu território.
Mesmo com o Reino Unido se retirando formalmente do Golfo Pérsico ao final da década de 60, o interesse britânico no petróleo foi garantido ao patrocinar um golpe de Estado, que levou ao poder o xeique Khalifa bin Hamad Al Thani em 1972. Seu neto, Tamim bin Hamad Al Thani, é hoje o emir do Catar, posto equivalente a monarca e principal autoridade do país.
O aumento da demanda por gás natural no século XXI fez com que a influência catari crescesse no Oriente Médio e em todo o planeta. Perante o Ocidente, o país gosta de cultivar uma imagem de nação moderna e aberta, diferente de outros países árabes.
Exemplo disso é a criação da Al Jazeera na década de 90, um conglomerado de mídia que pratica jornalismo de forma séria e respeitada ao redor do planeta. É claro, porém, que, por ser patrocinada pelo Estado catari, a Al Jazeera não faz qualquer crítica ao Catar.
“Sportswashing”
Não é de hoje que países com governos autoritários se utilizam do esporte para ganhar reputação. Tivemos Copa do Mundo na Itália fascista em 1934 e na Argentina em meio a uma ditadura violenta em 1978, para citar alguns exemplos.
O Catar, embora venda uma fama de país moderado, ainda é uma monarquia absolutista, com membros da família real ocupando todos os cargos de comando do Estado.
Partidos políticos são proibidos e a homossexualidade é considerada crime. Os códigos penal e civil cataris são baseados na vertente sunita do islamismo, que é a religião oficial do país. Para a organização internacional Human Rights Watch, a situação de direitos humanos lá é “preocupante”.
Para desviar o foco dessas questões, o governo do Catar aderiu à prática do “sportswashing”, que é a utilização do esporte como uma maneira de “lavar” a reputação internacional do país. Em 2011, após assegurar a realização da Copa de 2022, a família real catari foi além e comprou a maior parte do Paris Saint-Germain, investindo fortunas no clube.
O ápice da transformação do “novo” PSG foi a contratação do astro brasileiro Neymar junto ao Barcelona em 2017, por 222 milhões de euros, a transferência mais cara da história do futebol.

Obras para a Copa 2022
Ao tentar ser protagonista no cenário esportivo mundial, o Catar acabou atraindo atenção para uma de suas maiores controvérsias: as leis trabalhistas. O país é dependente da força de trabalho estrangeira e a ausência de regulações sobre a atividade já foi comparada a uma espécie de escravidão moderna.
Com a necessidade de grandes obras para cumprir os padrões da FIFA, o Catar novamente recorreu aos trabalhadores estrangeiros. No entanto, já desde 2013 há denúncias sobre condições abusivas impostas a esses operários, como falta de acesso a comida e falta de pagamento. Segundo relatório da Anistia Internacional, os trabalhadores estão sendo tratados “como gado”.
Tais denúncias, porém, ainda não ganhavam a grande mídia. Nenhum país parecia se importar de fato com o que acontecia no Catar e os protestos vinham no máximo de torcedores. Em 2019, por exemplo, os ultras do Bayern de Munique levaram ao estádio faixas criticando amistosos de pré-temporada que seriam disputados no país do Golfo Pérsico.
O Liverpool, campeão do Mundial de Clubes também em 2019, chegou a soltar uma nota pedindo por uma investigação sobre a situação dos trabalhadores no Catar. Mas o barulho, até então, era pouco.
A reportagem que escancara a tragédia
No dia 23 de fevereiro de 2021, o jornal britânico The Guardian publicou uma reportagem afirmando que, desde o início das obras de construção dos estádios no Catar, ao menos 6500 trabalhadores já morreram. A organização e o governo caracterizam as causas das mortes como “naturais”, o que dificulta qualquer tipo de investigação.
A maior parte dessa força de trabalho é formada por imigrantes. Em um movimento similar ao que costuma acontecer na história recente da humanidade, pessoas em situação muito empobrecida saem de lugares miseráveis – regiões periféricas de países como Paquistão, Índia, Bangladesh, Nepal e Sri Lanka – e aceitam a vaga de trabalho no Catar em busca de dias melhores.
Ao chegarem, encontram jornadas de trabalho absolutamente exaustivas sob intenso calor que pode passar de 50 graus Celsius e em regime de semi-escravidão. Muitas não resistem.
O número de 6500 mortos provavelmente é até uma estimativa baixa. Mas como provar que há uma situação problemática? Como enfrentar de frente um regime tão fechado como o do Catar, que encobre e distorce os registros de falecimentos? A luta dos grupos de direitos humanos é muito árdua e continuará pelos próximos anos.
Pedidos de boicote
Por mais que torcedores e militantes já pedissem por boicotes de seus países antes mesmo da notícia do The Guardian, não havia nenhum movimento concreto nessa direção. É preciso falar a verdade: mesmo com as escabrosas denúncias se comprovando verdadeiras, as chances de uma seleção de prestígio deixar de ir ao Catar são nulas.
Porém, há quem tente levar a discussão para a esfera política. No parlamento holandês, um grupo de deputados se reuniu para pedir que o país boicote a Copa do Mundo do Catar.
Mais realista é a possibilidade de boicote de corpos governamentais à Copa do Mundo. Na Holanda, ele já é realidade: a deputada Sadet Karabulut, do Partido Socialista, fez uma moção no parlamento pedindo para que nenhuma autoridade do país viaje ao Catar durante o Mundial, e ela foi aprovada. Há uma união entre partidos de direita e esquerda locais em torno da causa.
Vale mencionar que essa não é a primeira vez que o parlamento da Holanda pede que o país boicote um Mundial: o mesmo aconteceu em 1978, devido à ditadura militar argentina. Obviamente, a Laranja Mecânica participou daquela competição e chegou ao vice-campeonato.

Protestos discretos nas Eliminatórias
Em meio a um número tão chocante como 6500 mortos, era de se esperar que ao menos os países que disputam as Eliminatórias para a Copa do Mundo se posicionassem de maneira veemente contra os abusos de direitos humanos e a semi-escravidão empregada no Catar. O que se vê, porém, é apenas o mais básico nível de protesto.
Na primeira rodada das Eliminatórias europeias, a Noruega entrou em campo vestindo uma camiseta branca com os dizeres “direitos humanos dentro e fora do campo”. A Alemanha, no dia seguinte, fez com que cada um de seus onze atletas vestisse uma letra da frase “human rights”, ou “direitos humanos”.
A ação com mais efeito prático talvez tenha sido a da Dinamarca, cujas camisas de protesto serão leiloadas pela Anistia Internacional. O dinheiro será revertido para a ajuda aos trabalhadores no Catar.
De toda forma, tudo indica que teremos Copa do Mundo de 2022 no Catar com a participação de todas as seleções que se classificarem dentro de campo. A lembrança do sangue derramado dos trabalhadores, das violações aos direitos das mulheres e dos homossexuais e dos demais abusos cometidos pela família real aparecerão apenas em pequenas notas inofensivas. Ou será que seremos surpreendidos?