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Chape: admiração, desapontamento (1977-2022)

Em uma tarde de outubro de 2013, um sábado que era também dia das crianças, fui com meu irmão até o Estádio da Ressacada, em Florianópolis, para assistir a uma partida entre dois times que disputavam, na Série B do Campeonato Brasileiro, a ascensão para a primeira divisão do ano seguinte. Já estávamos na metade final do segundo turno da competição. A Associação Chapecoense de Futebol vinha enfrentar o Avaí Futebol Clube, e o que nós vimos foi um espetáculo tático comandado pelo treinador Gilmar Dal Pozzo, um ex-goleiro que, como tal, atuara e fora campeão pelo time da Ilha de Santa Catarina. A vitória por dois a um foi construída com gols de Tiago Luís e Fabinho Gaúcho, enquanto Cléber Santana – que viria a jogar pelo time do Oeste – marcou para os azurras.

A diferença em assistir a um jogo no campo e outro na televisão se deixa perceber pela possibilidade da observação tática mais completa, da movimentação com e sem a bola, e a Chape, naquela tarde, atuou como se realizasse uma coreografia, com jogadores afinados entre si e no espaço, acelerando e diminuindo o ritmo de forma organizada, agredindo e recuando em bloco, mas deixando espaço para a quebra das linhas avaianas pelos esforços individuais de seus atacantes. Foi naquela tarde de primavera, há nove anos, que minha simpatia pelo time se consolidou.

No entanto, eu já o acompanhava havia algum tempo, e guardava na memória da minha infância a campanha de 1977, quando no Estádio Índio Condá (não era ainda Arena), os locais venceram o ótimo Avaí de então, conquistando por primeira vez o título catarinense. A Chapecoense venceu a partida final daquele ano por um a zero, com um gol aos 41 minutos do segundo tempo. O time da capital de Santa Catarina fora para o Oeste com uma de suas melhores formações da história, em que Almir, Balduíno e Renato Sá compunham o meio-campo (todos com destaque nacional posterior, especialmente o primeiro e o terceiro), e com Lico no ataque, ele mesmo, campeão da Libertadores e da Copa Intercontinental, pelo Flamengo, quatro anos depois. Daquele jogo decisivo, há tantos anos, até minhas experiências mais contemporâneas com o futebol, ficou um hiato, daí o encantamento com o time de 2013.

De lá para cá a história é conhecida, a Chape subiu à Série A, consolidou-se nela e chegou à final da Copa Sul-americana, em 2016, quando a queda do avião que levava a delegação à Medellín, Colômbia, causou a morte de praticamente todo o plantel (que incluía o citado Cléber Santana), assim como da comissão técnica, diretoria, jornalistas e tripulação que viajava. A coisa toda foi muito chocante para mim, sentimento que se acirrou pela admiração que eu tinha pelo comentarista Mário Sérgio Pontes de Paiva, o que incluía (e inclui) as carreiras dele como jogador e técnico, mas também porque várias vezes visitei a capital de Antioquia, cidade pela qual tenho muito carinho e onde tenho grandes amigos. O jogo seria contra o Atlético Nacional, clube de destaque no futebol sul-americano, com duas Copas Libertadores em sua sala de troféus. Favorito à vitória, mas sem jogar, ofereceu o título para a Chape, em bonito e generoso gesto.

A Chapecoense tem enfrentado dificuldades diversas nos últimos tempos, que em parte são as mesmas de outros clubes médios nacionais, somando-se, no entanto, à certa desorganização em anos recentes. Pois bem, mesmo considerando esse quadro, é para mim desconcertante a forma como o clube tem atuado em relação a familiares das vítimas, e agora, em especial, a um de seus ex-jogadores, entre os poucos sobreviventes da queda do avião, o lateral-esquerdo Alan Ruschel.

Que um atleta de futebol volte a atuar profissionalmente depois de sobreviver a um acidente aéreo de grandes proporções, do qual ter saído com vida foi acaso e exceção, é algo mais que surpreendente.  Depois de atuar pela Chape e pelo Goiás, por empréstimo, Alan voltou ao Oeste de Santa Catarina para ser campeão estadual e brasileiro da Série B, em 2020, deixando o clube para defender o Cruzeiro e o América Mineiro. Entrementes, processou seu ex-empregador porque não recebeu o que entende ser seu direito em relação ao seguro da viagem a Medellín. Como se pôde ler na grande imprensa no final do ano passado, Ruschel, segundo a Chapecoense, não seria vítima, mas um sobrevivente “abençoado pela força divina”, ao que se agregaria o fato de que ele teria tido vantagens com o acidente, que lhe haveria oferecido notoriedade e alavancado ganhos, tornando-o figura mundialmente conhecida. O jogador respondeu o seguinte:

“Estão sendo levianos e despreparados na condução de um assunto tão importante. A minha vida precisava continuar, mas isso não tira responsabilidade do clube. Só eu sei os traumas que carrego comigo, o esforço, a luta para voltar a jogar. Hoje tenho oito parafusos nas costas, não quero me vitimizar, mas apenas para deixar essa situação clara. Afirmar que minha vida seguiu normal é um absurdo, não só comigo, mas também com os familiares das vítimas do acidente”[1].

Chapecoense
Homenagem em memória às vítimas da tragédia da delegação da Chapecoense. Foto: Giancarlo Marques Carraro Machado

A identificação com a Chapecoense transcende as fronteiras do país. Na Argentina, por exemplo, um país tão ou mais futebolístico quanto o nosso, há muitos aficionados que têm camisetas da agremiação, assim como na Colômbia, especialmente, claro, em Medellín. Muita gente se sensibilizou com a tragédia de 2016. Antes disso, a simpatia pelo clube já era grande. Cheguei a ouvir de minha mãe que ela, antes do desastre aéreo, o escolhera para ser torcedora, coisa que jamais acontecera. O caso de Alan Ruschel não foi o único de maus-tratos do clube, em relação a pessoas individualmente e à sociedade brasileira. Não sei se é o pior de todos, mas é de um amargor terrível. Até segunda ordem, penduro no armário minha admiração pela Chape.


[1] Chape contesta dívida cobrada por Ruschel em processo e diz que ele ganhou notoriedade com tragédia; Advogados da Chapecoense alegam em processo que acidente de 2015 foi benéfico para Alan Ruschel.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Chape: admiração, desapontamento (1977-2022). Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 29, 2022.
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