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Cenas cariocas

José Paulo Florenzano 25 de maio de 2023

No primeiro semestre de 1972 estava em curso o Campeonato Carioca. Conforme assinalava o jornalista João Saldanha, em sua coluna no jornal O Globo, o grau de intensidade das rivalidades locais alterava-se ao longo do tempo em função de inúmeros fatores como, por exemplo, a hegemonia exercida por uma determinada equipe.[1] Na passagem dos anos sessenta para os anos setenta, não havia dúvida, o Botafogo de Jairzinho, Paulo César e Zagalo dominava a cena futebolística.

Mas, em 1972, as transferências do técnico Zagalo e do atleta Paulo César para a Gávea representavam uma ameaça à hegemonia exercida pelo clube da Estrela Solitária. De fato, no encontro das duas equipes prevista pela tabela do Carioca para o final de março, o Rio foi tomada por um único e obsessivo interesse, como se se tratasse de uma final de campeonato. “Amigos”, dizia Nelson Rodrigues, “estamos a 48 horas de Flamengo x Botafogo. Não há outro assunto na cidade”.[2] 

Nas filas para a compra de ingressos, nas rodas de conversa nos botequins ou na cobertura dos jornais, esmiuçavam-se os planos táticos dos treinadores, arriscavam-se palpites sobre as prováveis escalações das equipes, discutiam-se os pontos de referência de cada uma delas: Paulo César, no Flamengo, Jairzinho, no Botafogo. Ingredientes para o clássico não faltavam. A expectativa era a de recorde de público e arrecadação no Maracanã.

No entanto, deixemos de lado as questões que prendiam a atenção do público torcedor e atraíam a atenção da imprensa esportiva. Interessa-nos reunir algumas notícias esparsas que se inseriam como notas de rodapé na narrativa do grande evento, as quais, em conjunto, fornecem-nos uma imagem reveladora do lugar que as mulheres ocupavam na esfera futebolística no início dos anos setenta. Senão, vejamos.

Na sexta-feira, véspera do clássico, as arquibancadas de General Severiano encontravam-se apinhadas de torcedores que acorreram ao acanhado estádio do Botafogo para acompanhar o último treino. Enquanto os atletas aguardavam a chegada do treinador Tim para o início das atividades, uma repórter de televisão aproveitou a brecha e entrou em campo para entrevistar Jairzinho. Nesse momento, registrava o setorista de O Globo, “a torcida divertiu-se com fiu-fius e gracejos”.[3]   

O repórter empregava eufemismos para não ferir as sensibilidades dos leitores com as expressões e assobios de cunho sexual habitualmente direcionadas às mulheres na esfera do futebol. Ao mesmo tempo, porém, a cena em questão registrava uma mudança importante nas relações de gênero no campo esportivo, indicando a atuação profissional de repórteres mulheres, conquista reforçada pela presença de colunistas mulheres, como, em especial, a da jornalista Marilene Dabus, cujos artigos dedicados ao Flamengo asseguravam-lhe amplo destaque no Jornal dos Sports.[4] 

Na sexta-feira, mas desta feita na Gávea, “Tia Helena”, uma senhora de 63 anos, rubro-negra de coração e integrante da Torcida Jovem, comparecia ao último treino do Flamengo antes do clássico para incentivar os atletas. Ela explicava ao setorista de O Globo a montagem de uma força-tarefa em sua residência no bairro de Bonsucesso, na Zona Norte, para produzir o papel picado que deveria ser lançado no momento da entrada da equipe no gramado do Maracanã. Nesse instante, porém, ela interrompe a explicação e chama a atenção do repórter para uma cena que se desenrolava no campo:

Olha ali aquela menina. Veio só esperar o Paulo César. Que engraçado. Pra que ela faz isso? Não vê que o rapaz tem que descansar antes do jogo.[5]

Maracanã
Fonte: Wikipédia

A torcedora idosa do Flamengo reclamava para o repórter da presença de uma personagem que posteriormente viria a ser denominada de “Maria Chuteira”, expressão pejorativa cunhada pelo discurso masculino para identificar a “falsa” torcedora, cujo real interesse residiria tão somente em utilizar o futebol para conquistar status e dinheiro.[6] A estratégia sedutora da “menina”, aos olhos vigilantes de “Tia Helena”, representava um fator de risco à preparação mental dos rubro-negros para o clássico, preocupação de resto compartilhada pelos alvinegros, cujos dirigentes, no entanto, adotavam uma linha diversa para assegurar a “higiene mental” do elenco.[7]

No sábado à tarde, o regime de concentração do Botafogo, no Hotel das Paineiras, seria quebrado pela “invasão” de dez “mulatas” da companhia de espetáculo de Osvaldo Sargentelli, um bem-sucedido empresário da noite carioca que buscava capitalizar o sucesso do samba dentro e fora do Brasil.[8] Torcedor do Botafogo, ele se dispusera a proporcionar “descontração” aos atletas, oferecendo-lhes um show animado pelo “contagiante rebolado” das atrizes da companhia, em troca da vitória do alvinegro sobre o arquirrival.[9]

Proprietário da Sucata, casa noturna onde o show “Ziriguidum, Oi” achava-se em cartaz, Osvaldo Sargentelli prometia aos frequentadores as “melhores atrações do samba”, destacando a presença das “mulatas que não estão no mapa”.[10] Ao contrário, porém, da propaganda veiculada pelo empresário da noite, elas estavam devidamente inscritas na cartografia do racismo brasileiro, ocupando o lugar exótico e desempenhando o papel sexual imposto às mulheres afrodescendentes classificadas de “mulatas”, uma categoria ancorada na violência física e simbólica da história colonial, como nos recorda a escritora Grada Kilomba.[11]    

Reunindo em um mesmo quadro as cenas acima evocadas, temos uma imagem contraditória da presença feminina no universo do futebol carioca. As cenas, de um lado, estão saturadas de estereótipos, racismos e sexismos. De outro lado, porém, elas comportam a presença pioneira de jornalistas na cobertura dos jogos, de colunistas na redação de artigos, ou, ainda, de torcedoras em meio aos agrupamentos organizados. Isto, obviamente, sem contar as atletas que, à margem do futebol profissional, atuavam na clandestinidade, consoante o termo empregado pela historiadora Giovana Capucim e Silva para caracterizar o período em tela.[12]     

Quanto à partida entre Flamengo e Botafogo, a imensa expectativa criada em torno dela acabou frustrada, o zero a zero a converteu em uma “Batalha de Itararé”, na expressão lapidar de João Saldanha.[13] As pessoas saíram decepcionadas do Maracanã, incluindo a “grã-fina das narinas de cadáver”, evocada por Nélson Rodrigues em sua coluna de segunda-feira no jornal O Globo.[14]

Figura ambígua, ela simbolizava tanto o distanciamento das elites em relação às manifestações da cultura popular, quanto reafirmava a alteridade das mulheres no País do Futebol. À luz, porém, das mudanças prenunciadas pelo quadro histórico esboçado neste artigo, poder-se-ia afirmar que ela começava a se retirar de cena, levando consigo a perguntava que a definia e ridicularizava aos olhos do público leitor masculino: “Quem é a bola?”[15]


Notas

[1] “O jogo do momento”, João Saldanha, O Globo, 25 de março de 1972.

[2] “À sombra das chuteiras imortais”, Nélson Rodrigues, 24 de março de 1972.

[3] Cf. “Na agitação, um pouco de paz e de flores”, O Globo, 25 de março de 1972.

[4] Cf. “Pule de dez”, Marilene Dabus, Jornal dos Sports, 26 de março de 1972.

[5] “Tia Helena, 63 anos, da Torcida Jovem: o Fla ganha”, O Globo, 25 de março de 1972.

[6] Costa, Leda Maria da. “Marias Chuteiras x Torcedoras ‘Autênticas’. Identidade Feminina e Futebol”. XII Encontro Regional de História, ANPUH, Rio de Janeiro, 2017. https://comunicacaoeesporte.files.wordpress.com/2017/02/torcedorasleda-maria-da-costa.pdf Ver também sobre a categoria “maria chuteira” Stahlberg, Lara Tejada. “Mulheres em campo: novas reflexões acerca do feminino no futebol”. Dissertação de Mestrado, Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos, 2011.

[7] “Botafogo em paz ao som do rock”, Hideki Takizawa, Jornal dos Sports, 26 de março de 1972.

[8] Maia, Suzana. “Sedução e identidade nacional: dançarinas eróticas brasileiras no Queens, Nova York”, Revista: Estudos Feministas, Florianópolis, setembro/dezembro, 2009. https://www.scielo.br/j/ref/a/4rLDD68JkbwHK5mCXyXjXWQ/?format=pdf&lang=pt

[9] “Botafogo se descontrai com a alegria do samba”, Jornal do Brasil, 26 de março de 1972.

[10] Cf. A propaganda: “Sargentelli na Sucata. Ziriguidum, Oi. 16 mês de sucesso”, Jornal dos Sports, 4 de março de 1972.

[11] Cf. Kilomba, Grada. “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”, Rio de Janeiro, Cobogó, 2019.

[12] Cf. Silva, Giovana Capucim e. “Mulheres impedidas: a proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo”, Rio de Janeiro, Editora Multifoco, 2017.

[13] “Batalha de Itararé”, João Saldanha, O Globo, 27 de março de 1972.

[14] “Meu personagem da semana”, Nélson Rodrigues, O Globo, 27 de março de 1972.

[15] Cf. “Eu sou a bola. Muito prazer”, Ivan Lessa, BBC Brasil, 11 de junho de 2010. https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2010/06/100611_ivanlessa_tp  Cf. Marques, José Carlos. “O futebol em Nélson Rodrigues”, São Paulo, EDUC/FAPESP, 2000.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Cenas cariocas. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 26, 2023.
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